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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.238 Lisboa mar. 2021  Epub 31-Mar-2021

https://doi.org/10.31447/as00032573.2021238.08 

Recensão

Recensão: “Grandiosos Batuques”: Tensões, arranjos e experiências coloniais em Moçambique (1890-1940)

1 Centro Interuniversitário de História das Ciências e da Tecnologia, Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade NOVA de Lisboa. Campus de Caparica, Edif. VII, Piso 2 - 2829-516 Caparica, Portugal, b.direito@fct.unl.pt

Pereira, Matheus Serva. ., “Grandiosos Batuques”: Tensões, Arranjos e Experiências Coloniais em Moçambique (1890-1940). ,, Lisboa: ,, Imprensa de História Contemporânea, ,, 2020. ,, 398p. pp. DOI: 10.34619/06z3-w430 ISBN, ISBN: 9789898956118.


Na Lourenço Marques do início do século XX eram frequentes práticas envolvendo música e dança que, na dinâmica imprensa periódica da época e em queixas apresentadas por habitantes da cidade eram vistas como “algazarras” ou “infâmias”, manifestações incómodas e censuráveis dos costumes arreigados das populações ditas “indígenas” residentes nos bairros periféricos em crescimento. De acordo com esta perspectiva, estas práticas pertenciam ao espaço do “mato”, não tendo lugar numa cidade que se queria “cosmopolita”. Muito para lá desta visão depreciativa e homogeneizadora, como se mostra em “Grandiosos Batuques”: Tensões, Arranjos e Experiências Coloniais em Moçambique (1890-1940) os tão desvalorizados “batuques”, como foram comummente conhecidos, correspondiam na realidade a diferentes manifestações culturais onde participavam homens e mulheres. Estas formas de lazer continuavam nos subúrbios práticas e tradições artísticas originárias de diferentes partes do território, ao mesmo tempo que refletiam os novos modos de viver na cidade no contexto da “situação colonial”, evoluindo em tensão com esta ao longo do século, numa sociedade ­profundamente estratificada e marcada por relações de poder desiguais.

Com esta publicação, que interessará certamente a um público variado, o historiador Matheus Serva Pereira dá um importante contributo para o campo da história social de Moçambique colonial e, mais especificamente, para o campo da história social da cultura popular entre as populações africanas dos subúrbios de Lourenço Marques. O livro adapta a tese de doutoramento por este defendida em 2016, na UNICAMP, sendo o resultado de uma extensa pesquisa realizada em arquivos e bibliotecas em Portugal e em Moçambique. Beneficiando de novos dados recolhidos depois de 2016, que permitiram estender o limite do recorte temporal estudado de 1930 para 1940, o autor propõe aos leitores cinco capítulos, acompanhados por uma introdução e uma conclusão. O livro conta ainda com um prefácio do antropólogo brasileiro Omar Ribeiro Thomaz, que há muito se dedica ao caso de Moçambique no período tardo-colonial.

A forma como cruza contributos vindos de diferentes áreas disciplinares - história social, história urbana, antropologia, etnomusicologia - para revelar as experiências de um conjunto de homens e mulheres vivendo nas margens de uma capital colonial é um dos méritos de “Grandiosos Batuques”. Estes diferentes cruzamentos e influências estão patentes na introdução, onde o autor dialoga com a historiografia e bibliografia relevantes, assumindo claramente a sua vontade de adotar uma abordagem devedora das correntes que privilegiam o estudo do quotidiano das populações subordinadas, na senda da história social britânica de E. P. Thompson e da micro-história de Carlo Ginzburg. Influenciado pela agenda e pelos debates internos à academia brasileira, nomeadamente em torno do conceito de resistência, o autor tem como objectivo destacar a “agência” das populações do subúrbio para lá dos binómios “colonizado/colonizador” e “subversão/colaboração”. Os batuques, marcados por tentativas de controlo pelo poder colonial português, mas refletindo também “repertórios de resistência”, na linha dos trabalhos de James C. Scott, surgem assim como “uma janela para se ter acesso às experiências das populações originárias do sul de Moçambique durante o período colonial vespertino” (p. 27). Este livro assenta ainda no já vasto conjunto de estudos dedicados à história da cultura popular em África, inaugurada, por exemplo, pelos trabalhos de Karin Barber e Terence Ranger, onde se problematizam noções de “tradição africana”. No que diz respeito ao caso de Moçambique, para lá dos estudos mais gerais sobre a história do território em contexto colonial, são referências fundamentais para o autor os trabalhos de José Capela, Jeanne Penvenne, Leroy Vail e, sobretudo, ­Valdemir Zamparoni, cujo trabalho corresponde à mesma baliza cronológica deste livro, mas também algumas investigações recentes sobre cultura popular de forma mais geral, como a de Nuno Domingos, e, mais especificamente sobre música, de António Sopa, Eléusio Filipe e Marílio Wane. Teria sido interessante que o autor se tivesse alongado mais sobre a relação da sua investigação com a historiografia existente sobre Lourenço Marques, afirmando mais perentoriamente as lacunas que procura preencher. Semelhante aprofundamento poderia ser sido igualmente realizado em relação às opções metodológicas: quais os limites das fontes orais, e de que forma estas acrescentariam conhecimento para preencher as insuficiências das análises historiográficas existentes?

