Introdução
O impacto das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) nas dinâmicas familiares tem sido um tópico de interesse crescente no campo dos estudos sociais da família (Neves e Casimiro, 2018).1 Contudo, a nossa investigação sociológica na área tem demonstrado que urge desconstruir narrativas homogéneas e simplistas sobre família, tecnologia e sociedade - narrativas que continuam a emergir em alguma literatura académica e que são predominantes em discursos e imaginários sociais e públicos (Neves e Casimiro, 2018). Para tal - e para se compreender em profundidade as complexas articulações entre TIC e famílias -, precisamos de várias abordagens que captem características, mudanças e continuidades sociais. Entre elas, por exemplo, considerar diferentes contextos socioculturais e geográficos. Com este dossiê pretende-se responder a estas necessidades científicas e alargar a temática à comunidade de língua portuguesa.
No entanto, antes de apresentarmos este dossiê, é importante partilhar a nossa conceptualização de “família” e de “tecnologia”. Esta partilha é fundamental por dois motivos principais. Em primeiro lugar, acreditamos que ajuda a delinear e a situar as diversas contribuições dos artigos incluídos nesta coleção. Em segundo lugar, oferece possibilidades de um diálogo contínuo epistemológico, ontológico e até axiológico sobre definições e delimitações operacionais, que não se esgota nestas páginas e que pretende ultrapassar essencialismos e determinismos.
Assim, sociologicamente, a família sempre foi entendida como mais do que “parentesco” (Carsten, 2000) ou laços de sangue, embora perspetivas contemporâneas tenham atualizado paradigmas que viam a família de forma mais “objetiva” e funcionalista. A família inclui “relacionamentos” (Brynin e Ermisch, 2009), “relações íntimas” (Jamieson, 1998) e espaços/redes/configurações nos quais, além dos laços de parentesco, se estabelecem outras afinidades e significados (Wall e Gouveia, 2014) - isto sempre numa lógica de relações que se vão construindo, “fazendo” (Morgan, 2011), “mostrando” (Finch, 2007) e, como tal, são entendidas por nós e por outros como família.
Sociologicamente, a tecnologia também sempre foi vista como mais do que uma ferramenta ou um conjunto de bites (Bijker e Law, 1992; MacKenzie e Wajcman, 1999). Por um lado, a sua materialidade enquanto objeto ou ferramenta é inegável e não pode ser omitida. Por outro lado, a tecnologia interseta múltiplas dimensões sociais e simbólicas, uma vez que constitui um sistema, uma estrutura, um conjunto de valores, práticas e significados sociais (Latour, 1992). Na sua subespecialidade, a sociologia da tecnologia aborda a tecnologia enquanto sistemas, redes ou assemblages sociotécnicas - i.e., onde elementos, propriedades, interpretações e relações sociais e tecnológicas se interligam e coconstituem (Mead e Neves, 2018). Esta abordagem tem como objetivo ultrapassar determinismos tecnológicos e entendimentos binários do impacto da tecnologia, que a posiciona como exclusivamente positiva ou negativa ( Mauthner e Kazimierczak, 2018; Mead e Neves, 2018). Os estudos da família evidenciam que os contextos de usos e significados são um elemento-chave no estudo do impacto das tecnologias, podendo até considerar-se como simultaneamente positivo e negativo, dependendo de fatores sociotécnicos e de circunstâncias específicas (Carvalho et al., 2019; Neves e Casimiro, 2018; Silva, 2010). Assim, as famílias e as TIC não formam relações estáticas, moldando-se mutuamente, oferecendo quer oportunidades, quer desafios em termos de relacionamentos, apoio, intimidades, práticas, escolhas, etc.
