A história cultural de Angola apresenta duas características realmente notáveis. A primeira é o papel desempenhado por autores literários (alguns de origem portuguesa, mas que cresceram na colónia) na construção do Estado-nação (mais da nação do que do Estado): Manuel Rui, Manuel dos Santos Lima, Henrique Abranches, José Eduardo Agualusa, José Luandino Vieira e, claro, Pepetela, pseudónimo de Artur Pestana. Estes autores, fortemente anticoloniais e politicamente comprometidos, encheram o país com um imaginário histórico e cultural (e, até certo ponto, mítico) que permitiu aos cidadãos da nação identificarem-se uns com os outros e com um projeto nacional. A segunda é o facto de muitos escritores de ficção do país terem tido formação académica em ciências sociais: Oscar Ribas, Henriques Abranches e Rui Duarte de Carvalho eram antropólogos, Pepetela um sociólogo. A hibridação tipicamente angolana entre ciências sociais, ficção e nation-making é uma característica que sempre achei que devia ser aprofundada pelos estudiosos do país e que torna livros como o que comentamos agora particularmente necessários.
O livro de Alexandra Santos não é uma análise da relação entre a literatura, as ciências sociais e a nação em geral, mas uma análise concreta da obra de Pepetela (ou parte da sua enorme obra), centrada principalmente em quatro romances: Mayombe (escrito no início dos anos 1970, mas só publicado em 1980), Yaka (1984), Lueji: O Nascimento de um Império (1989) e A Geração da Utopia (1992). No decorrer da análise, algumas outras obras emblemáticas de Pepetela também são comentadas com algum detalhe, assim como as de alguns outros autores (Luandino Vieira, Santos Lima, Agualusa). A análise dos quatro romances centrais de Pepetela é magistral. A autora resume o argumento (embora sagazmente, sem cair em spoilers), analisa as personagens e contextualiza a dimensão social em termos de revolta, mito, violência e utopia. Ao mesmo tempo convida o leitor ou a leitora a mergulhar na leitura destes romances, para querer saber mais sobre estes personagens que desenham o horizonte fictício de Pepetela. Penso que a divisão em tempos é muito apropriada: tempo da negatividade (Mayombe), tempo do mito (Yaka), tempo do sincretismo (Lueji), tempo do requiem (A Geração da Utopia). Muito apropriada porque, de facto, mostra que, como qualquer outro autor, Pepetela tem uma trajetória, uma evolução, não só literária, mas também política e ideológica. Além disso, mostra que os tempos mudaram muito em Angola desde os dias em que o jovem Pepetela escreveu Mayombe até aos dias em que ele escreveu A Geração da Utopia nos anos 90. O projeto inicial do MPLA foi transformado, as alianças políticas internacionais mudaram, a perceção do “inimigo” foi plástica, as relações com outros movimentos de libertação (FLNA, UNITA) foram-se modificando, o elemento “Kongo” da nação foi avaliado de forma diferente em diferentes momentos, etc.
A leitura dos romances de Pepetela é uma das melhores introduções à história de Angola como país africano independente, bem como, de certa forma, à história anterior à Independência, ou pelo menos à relevância que ela tem para a história pós-colonial propriamente dita. Os grandes temas de Angola independente, as diferentes formas de imaginar a nação, os confrontos entre imaginários temporais e territoriais subscritos pelos diferentes grupos políticos são claramente delineados, na sua natureza plástica e mutável, nos seus conflitos, que não só devem ver-se como destrutivos, mas também, em grande medida, e segundo nos ensinou George Simmel no seu estudo inicial sobre o conflito, como construtivos de novas realidades e novas esperanças.
