Introdução
Para reconhecer como uma controvérsia é indissociável de um processo de subjetivação política, permeada por múltiplas experiências, neste estudo procuramos compreender as controvérsias e os conflitos em torno do funcionamento das feiras livres na fronteira Brasil-Bolívia. Mais especificamente, analisaremos a ação pública nas cidades (Cefaï, 2007), destacando como as provas e as disputas se desdobraram a partir dos porta-vozes (Lemieux, 2007) das feiras em Corumbá (Mato Grosso do Sul-Brasil), desde a sua idealização em 1943, passando pela sua abertura (1959) e sucessivas interrupções, até chegarmos aos dias atuais, configurando, assim, uma experiência pública (Cefaï e Terzi, 2012). Através de um processo de investigação pública (Dewey, 1938), propomos interpretar algumas competências políticas em construção à volta de uma causa comum: a participação dos feirantes bolivianos nas feiras livres da cidade, o que também provoca uma certa tensão em alguns atores da região, como os comerciantes e os órgãos públicos de fiscalização, todos brasileiros. As questões sobre atores e problemas públicos levam-nos a uma análise da experiência pública.
Este estudo foi realizado na fronteira Brasil-Bolívia. A sua motivação decorre do facto de os estudos fronteiriços estarem na ordem do dia ( Grimson e Vila, 2002; Hall, 2009; Telles, 2010; Wilson e Donnan, 2012; Cardin e Albuquerque, 2018; Santo e Voks, 2020).
Como nos ensinam Wilson e Donnan (2012), o mundo está cheio de fronteiras internacionais, devido às nossas formas de vida atuais (interconetividade) e circulação mundial. Contudo, mais do que focar-nos na multiplicação de fronteiras internacionais, mostra-se necessário compreendê-las na sua pluralidade, seja a partir de nações e Estados, ou em extensão a outras fronteiras, ou em fronteiras geopolíticas, como as cidades, regiões e governos supranacionais. Nessa ampla possibilidade, o interesse dos investigadores é tanto identificar as principais forças de mudança, quanto apreender novas liberdades, novos movimentos, novas mobilidades, novas identidades, novas cidadanias, novas formas de capital, trabalho e consumo e, ainda, novas formas de fazer política.
Este estudo foi realizado em Corumbá, cidade fronteiriça com 240 anos, reconhecida como a capital do Pantanal, a maior área alagada do mundo. Todavia, também é lembrada pelo limite internacional com a Bolívia,1 o que, na maioria das vezes, é explorado pelos média através de um discurso e imaginário negativo, uma imagem da fronteira construída a partir de um território exclusivamente de atos ilícitos e contravenções, ou melhor, uma fronteira com o fim do país e a porta de entrada para o tráfico de armas e drogas. Isto acaba por categorizar a fronteira, relativamente ao resto do país, como um retrato fiel da realidade (Santo, 2018). Surge, então, a necessidade de colocar a fronteira no centro das discussões e de amplificar o seu sentido (Grimson e Vila, 2002), para, então, a conceber como um espaço de integração e cooperação entre os países.
Um desses espaços de integração na fronteira Brasil-Bolívia são as feiras livres, verdadeiros pontos de encontro da população fronteiriça formada, principalmente, por brasileiros e bolivianos. No auge de seus 60 anos de existência, a participação dos feirantes bolivianos é, de vez em quando, questionada pelo poder público local. Demonstraremos nas próximas páginas que, ao longo desse período, diversas feiras foram encerradas e reabertas devido à ação dos atores desse território. A última discussão mais intensa em torno dessa participação ressurgiu em 2013, quando o governo local fechou a Feira Brasbol (abreviação de Brasil-Bolívia), um centro comercial com 18 anos, que se assemelhava a uma feira e que funcionava nos interstícios da legalidade e da ilegalidade (Telles, 2010).
É preciso registar, desde já, que percebemos as feiras como algo além de um simples mercado. A feira é uma feição, um arranjo instituído num determinado lugar. Muito mais do que comércio, as feiras são redes sociais cosidas nos interstícios, nos percursos, no tempo e em diferentes objetivações quotidianas. É marcada por jogos de poder e de força que, por vezes, se expressam entre a hibridização do formal-informal, do legal-ilegal e também do ilícito. É um ponto de encontro no qual ocorrem as relações, as sociabilidades e as demais experiências de uma coletividade.
Este estudo justifica-se, pois é cada vez mais urgente interpretar as cidades enquanto laboratório público (Dewey, 1938), que exige investigação para se captar como a ordem pública é coproduzida pelas discussões e operações de múltiplos atores nas cidades. As cidades são o espaço no qual uma identidade coletiva pode emergir devido aos problemas públicos vigentes e à possibilidade de os abordar concretamente, quando os atores se mobilizam em busca da sua solução (Dewey, 1927). Por isso, identificar e analisar a configuração da experiência pública das cidades mostra-se oportuno, pela simples razão de as cidades se encontrarem na encruzilhada das diversas agitações do nosso tempo, em factos como conflitos armados, economia, clima, pobreza, pandemias, entre outros. Portanto, a cidade torna-se num assunto que deve ser tornado prioritário na agenda política e de investigação, para que os problemas públicos se tornem visíveis, venham à tona, demonstrando a problematização do coletivo (Cefaï e Terzi, 2012) que, muitas vezes, ultrapassa décadas.