Apresentação do dossiê
Este dossiê permite-nos aprofundar conhecimento sobre a temática das famílias e das TIC, reunindo investigação conduzida na comunidade de língua portuguesa e no âmbito da sociologia, mas também das ciências políticas e da comunicação. Após um processo aberto de chamada de trabalhos que atraiu excelentes contribuições de vários países e sobre diversos tópicos relacionados com TIC e famílias, tivemos a difícil tarefa de selecionar artigos que se relacionassem mais diretamente com o campo da família e que oferecessem diversidade de contextos e abordagens. Depois de um processo rigoroso de revisão por pares, como habitual nesta revista, é com imenso prazer que introduzimos este dossiê, unindo pesquisa conduzida em Portugal, Angola e Brasil.
No artigo intitulado “O papel da família na utilização da Internet por portugueses de 50 e mais anos: uma análise de género”, Patrícia Silva, Alice Delerue Matos e Roberto Martinez-Pecino, partindo de uma metodologia quantitativa e de uma perspetiva de género que se liga com as temáticas de envelhecimento e curso de vida, centram o foco da sua análise na problemática da exclusão digital dos adultos mais velhos. A sua investigação mostra o papel diferenciador que a família, nomeadamente, cônjuges e filhos, desempenha no uso que homens e mulheres de 50 e mais anos fazem da Internet. Os autores salientam de que forma os papéis sociais de género e a familiarização precoce com novas tecnologias, durante o exercício da atividade profissional, se revelam fatores importantes da utilização da Internet em idades mais avançadas. Nesse sentido, apresentam algumas recomendações para as políticas públicas neste campo. Embora esta investigação tenha sido conduzida antes da pandemia da COVID-19, que estamos agora a enfrentar, os seus resultados e recomendações são de grande relevância durante e após a pandemia. Isto porque, por exemplo, estamos a assistir à forte ligação entre a exclusão social e digital de pessoas idosas durante estes tempos de COVID-19 (Seifert et al., 2021).
Luena Marinho, no artigo “Proximidade e distância nas famílias transnacionais entre Angola e Portugal - o contributo das tecnologias de informação e comunicação”, mostra como as TIC são usadas no exercício de práticas parentais à distância. A partir de entrevistas realizadas a pais migrantes portugueses e angolanos e a crianças angolanas com pais migrantes, a autora reflete sobre as perceções de progenitores e crianças acerca do efeito da distância na relação parental imposta pela migração e mostra como os efeitos adversos dessa distância física (um certo desapego emocional e diminuição da autoridade parental) podem ser, em parte, mitigados através das TIC, cuja utilização possibilita a copresença e aproximação de rotinas, sentimentos e intimidades familiares. Contudo, também são discutidas as limitações da comunicação mediada pelas TIC para alguns dos pais migrantes. Circunstâncias socioculturais e económicas das diferentes famílias influenciam não só a utilização e domesticação de tecnologias na vida familiar transnacional, como as suas consequências nos relacionamentos e dinâmicas familiares. Este trabalho mostra a relevância dos estudos sobre as TIC em contextos familiares diaspóricos, caracterizados por diferentes estatutos sociais e tecnológicos, que poderão ser ainda mais relevantes em conjunturas pandémicas como a da COVID-19, que acarreta restrições na mobilidade física transfronteiriça (Brandhorst et al., 2020).
Já no texto sobre “Socialização política e as redes familiares e sociais: o papel da Internet na cultura política dos jovens no Sul do Brasil”, Jennifer Azambuja de Morais e Ana Julia Bonzanini Bernardi examinam o papel dos vários agentes de socialização na formação política dos jovens, incluindo a família, a Internet, a escola e os pares. As autoras focam-se num contexto sociocultural que é pautado por reduzida participação política jovem, conduzindo um estudo inovador no Sul do Brasil que assenta numa metodologia quantitativa. Analisando dados obtidos através de inquéritos por questionários administrados a uma amostra representativa de jovens desta região, as autoras mostram que a família continua a ser o principal agente de socialização política jovem. Mas a Internet ultrapassa a escola como segundo agente socializador. De qualquer forma, apesar das visões otimistas sobre a Internet e sites de redes sociais no desenvolvimento de culturas políticas juvenis mais alargadas e participativas, tal não se verifica neste trabalho que nos traz dados brasileiros inéditos. Este é um estudo longitudinal e as novas ondas de inquéritos permitirão perceber se a pandemia e correspondentes conjunturas sociais e políticas no Brasil terão contribuído para mudanças na socialização política juvenil e no peso dos diferentes agentes socializadores.