A análise das obras de Pepetela, marcando diferentes tempos (e diferentes relações entre narrativa e temporalidade), é exemplar do ponto de vista da teoria literária e na forma como nos ajuda a compreender a história de Angola e o papel que a literatura tem tido ao oferecer uma narrativa unificadora e aceitável para o público. Afastando-se da análise da obra literária, oferece muitas pistas teóricas para o estudo da sociologia política do país, distanciando-se muitas vezes do autor principal para traçar o quadro intelectual mais geral, de forma especialmente magistral no capítulo 5 (“ ‘Fazer a história disto tudo’: o tempo do requiem”). Uma lista erudita de teóricos nos acompanha no caminho, em constante diálogo com Peteleta e com a autora. O fio comum é o papel da imaginação na construção da nação, e aqui é da maior importância enfatizar que a imaginação não se opõe à realidade. Que Angola tem de ser imaginada (no sentido de Benedict Anderson) não significa que tenha de ser imaginária, no sentido popular de “irreal”. A imaginação é uma faculdade individual, mas também coletiva: através dela geramos comunidade e construímos uma noção de tempo e espaço partilhados. Alexandra Santos escapa a dicotomias simplistas (essencialista vs. construtivista) e pede emprestado tanto a autores “realistas” como Anthony D. Smith, como a autores “invencionistas” como Terence Ranger e Eric Hobsbawm. As excursões teóricas em torno da figura do “inimigo” em Carl Schmitt e seus hermeneutas são profundas e muito interessantes em si mesmas, além de serem invocadas de uma forma muito relevante para tornar o trabalho de Pepetela mais compreensível. A nível teórico, o livro introduz uma vasta diversidade de temas (o papel destrutivo-construtivo da violência, a ambivalência da etnicidade, a obra da memória, a distinção entre mito e história, a utopia como motor social, a constante reavaliação das lutas de libertação, entre outros). Ao nível de uma sociologia política de Angola, mostra como o país, e sobretudo o partido que o tem governado desde a Independência, tem mudado ao longo das gerações.
O estudo de Alexandra Santos levanta uma importante questão teórico-metodológica (e discute-a profundamente na introdução teórica): qual deve ser a relação entre a literatura e as ciências sociais? A literatura é uma “fonte”, como uma entrevista, uma história de vida, um arquivo? Ou será a literatura um objeto de análise, como seria um movimento social ou político, uma igreja, um grupo étnico, uma mina de bauxite? Ou será a literatura o caminho (quem sabe se é a via regia) para entrar no universo de uma sociedade, para compreender, no sentido mais fenomenológico da expressão, o mundo vivido pelos seus habitantes? Este caminho parece-me muito frutífero, um complemento ideal à pesquisa etnográfica, histórica ou sociológica. Para entrar no universo Igbo, ler Chinua Achebe pode ser tão ou mais útil do que entrevistar pessoas daquele grupo nigeriano (especialmente porque a geração que Achebe encapsulou em suas obras já não existe). Para compreender a experiência do Islão no Senegal, ler Cheick Amidou Kane pode ser mais penetrante do que ler as obras científicas dos antropólogos da religião. Para compreender a guerra civil na Libéria e na Serra Leoa, ler Amadou Kouruma pode captar melhor a subjetividade da violência do que muitas análises externas. E para compreender a Angola pós-colonial, ler Pepetela pode ser tão ou mais valioso do que ler alguns dos textos escritos por historiadores profissionais (especialmente os de autores empenhados em escrever a história “oficial” e “objetiva” do país). É claro que é uma fonte parcial, mas todo o conhecimento o é, e sabemos hoje, após três décadas de debate sobre o partial knowledge, que a parcialidade não pode ser considerada oposta à verdade. Nas mãos de Alexandra Santos, a análise literária transforma-se em análise cultural, política e histórica, e a teoria social oferece pistas que a história da literatura seria incapaz de nos dar para estudar a fundo o universo social descrito na obra, assim como a intenção social de Pepetela e outros autores também analisados no texto. O estudo constitui uma peça exemplar no uso das ciências sociais como metodologia de crítica cultural, e uma introdução muito original simultaneamente à obra de um dos mais importantes escritores do mundo lusófono atual e à sociologia político-cultural do seu país.