O conhecimento da história dos escravos e negros em Portugal deu grandes passos nas últimas décadas, através de livros e artigos de um grupo de investigadores que se têm dedicado a este tema, assim como de colóquios, congressos e exposições a ele consagrados. Neste âmbito, a autora é uma referência fundamental quer pelas suas obras sobre a escravidão e os negros, quer pelas numerosas iniciativas, nacionais e internacionais, que tem dinamizado, assim como pela docência universitária.
Este livro tem como objeto os “pretos do Sado”, população com aspeto físico de origem claramente africana que habita várias povoações do vale deste rio, nomeadamente Rio de Moinhos, Santa Margarida do Sado, São Mamede do Sado, São Romão do Sado e Vale de Guiso. A sua existência foi revelada para a ciência no fim do século xix, por José Leite de Vasconcelos (1898). Depois disso foram avançadas várias hipóteses explicativas para a origem destas comunidades, todas pouco convincentes. A autora da obra avança também com uma proposta, mas de forma muito mais conseguida, resolvendo provavelmente a questão em definitivo.
O livro começa pela caracterização geográfica da “ribeira do Sado”, as margens deste curso de água, que corre desde a nascente na serra da Vigia, do concelho de Ourique, até Alcácer do Sal, e desaguando no mar junto a Setúbal. No plano económico, o mesmo foi, ao longo de séculos, um fator de desenvolvimento da região que atravessava, pelas mercadorias que transportava, produtos agrícolas, lã, madeira e minérios. Caracteriza igualmente a forma de propriedade e de exploração da terra predominantes neste território, o latifúndio, com as suas consequências económicas e sociais.
A seguir refere-se desenvolvidamente à presença, no território em análise, de escravos africanos, entre os séculos xv e xviii, assim como às atividades em que foram utilizados, às suas condições de vida e às formas de integração dos mesmos na sociedade de receção, branca e cristã. Nestas destacaram-se quer a sua catequização, quer a admissão aos atos e práticas religiosas, como o batismo, o crisma, o casamento e o sepultamento nos mesmos locais da comunidade branca e livre, quer a pertença a irmandades e confrarias de negros. Estas constituíram-se ou por iniciativa de “homens pretos” (libertos ou descendentes destes), mas com a possibilidade de acesso dos próprios escravos, ou por ação de brancos, com o fim de integrar os escravos e negros livres na Igreja. Na região do vale do Sado surgiu bom número destas associações religiosas.
Apesar de Alcácer do Sal ter sido, nos séculos xvi e xvii, um dos concelhos que os registos paroquiais de batismos mostram ter contado com uma maior presença de escravos (Fonseca, 2002, p. 23), essa diferença não é suficiente para explicar a existência, nos séculos xix e xx, de comunidades com características africanas tão evidentes como as que foram assinaladas. A explicação terá que ser outra e é, quanto a nós, o facto de a autora a ter encontrado o contributo mais relevante desta obra para a historiografia da escravidão em Portugal. Vejamos.
A mesma entronca nas leis de D. José, da iniciativa de Sebastião José de Carvalho e Melo, destinadas a pôr termo à escravatura no território europeu de Portugal. O seu objetivo era o de criar uma massa laboriosa livre, por isso mais motivada e eficiente, que permitisse o desenvolvimento do país, sobretudo a respetiva industrialização (Lahon, 2001, p. 108). Para isso era considerado essencial o fim da escravidão, próprio de economias e sociedades atrasadas e pouco produtivas. Nesse sentido, foram decretadas duas leis, uma em 19 de setembro de1761 e outra em 16 de janeiro de 1773. A primeira determinou que ficassem livres todos os escravos que, vindos dos domínios ultramarinos lusitanos, aportassem ao reino. A segunda estabeleceu que todos os filhos de escravas, nascidos do dia da publicação da lei em diante, ficassem livres e “sem a nota distintiva de libertos”, assim como aptos para todos os “ofícios, honras e dignidades”. Quanto aos que já eram escravos, continuariam nessa condição, exceto aqueles cuja escravatura remontasse às bisavós, os quais ficariam igualmente livres (Rodrigues, Lahon e Neto, 2000, pp. 87-90).
Tais decretos tiveram efeitos diferentes de acordo com a importância do trabalho escravo nas respetivas regiões. Entre aquelas em que mais se refletiram as novas determinações esteve o Sudoeste Alentejano, correspondente à comarca de Ourique, território caracterizado por Jacques Marcadé (1971, p. 161) como naturalmente pobre e economicamente atrasado. Devia, por isso, ser um daqueles em que os agricultores mais recorriam ao trabalho cativo, mão-de-obra de muito baixo custo. Pois foram precisamente daí provenientes os poucos protestos conhecidos relativamente ao fim da escravatura. A câmara de Almodôvar, por exemplo, fazendo-se intérprete dos lavradores do concelho, traçou um quadro desolador das herdades após a abolição, com as terras abandonadas e uma decadência geral, destacando que, logo que souberam da publicação da lei de 1773, os escravos deixaram os donos e as suas casas, recusando-se a trabalhar, mesmo por salário, para os antigos senhores (Silbert, 1978, p. 829; Fonseca, 2010). Segundo concluiu o Desembargo do Paço, até escravos cuja condição não remontava à quarta geração tinham deixado os donos1, questão que, convenhamos, não era fácil de decidir em muitos casos.
Depoimentos orais a que a autora recorreu aludem à fixação em localidades ribeirinhas próximas de Alcácer, numa primeira fase, de escravos fugidos de terras localizadas a sul, incluindo o Algarve, e, numa segunda, de libertos vindos para norte, naturalmente a pé, do Baixo Alentejo Litoral. Essas populações teriam, no último quartel do século xviii, procurado acolhimento em pequenos aglomerados do vale do Sado, isoladas e distantes entre si, onde, através de uma forte endogamia, ao longo do tempo se perpetuaram as suas características físicas de origem africana. É de assinalar a época tardia em que esta migração ocorreu, o que facilitou a permanência da respetiva herança genética cerca de um século depois, quando Leite de Vasconcelos a encontrou.
A obra traça também um quadro sobre as condições de vida e de trabalho destes “negros”, assim como da restante população trabalhadora, ao longo dos séculos xix e xx, vergados pela falta de recursos e pela necessidade de se submeterem ao poder dos donos da terra. Realça particularmente o trabalho nos arrozais, implantados, durante largo tempo, em águas estagnadas, que favoreciam a reprodução do mosquito Anopheles, causador do paludismo. Inclui também testemunhos orais e excertos de poesia popular referentes a esta população e aos preconceitos de que foi vítima devido à sua aparência africana, assim como um vasto repositório fotográfico, com imagens antigas e recentes de muitos “negros do Sado”.
A obra em presença, pelo tema escolhido e pelo rigor e forma de abordagem será, de agora em diante, um trabalho incontornável para os estudiosos da escravidão em Portugal, vindo de uma profunda conhecedora da matéria. Mas também para a história do povo alentejano, da sua vida e da sua resistência às adversidades.