Conjuntamente, estes artigos evidenciam quer a relevância social, quer a complexidade da temática da família e novas tecnologias, complementando-se em três dimensões críticas: 1) investigam diferentes aspetos da vida familiar associados aos usos das tecnologias, apresentando uma abordagem complementar dos significados que a família assume; 2) consideram relações intergeracionais e o seu papel no seio da família e também no que respeita à utilização e impactos das novas tecnologias; e 3) oferecem contextos socioculturais, económicos e regionais distintos, frequentemente esquecidos na literatura internacional, nomeadamente, pesquisa conduzida em língua portuguesa e no chamado Sul Global (Angola e Brasil).
Vida familiar, uso das tic e significados de família
Os três artigos apresentados neste dossiê focam o papel da família na sua articulação com significados e usos conferidos às TIC. Porém, as portas de entrada nas temáticas familiares são diversas. O artigo que abre o dossiê (Silva et al., 2021) debruça-se sobre o modo como as relações familiares, numa perspetiva geracional e de género, impactam a utilização das TIC, em particular, da Internet. O segundo artigo (Marinho, 2021) centra a sua atenção nas famílias transnacionais, especificamente na maneira como as TIC são usadas na parentalidade exercida à distância. E no artigo de Morais e Bernardi (2021),o terceiro deste dossiê, a família é abordada como agente de socialização política e social, procurando-se compreender o seu impacto, associado ao uso da utilização da Internet, na internalização de valores democráticos por jovens do sul do Brasil. Partindo destes diferentes prismas, os autores dão-nos uma visão multidimensional de como e para que fins as TIC são empregues, da forma como são apropriadas e também domesticadas nas práticas da vida familiar.
Apesar destes diferentes ângulos ou aspetos da dinâmica e experiência de vida de famílias situadas em contextos socioeconómicos e geográficos distintos, encontramos nos três artigos abordagens completivas, que se entrecruzam com o que “pode ser” a família. Ela surge-nos como espaço “físico, relacional e simbólico” (Saraceno, 1997, p. 12), agente de um legado de normas e valores, lugar de socialização e aprendizagens, de comunicação e de suporte emocional que gera sentimentos de pertença. Estas três pesquisas mostram como, a partir das experiências da vida familiar de crianças, jovens, adultos e idosos, se transmitem e partilham informações, conhecimentos, afetos, cuidados e intimidades, e, também, como para estes indivíduos, a família pode assumir um lugar relevante a partir do qual mantêm laços e constroem redes que contribuem para a sua integração social.