Quanto à organização deste trabalho, as diferentes partes que compõem o texto convidam os investigadores a refletir acerca da importância territorial nos estudos fronteiriços e a compreender como a investigação pública pragmatista ajuda a traduzir a configuração da experiência pública (Cefaï e Terzi, 2012). Neste caso, as dinâmicas coletivas produzidas em torno da formação e do estabelecimento das feiras na fronteira Brasil-Bolívia. Não apresentaremos um modelo, mas sim um método de análise e investigação empírica próprio, adotado para resgatar as memórias, valorizar experiências e focalizar-se no enfrentamento das situações problemáticas (Dewey, 1929). É o que descreveremos mais adiante.
Desenho da pesquisa
Esta pesquisa (teórico-empírica) parte de uma abordagem qualitativa, operacionalizada pelo trabalho de campo etnográfico que permite reconhecer um novo tipo de reivindicação de ação pública (Cefaï, 2013), com o qual o investigador consegue construir passarelas entre as diferentes cenas da vida pública (Cefaï, 2007), identificando as situações problemáticas, a formação do público e as suas ações coletivas, encenadas e argumentadas diante dos mais vastos auditórios. A etnografia foi realizada através da articulação de várias técnicas de pesquisa qualitativas (Denzin e Lincoln, 2000): revisão bibliográfica, levantamento e análise de documentos, observação direta, entrevistas de respondentes e conversas com informantes.
Iniciámos esta incursão através da revisão bibliográfica para identificar trabalhos correlacionados com as palavras-chave deste estudo, seguindo para a investigação documental que aconteceu em três momentos.
Primeiro, na internet, onde encontrámos leis e decretos, além de matérias jornalísticas mais recentes sobre as feiras de Corumbá. Segundo, no acervo da Câmara Municipal de Corumbá, onde tivemos acesso a atas e projetos-lei do início das feiras. O terceiro momento foi realizado no Núcleo de Documentação Histórica da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, que nos permitiu ter acesso às edições dos jornais da década de 1960 e início dos anos 2000, possibilitando, desta forma, religar e reconstituir a trajetória de configuração do problema público.
Posteriormente, iniciámos o trabalho de campo nas feiras, que observámos diretamente ao longo de 17 meses, além da realização de 60 entrevistas (com feirantes, consumidores e gestores da prefeitura), e 10 conversas informais (com feirantes e gestores da prefeitura). Além do mais, mantivemos o sigilo dos entrevistados de modo que, quando necessário, são representados como E.1 para o Entrevistado 1; E.2, E.3, e assim sucessivamente para os restantes entrevistados.
Analisámos tudo isto sob a ótica da sociologia dos problemas públicos de base pragmatista (Dewey, 1927; Lemieux, 2007; Cefaï, 2007; Cefaï e Terzi, 2012; Andion et al., 2017). Este foco permitiu escrutinar a ação pública e a capacidade crítica dos atores a partir das suas práticas, incluindo as temporalidades que ultrapassam o tempo presente, levando o investigador a identificar a constituição histórica de certos “esquemas de raciocínio e formas de ação compartilhadas, que, para os contemporâneos que ele estuda, se tornaram banais, mas, em certos casos, socialmente obrigatório investir, tais como aqueles que lhes permitem formular publicamente acusações” (Barthe et al., 2016, pp.92). Assim, foi possível identificar a origem da dinâmica conflituosa da feira livre e, também, como a ação dos micropúblicos se inscreve neste cenário.
Os estudos fronteiriços e a experiência pública
As cidades estão a enfrentar toda uma gama de desafios nas questões sociais, políticas, ambientais e económicas. Os atores agem para mudar a sociedade e, cada vez mais, mobilizam-se para enfrentar diferentes problemas públicos (Andion et al., 2017). Um problema torna-se público quando representa o sentimento de uma coletividade (Dewey, 1927). Surge a partir de um momento crítico na vida dos atores (Boltanski e Thévenot, 2006) quando estes percebem que já não é possível viver numa determinada instabilidade e começam a articular-se em diferentes ações coletivas, desdobramentos práticos orientados para uma preocupação com um bem público a promover, ou um mal a evitar (Dewey, 1927; Cefaï, 2007). Quer dizer, os atores associam-se na procura de soluções novas e mais sustentáveis para resolver diferentes questões do seu dia a dia. Por isso, o debate académico, além do político, sobre a necessidade de lançar novos olhares e criar propostas para integrar as dimensões dos problemas sociais, ambientais e urbanos dos territórios, intensificou-se (Lévesque, 2009).
