É consenso largamente aceite entre historiadores que Portugal, durante a década de 1960, viveu uma “experiência de modernidade” (Berman, 1982, pp. 28-29): crescimento económico, urbanização, ingresso na EFTA, aumento do PIB etc. Modernidade, entretanto, que se deparou com forças reativas: guerra colonial, isolamento internacional, fuga de mão-de-obra, entre outros. A unificar caminhos tão díspares, a condição ditatorial, jamais posta em causa naqueles tempos de “modernização conservadora” (Moore Jr, 1983).
Analisar este período é desafio de não pouca monta. Foi o que, entretanto, propuseram José Maria Brandão de Brito e Paula Borges dos Santos (pp. 9-24) ao organizarem a presente obra. O livro é composto por uma Introdução e 11 capítulos, abarcando temas como economia, sociedade, política, educação e justiça. O mosaico é vasto, ainda que outros assuntos, igualmente importantes, pudessem compor a coletânea, como as políticas para a cultura ou o desporto.
Em obra assim tão diversificada, é comum, e mesmo compreensível, certo desequilíbrio entre os seus capítulos. Tanto na qualidade do conteúdo como nas opiniões expressas. Os organizadores advertem que “não se alcançou uma interpretação unívoca” (p. 21). Pode ser, embora predomine uma forte unidade tanto no que se compreende por “década de 1960”, como no que respeita às continuidades e descontinuidades das governações de Oliveira Salazar e Marcello Caetano.
Correndo algum risco de classificação arbitrária, e reconhecendo que os temas se entrecruzam, analisaremos os capítulos agrupando-os em três blocos temáticos: economia, política externa e sociedade.
Da economia. Os três artigos dedicados ao tema afirmam a existência de uma modernização, embora marcada por contradições e impasses. Guilherme Martins destaca o caminho ambivalente do Estado Novo para a superação do “modelo autárcico” quando, ao invés “de uma estratégia clara e coerente de superação […] verificou-se uma paulatina ditada pelas circunstâncias”, resultado dos “complexos compromissos entre uma corrente modernizadora e uma velha guarda” (p. 31). José Reis problematiza o distanciamento entre o processo industrial português “de costas voltadas para a sociedade”, que desta modernização pouco usufruiu, e que justifiva a permanência da condição periférica de Portugal na Europa (pp. 80-81). Parte deste crescimento, aliás, terá vindo de condicionantes externas impostas ao regime. Em linhas gerais, nesta “longa década”, manteve-se o forte desequilíbrio social e o isolamento da indústria em relação aos demais setores económicos (pp. 96-97). Nuno Valério percebe uma forte alteração nas finanças portuguesas em meados da década de 1960. Enquanto nos primeiros anos se verifica certa turbulência devido à guerra colonial, a seguir “se abriram oportunidades de aumento das despesas de fomento económico”. Não obstante a aceleração do crescimento no consulado de Marcello Caetano, Valério afirma que este processo se iniciara com Salazar, através da reforma fiscal e do III Plano de Fomento, entre os anos de 1958-1965 (pp. 105-108).
Da política externa. Os dois capítulos dedicados ao tema envolvem políticas de Estado em contexto de relações diplomáticas complexas. E, nos dois casos, a centralidade do problema ultramarino é evidente. Ribeiro de Meneses destaca um conjunto não pequeno de iniciativas diplomáticas ou militares tão confusas como contraditórias. Frente ao caos que foi aquele ano trágico de 1961 (tentativa de golpe de Botelho Moniz, perda do Estado Português da Índia; cerceamento diplomático), o regime, afastado da Europa, nada mais fazia do que tentar sobreviver (pp. 53-54). Uma sobrevivência que passava pela intransigente defesa do Ultramar, com o recrudescimento da violência e o ataque sistemático aos organismos internacionais, sobretudo a ONU, que tanto Salazar como Caetano viam com profundo desconforto (Caetano, 1971, pp. 256-7). Caetano, embora empenhado em construir uma narrativa que o demarcasse da política ultramarina de Salazar, vetou quaisquer argumentos que pusessem em xeque a “nação pluricontinental” (p. 61), ou seja, a “presença portuguesa […] naquele continente” (p. 67). Destaque também para a quase realização, em 1974 (no marcelismo, portanto), de uma aliança com países cujas políticas raciais em tudo destoavam do argumento “freiriano” tão caro ao regime (p. 51). Sérgio Neto e Reis Torgal analisam os impasses de um colonialismo constrangido por um discurso evocativo ao lado de um frágil, periférico e incapaz capitalismo (p. 218). Fazem também um balanço da legislação colonial dos anos 1930 e das divergências no seio do regime entre favoráveis e contrários à assimilação dos nativos, destacando-se, neste último campo, Marcello Caetano. A assimilação, porém, permanecia e era justificada com a criação de universidades em Angola e Moçambique e a aprovação de um “princípio de integração económica nacional” em novembro de 1961. Erigido à Presidência do Conselho, “com alguns créditos de liberal” (p. 231) e até a desconfiança de uma extrema direita que não via em Caetano um compromisso “orgânico” com o colonialismo (Martinho, 2012; Marchi, 2009), permanecia o compromisso de se manter em África. Como que um elo entre Salazar e Caetano, os autores referem-se às comemorações do Infante D. Henrique, nas quais se confirmava a “vocação carismática” e exploratória do personagem responsável pelas primeiras conquistas e pelo combate ao infiel. No discurso de Adriano Moreira, então ministro das Colónias, “a guerra contra os mouros de ontem deveria ser a luta contra o comunismo de hoje”. A defesa do ultramar significava, então, a continuidade da epopeia do século XVI, daí a importância das comemorações como a do Mundo Português (1940) ou da morte do Infante (1960). É necessário lembrar que o colonialismo português dos anos 1960 era contemporâneo de movimentos autonomistas que em Bandung (1955) afirmaram a “solidariedade aos povos ainda submetidos ao colonialismo” (p. 225). Caetano, entre o isolamento nos fora internacionais e as pressões internas (de campos por vezes contraditórios), esperou mais do que propriamente agiu. Afinal, estava ciente do quão difícil e talvez impossível era “uma solução para a guerra que não pusesse em causa a natureza do regime” (pp. 240-241).