Relações intergeracionais nas dinâmicas familiares e tecnológicas
As três contribuições apresentadas neste dossiê não esquecem o papel das relações intergeracionais nas dinâmicas, práticas, valores e significados familiares e tecnológicos. O primeiro artigo (Silva et al., 2021) mostra que dimensões familiares e geracionais são significativas no âmbito das novas tecnologias, evidenciando que número de filhos, frequência de contacto familiar e distância geográfica estão associados com a utilização da Internet para mulheres com 50 e mais anos de idade. Tais associações não são encontradas para homens nas mesmas faixas etárias, sugerindo conexões e práticas geracionais e familiares influenciadas por dimensões de género. Como discutem os autores, as mulheres mais velhas tendem a indicar, mais do que homens, a família como motivação para usos de novas tecnologias; adicionalmente há uma persistente justaposição do estatuto social da mulher com o de mãe na sociedade portuguesa. O segundo artigo (Marinho, 2021) discute práticas parentais à distância e relacionamentos entre pais (adultos) e filhos (crianças), situando narrativas que reforçam ideais geracionais familiares, isto é, que descrevem progenitores adultos como cuidadores e provedores, e crianças como recetoras e beneficiárias. Mas, simultaneamente, essas narrativas valorizam trocas geracionais bidirecionais menos tradicionalistas: pais migrantes também se tornam recetores e beneficiários de intimidades e afetos facultados por filhos; e crianças e filhos jovens também se tornam cuidadores e provedores de apoio emocional e até tecnológico. Aliás, estudos sobre TIC e famílias transnacionais com pais idosos e filhos adultos exibem uma certa “reversão” de papéis (filhos passando a provedores principais e pais a recetores); embora também exponham as nuances em torno deste imaginário de papéis e das permutações que acabam por acontecer na familiaridade geracional à distância (Cuban, 2018). O terceiro artigo (Morais e Bernardi, 2021) também se centra nas relações familiares entre pais e filhos, mas aqui como agentes socializadores políticos e sociais. Como conclui este estudo, a família e as suas relações geracionais continuam a ser o principal agente de socialização política, independentemente da prevalência social da utilização de novas tecnologias pelos mais jovens.
Assim, estes três artigos expõem subsidiariedades indispensáveis na abordagem geracional, por vezes, simplificada ou omissa na investigação sobre o tópico (Neves e Casimiro, 2018; Barnwell et al., 2021). As gerações não são blocos homogéneos, imutáveis ou hirtos e as relações geracionais não são apenas assentes em clivagens, dicotomias ou oposições - contudo, continuam a ser representadas desse modo em estudos sociais e tecnológicos. No domínio da vida familiar e intimidades digitais na contemporaneidade, a análise de gerações tem de reconhecer os contextos sociotécnicos que as atravessam e as condições estruturais e agênticas que distintamente moldam famílias e seus membros. Tal como o estudo do impacto das novas tecnologias tem de ultrapassar binários (usar vs. não-usar; positivo vs. negativo) e ir além da frequência de utilização (o “quanto” utiliza) para revelar os seus contextos, usos e significados (o “como”, “porque”, “quando”, etc.), o mesmo tem de ser dito relativamente às abordagens geracionais, que, por vezes, esquecem desigualdades intrageracionais e perpetuam categorizações dominantes que ofuscam multiplicidades, reflexividades e condições dentro de cada geração.
Sul global e norte global
A terceira dimensão crítica que liga este dossiê é a compilação, pela primeira vez, de pesquisa sobre famílias e TIC realizada em diferentes países de língua oficial portuguesa e em distintos contextos socioculturais. Esta coleção colmata, assim, uma lacuna na literatura académica no campo das famílias e novas tecnologias. Evidencia ainda a importância de conhecimentos e experiências do chamado Sul Global, neste caso, Angola e Brasil, e de um país como Portugal, que, embora seja categorizado como pertencendo ao Norte Global, é usualmente percecionado como periférico no que concerne a estruturas de produção de conhecimento académico. Este estatuto de “periferia” leva, por vezes, à propagação de estereótipos científicos - a título ilustrativo, a classificação habitual de Portugal contemporâneo como sociedade apenas familiarista na literatura académica internacional tem sido questionada pela investigação sociológica portuguesa (Torres et al., 2013). Contudo, é fundamental reconhecer o papel de Portugal como força colonizadora e perpetuadora de culturas epistémicas eurocêntricas que não valorizam suficientemente a ciência e os saberes oriundos de países que sofreram o jugo colonialista (Santos, 2008), como Angola e Brasil. Embora esta diferenciação entre o Norte Global e o Sul Global possa ser vista como estanque e binária, negligenciando os seus vários regionalismos e localismos, este enquadramento tem alguma utilidade na medida em que ajuda a contestar perspetivas e linguagens científicas que são entendidas como universais (eventualmente, tomando um pendor imperialista) e que excluem ou invalidam a erudição que não é produzida pelo Norte Global.