Sabendo como muitas fontes coloniais, sobretudo aquelas produzidas por agentes do estado colonial, interessados principalmente na exploração da mão--de-obra africana, tendem a ocultar os pontos de vista das populações categorizadas como “indígenas”, a opção pelo estudo das experiências de homens e mulheres dos subúrbios, dos seus lazeres e das suas expressões culturais, no final de Oitocentos e primeiras décadas de Novecentos, tem necessariamente implicações metodológicas que o autor não escamoteia. Compreende-se, assim, a tentativa de colmatar as lacunas encontradas através de fontes alternativas. A variada imprensa periódica que circulava em Lourenço Marques nas primeiras décadas do século XX, tanto aquela controlada pela pequena burguesia negra e mestiça, como aquela dinamizada por populações de origem europeia com diferentes interesses e orientações políticas, já explorada em outros trabalhos sobre Moçambique colonial, ganha por isso um compreensível destaque no capítulo 1. Através de uma análise aprofundada de diferentes exemplos retirados dessa imprensa, que fazia eco das manifestações e tensões de uma capital colonial em construção, o autor procura mostrar o que eram, ao certo, os batuques, os bairros onde estes tinham lugar, as populações que neles participavam, mas também perceber como ocorreu a sua receção, nomeadamente pelas autoridades coloniais, que procuraram reprimi-los de diferentes formas.

Em bairros como a Munhuana, mostram os relatos da imprensa, as populações africanas dos subúrbios entregavam-se aos batuques, nomeadamente em redor das cantinas onde era consumido álcool, comportamentos vistos como problemáticos e moralmente reprováveis. Os batuques, que promovidos no título deste livro são apenas tratados substancialmente neste e no quinto capítulo, não eram assim entendidos como expressões de uma qualquer tradição artística, nem como formas de lazer urbanas desejáveis, apenas como ruído que fazia nascer tensões nas linhas de fronteira entre os dois universos cada vez mais segregados na Lourenço Marques da época: a cidade de cimento, onde moravam os europeus, e a cidade de caniço, reservada às populações africanas.

Através da análise de fontes como relatos de missionários, recolhas de usos e costumes e relatórios de funcionários coloniais, o autor problematiza no capítulo 2 as representações dos batuques analisadas no capítulo anterior, demonstrando a forma como homogeneizaram várias práticas e como não foram capazes de dar conta das especificidades das populações africanas vivendo na cidade, bem como das suas formas de expressão cultural. É aqui que entram em linha de conta as categorias sociojurídicas sobre as quais assentava o edifício colonial português em África, mormente a do “indígena” e a do “assimilado”.

Estas categorias, e as divisões espaciais e simbólicas que acarretaram nesta sociedade colonial, também se refletiram no domínio dos lazeres, como se mostra no capítulo 3. Na Lourenço Marques de inícios do século XX, onde se cruzavam populações variadas e se consolidavam diferentes formas de sociabilidade, as autoridades coloniais procuraram dominar, vigiar e até excluir um conjunto de práticas em espaços como teatros, bares e quiosques. Ao mesmo tempo, o poder colonial procurou gradualmente substituir as práticas “anómalas” por outras mais organizadas e hierarquizadas, condizentes com uma sociedade colonial dividida em função de critérios raciais. Foi neste contexto que se reservaram, por exemplo, zonas específicas da plateia para o público “indígena” de touradas, ou sessões de cinema só para estas populações. Socorrendo-se do conceito de “civilização das necessidades” (p. 170), o autor analisa ainda como se procuraram estimular e direcionar as necessidades de consumo das populações africanas dos subúrbios.

Recorrendo a “fragmentos das histórias de homens e mulheres ‘indígenas’ ” (p. 217) retirados de fontes tão diversas quanto artigos de jornal e relatórios da polícia e de tribunais indígenas, no capítulo 4 leva-se esta análise mais longe, olhando, por exemplo, como, através das formas de vestir, as populações dos subúrbios procuraram escapar às categorias coloniais e encontrar um espaço para desenvolver a sua iniciativa. Como mostra o autor, quer nos locais de trabalho, quer no espaço público, estas estiveram longe de ser meras vítimas de um sistema de dominação colonial. É de saudar o destaque dado neste capítulo à experiência de mulheres dos subúrbios através da análise da forma como interagiram com diferentes entidades coloniais, como recorreram a redes de conterrâneas em momentos de dificuldade e como procuraram escapar à sujeição a estruturas patriarcais.

Depois de explorar de diferentes formas o quotidiano e as experiências das populações dos subúrbios, o autor regressa no capítulo 5 de forma mais ajustada ao tema central do livro para revelar o processo de apropriação e ressignificação dos batuques ocorrido em Moçambique nas primeiras décadas do século XX. Através de exemplos como os proporcionados pelas orquestras de timbilas originárias de Inhambane, Matheus Serva Pereira mostra como algumas expressões culturais africanas foram objeto de tentativas de controlo e aproveitamento pelas autoridades coloniais. Utilizadas, nomeadamente, em exposições coloniais ou em celebrações de acontecimentos históricos, estas expressões foram submetidas a um processo de “espectacularização” que não se fez, no entanto, sem conflitos e negociações. Os batuques que continuavam a ter lugar, por seu lado, acabaram também por exprimir nas letras das suas canções um conjunto de queixas em relação à exploração colonial, mostrando por isso como escaparam às diferentes formas de controlo das autoridades.

Referências bibliográficas

Pereira, M. S. (2020). “Grandiosos Batuques”: Tensões, Arranjos e Experiências Coloniais em Moçambique (1890-1940), Lisboa, Imprensa de História Contemporânea. DOI: https://doi.org/10.34619/06z3-w430 ISBN 9789898956118 [ Links ]

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