Da sociedade. Os estudos sobre a sociedade mereceram seis capítulos. Villaverde Cabral destaca o que considera os dois extremos do período: a estagnação populacional provocada pela emigração e um inédito crescimento económico (p. 38). Dois lados da mesma moeda: o primeiro, “um voto com ou pés”, de recusa de um conflito que não lhes dizia respeito (p. 43); o segundo, o crescimento fantástico de 8% ao ano, que resultou, a um só tempo, em desequilíbrios e complexos movimentos oposicionistas. Afinal, onde passam mercadorias, igualmente passam ideias (Braudel, 1996, p. 43). À frente deste cenário, um conjunto de acontecimentos ilustrativos, ao mesmo tempo, de crise e de mudanças estruturais: as oposições militares à guerra colonial, a perda da Índia portuguesa, o movimento estudantil, a expansão urbana etc. (pp. 47-49). Na linha desta evolução marcada por desigualdades, a legislação laboral insere-se neste marco de salto “estrutural” responsável pela superação, em 1963, da agricultura pela indústria (pp. 121-122). Monteiro Fernandes faz um balanço do corporativismo desde a década de 1930 entendendo-a como uma “primeira vaga” modernizadora; na década de 1960, a segunda vaga, que é anterior ao consulado de Caetano. Como exemplo, entre outras, a lei referente às reparações por acidentes e doenças, de 1965 e, no ano seguinte, a que tocava no regime jurídico do contrato individual do trabalho (p. 132). Durante o marcelismo, a legislação do trabalho não apareceu como um tema prioritário, traduzindo-se no empenho de “prosseguir a obra legislativa iniciada poucos anos antes” (p. 137). Enfim, “retoques” houve no sentido, por exemplo, de extirpar certo argumento ideológico inviável à época. Novidade mesmo, entretanto, foi a lei de duração do trabalho cujo texto, publicado em setembro de 1971, contou com a coordenação de Baltasar Rebelo de Sousa (p. 145). Rodrigues e Carolo discutem a reforma previdenciária que, instituída em 1962, se manteve a mesma até 1984. Na base deste processo, o aumento das despesas do Estado e a tendência para a universalização de benefícios (p. 156-159). Para os autores, a reforma iniciada em 62 “marca o início da convergência com os modelos do Estado-Providência europeus” (p. 169). Quanto às políticas de saúde, elas seguiram diretrizes similares às previdenciárias. Portugal, desde o Plano Nacional de Vacinação de 1965, incorporou o conceito de saúde definido pela OMS. Ademais, criaram-se novas instituições para fomentar a pesquisa científica e o aumento de quadros especializados (p. 178), com realce para a medicina preventiva e cuidados com a saúde primária (p. 190). Quanto à justiça, o seu marco modernizador data de 1966, aquando da aprovação do novo Código Civil, e que avançaria até 1970 com a criação dos tribunais de família (p. 193). Para os autores é evidente um empenho modernizador que, originário já nos anos 1920, se manteve constante até 1966. O Código Civil seria, então, “o fim de um ciclo”. A morosidade do processo contribuiu para atenuar na letra da lei os seus aspetos fascistizantes, à semelhança da legislação colonial (p. 224). Ao mesmo tempo, reconhecem os impasses de uma lei que se quer moderna num quadro autoritário. Pena, entretanto, que um importante capítulo, dedicado à educação, se revele tão curto quanto económico na sua análise, restringindo o seu relato quase exclusivamente ao período de Salazar. Abdica-se, assim, da reflexão acerca do tão propagado período de José Veiga Simão à frente do Ministério da Educação Nacional nos anos 1970-1974 (Proença, 1998).
Os capítulos do livro oferecem ao leitor um excelente panorama do que foi a “longa década de 1960” para Portugal. Quase todos os textos vêm acompanhados de bibliografia atualizada e em alguns constam também fontes primárias, além de tabelas e gráficos que contribuem para a compreensão do leitor. Os artigos põem em questão trabalhos anteriores, tanto em relação à temporalidade da autarcia (VVAA, 1987), como do compasso ou descompasso entre um e outro chefe de Governo. Os Anos Sessenta em Portugal apresenta-se quase como uma tese, predominando a opinião de que a mudança de governo foi sensivelmente marcada pela continuidade. E uma continuidade tanto no que respeita à permanência de escolhas tendencialmente conservadoras, como também quando se verificam empenhos modernizadores no regime. Assim sendo, este trabalho contrasta com certa perspetiva que advoga a tese de uma transição, embora “falhada”, do marcelismo (Cruz e Ramos, 2012; Oliveira e Rosas, 2004). Assim dito, e guardadas as especificidades de cada autor, como também dos seus eventuais limites, o presente livro constitui leitura obrigatória para o entendimento dos últimos anos do regime do Estado Novo em Portugal.