Beneficiando de visões pós-coloniais, os estudos da família e da tecnologia também têm que ultrapassar o paradigma hegemónico de saberes e abordagens. Embora esta coleção não se foque diretamente nestas discussões, parte de uma matriz de diversidade epistemológica e ontológica, que tenta abrir estas problemáticas e reconhecer a relevância das distintas comunidades de língua portuguesa, quer a nível macro e mais global, quer a nível micro e mais localizado. Os três artigos salientam quer tendências gerais, quer especificidades culturais nos seus resultados. Por exemplo, o artigo de Luena Marinho oferece uma perspetiva comparativa de famílias em Angola e em Portugal, chamando a atenção para as circunstâncias sociais, culturais e políticas de migração que não só afetam culturas de organização e práticas familiares (famílias angolanas tendem a ter famílias mais alargadas e valores de solidariedade familiar mais fortes comparando com as portuguesas), mas também os usos de tecnologias e seus impactos desiguais. Este é um campo frutífero de investigação para a sociologia e demais ciências sociais, urgindo ainda contemplar temas em falta nesta coleção, desde análises não-heteronormativas da família até perspetivas interseccionais e de curso de vida que examinam contextos estruturais e agênticos.
Famílias e tic em contexto de pandemia: reflexões finais
A pandemia da COVID-19 acentuou o papel das TIC, como a Internet e sites de redes sociais, no seio da família contemporânea (Lebow, 2020). Embora este dossiê não se foque na pandemia da COVID-19, pois o processo de seleção e revisão dos artigos que o compõem antecede a mesma, é incontornável oferecer aos leitores uma reflexão sobre a relevância das TIC no contexto familiar pandémico. Aliás, este dossiê contribui para contextualizar uma temática de grande pertinência durante e após a pandemia, fornecendo evidência-base para se analisar mudanças ou continuidades sociotécnicas. Sabemos que a abordagem sociológica é crítica e fundamental durante pandemias e desastres (Dynes et al., 1987; Peacock et al., 1997), sobretudo se a disciplina quer contribuir ativamente para o desenho de políticas sociais e projetos de recuperação pós-pandémicos (Matthewman e Huppatz, 2020).
Investigação recente mostra que as sociabilidades, o trabalho e o ensino foram empurrados, em larga escala, para o espaço da casa, o que não só estreitou as noções de privado e público (Almeida et al., 2015), como expôs desigualdades (por exemplo, de género e geracionais) em torno das quais a vida familiar gira/gravita (Faircloth et al., 2020). A noção de wired family ( Meszaros, 2004) ganhou um sentido renovado no decurso do século XXI global e, mais ainda, nestas circunstâncias pandémicas. Em muitos casos, as famílias tiveram de se adaptar subitamente ao teletrabalho, ao ensino digital e à sociabilidade à distância (Carmo et al., 2020; Carvalho et al., 2021; Lebow, 2020). Este contexto de grandes encruzilhadas mostrou os benefícios, possibilidades e oportunidades, mas também os desafios, limitações, riscos e implicações de pendor mais negativo das tecnologias digitais como ferramentas, estruturas, valores e práticas sociais.
Em termos de implicações positivas das TIC ao nível familiar, destacam-se a possibilidade de manutenção das trajetórias educativas por parte de crianças e jovens, com a incorporação das atividades escolares no espaço da casa (Bubb e Jones, 2020; Cárdenas, 2020), bem como a quebra de isolamento social, possível através de videoconferências, mensagens de texto, chamadas de voz ou aplicações digitais (Lebow, 2020; Neves et al., 2019). As TIC podem também funcionar como um meio para obtenção ou conservação de alguma autonomia, ou de espaço/tempo próprios, em contexto de intimidade familiar - em particular, podem contribuir para o evitar (contínuo, por vezes) de situações face-a-face: “s’ échapper du présentiel familial” (Widmer et al., 2020, p. 162) -, sobretudo, em situação de confinamento, que obriga as famílias à partilha quotidiana de espaços nem sempre amplos ou com várias divisões. Adicionalmente, as TIC podem contribuir para facilitar a gestão quotidiana do ambiente doméstico (Giuseppe, 2002) e o aprofundamento e/ou restabelecimento de laços familiares, inclusivamente entre gerações (Neves et al., 2019).
Quanto ao impacto negativo das TIC na vida familiar no decurso da corrente pandemia, importa referir, entre outros aspetos, a dificuldade da conciliação do teletrabalho com a vida familiar (Hjálmsdóttir e Bjarnadóttir, 2020; Magalhães et al., 2020; Vyas e Butakhieo, 2021), principalmente, durante confinamentos obrigatórios em que as escolas fecharam. Destaca-se, neste âmbito, a sobrecarga de trabalho doméstico, físico e emocional sobre as mulheres mães e cuidadoras (Hipp e Bünnin, 2021; Power, 2020), especialmente, as que vivem sós com filhos ou outros dependentes (Hertz et al., 2020).
O cansaço provocado pelo incremento das tecnologias digitais ao nível profissional e educativo tem sido igualmente reportado na literatura: a dificuldade em desligar do trabalho fora das horas laborais (Navarro e Helms, 2020) ou a chamada “fadiga Zoom” (Nadler, 2020) são disso um exemplo. Surgem ainda questões de controlo e de privacidade, desde pressões exercidas por algumas entidades patronais para que os seus empregados trabalhem para além das horas legais, retirando tempo que seria dedicado à família (Navarro e Helms, 2020) a uma lógica de sociedade de vigilância digital que invade espaços familiares e que pode aumentar mecanismos de controlo e repressão entre os próprios membros da família (Zuboff, apudCosta, 2020).
É ainda essencial enfatizar o reforço das desigualdades sociais provocadas pela infoexclusão no acesso a informação, bens e serviços fundamentais, como a telessaúde, que, por sua vez, têm impacto na própria gestão do vírus (Carmo et al., 2020; Khilnani et al., 2020). Relacionado com este reforço está também a ampliação de estereótipos sociais através das TIC, que exacerbam imagens e discursos geracionais redutores, sobretudo, para as pessoas idosas (com 65+ anos de idade), que são vistas uniformemente como vulneráveis e dependentes, e para os jovens, que são vistos como egoístas ou risk-takers (Cook et al., 2021). Estes estereótipos e scripts são ademais pertinentes para o estudo das famílias e suas composições intergeracionais. Apesar da pandemia da COVID-19 ainda estar a decorrer aquando da publicação deste dossiê, reunimos aqui inúmeras pistas de investigação para se pensar esta temática e as suas repercussões.
Concluindo, o contexto pandémico tem mostrado a importância de se estudar mais aprofundadamente as várias relações entre as TIC e famílias, tal como as suas consequências. Os conhecimentos a este nível mostram-se imprescindíveis na reconstrução de um mundo pós-pandémico, que se quer mais justo e menos desigual. Ideias veiculadas em meios de comunicação social e online como as de que o vírus era “democraticamente contagioso”2 e de que estamos todos “no mesmo barco”3 depressa se revelaram incorretas. Algumas famílias (e países, comunidades, grupos, indivíduos) serão mais afetadas pela pobreza, discriminação e exclusão social e digital, tornando-se mais desiguais e vulneráveis do que outras (Schweiger, 2020), facto revelador das origens sociais e económicas desta pandemia. Como demonstrado pelos artigos deste dossiê, a família - em toda a sua complexidade e envolvendo dinâmicas positivas e/ou negativas - continua a ser predominante nas nossas vidas e sociedades quer como unidade ou estrutura social, quer como espaço agêntico e de ação individual e coletiva. A sua predominância e ramificações a nível local e global ampliam-se em tempos de crise, risco e disparidade sociotécnica.