A retoma dos estudos territoriais visa fornecer subsídios para uma melhor compreensão das ações e práticas da região e das possibilidades de desenvolvimento de uma dada localidade (Lévesque, 2009). Apesar dos esforços, existe ainda um déficit muito grande quando os estudos das cidades focam as cidades fronteiriças (Lasconjarias, 2004; Imamura, 2014; Souza, 2018), em comparação com outros centros urbanos.
Nos estudos fronteiriços, por vezes, o conceito de fronteira pode indicar tanto um tópico académico quanto a expansão territorial (Wilson e Donnan, 2012; Imamura, 2014). Mas, como Kaiser (1998) colocou, chama a atenção que, ao longo do tempo, o termo fronteira tem vindo a ser negligenciado e forjado nas investigações e nos discursos políticos, como um caráter setorial de fim do território nacional.
Lasconjarias (2004), aponta que a fronteira é formada por dois ou mais países em porções territoriais nacionais distintas; contudo, com intensa fluidez, ação e mobilidades. Todavia, muito mais do que centrar esforços na eterna discussão sobre frentes, limites e regiões de fronteira (Cardin e Albuquerque, 2018), uma análise social da fronteira mostra-se oportuna, pois a fronteira passou a ser vista como o centro de discussão e integração entre diferentes países. Tal como defendem Grimson e Vila (2002), esta pesquisa parte da corrente que defende ser mais plausível, em estudos territoriais, atravessar as fronteiras do que reforçar as fronteiras. Nesta metáfora (atravessar as fronteiras), passamos a interpretá-las, a partir do território, como zonas ou regiões movidas e alteradas pelo espaço e pelo tempo.
Segundo Wilson e Donnan (2012), os estudos da fronteira mostram-se significativos, pois a maioria dos acontecimentos em torno da economia política nacional e internacional acontecem nas zonas fronteiriças, como as relacionadas com a imigração, o comércio, o contrabando e a segurança, as trocas comerciais, culturais e sociais, além das questões ecológicas. Os estudos de fronteiras mostram-se significativos, pois informam a vida pública - mostram o ato e a experiência de não só cruzar as fronteiras, mas também de viver nas fronteiras, além de revelar importantes informações que podem ser utilizadas por quem elabora as políticas (pelo menos deveriam ser utilizadas).
Portanto, esta pesquisa compreende a fronteira a partir dos estudos de Nogueira (2007), ou seja, a “fronteira vivida” - tipo de fronteira que apresenta mais significado para a sociedade que está na fronteira, pois reflete e remete ao seu quotidiano. O foco de análise parte das “práticas dos atores da fronteira” (Grimson e Vila, 2002), paralelamente à maioria dos trabalhos de cunho funcionalista e institucionalista que vão analisar a fronteira a partir do funcionamento de determinadas políticas públicas, para definir o sucesso ou o insucesso do desenvolvimento nessas regiões (Krugër et al., 2017).
A fronteira, então, não se compreende de forma setorial, exclusivamente como fim do Estado, ou um território exclusivo de eventos ilícitos (Kaiser, 1998; Lasconjarias, 2004), mas como um espaço onde a vida acontece - razão pela qual é preciso ampliar o seu sentido e estudá-la a partir das práticas e experiência dos atores, procurando apreender a produção da interação social no seu interior através da ação coletiva dos atores, e como isto determina a vida na fronteira.
Isto porque, segundo Grimson e Vila (2002), nas diversas atribuições ao sentido de fronteira, os atores foram esquecidos, pois os investigadores obscureceram o conflito social e cultural que frequentemente caracteriza as fronteiras, independente da separação física que existe entre elas. Tal posicionamento impede que as relações assimétricas entre os atores sejam reveladas, o que pode mascarar algumas localidades. Os estudos nas cidades fronteiriças evitam, por vezes, a análise dos conflitos e procuram reafirmar a integração regional, assegurando que os atores de um lado e de outro apenas demonstram irmandade e fraternidade, ou a não-existência de fronteiras entre as populações locais.
Por isso, esta investigação interpreta a fronteira como “zona”, sendo de natureza simbólica e material, um território formado por diferentes ações e práticas dos atores-redes (Latour, 2012), exteriorizado ou manifestado através de interações, símbolos, valores, formas de vida, falas e ritos partilhados pelos atores que procuram negociar uma dada ordem (Dewey, 1927). A análise pragmatista, como a aqui utilizada, contribui para os estudos fronteiriços dando prioridade a um olhar para as experiências dos atores, que constantemente reconstroem os sentidos de fronteira.
As investigações sobre experiência pública estão em voga (Cefaï e Terzi, 2012). O estudo sobre disputas e conflitos no pragmatismo expressa-se na forma de controvérsia jornalística, processos judiciais, científicos, batalha política ou arbitragem administrativa (Cefaï, 2007). A ordem pública satura-se destes diferentes argumentos, sendo desejada pelos atores. O pragmatismo, enquanto método (Dewey, 1929), contribui para identificar a situação problemática (qualificação de uma perturbação ou distúrbio como problemática) e a sua publicitação (inúmeras atividades que levam à constituição do público em torno do problema). A dinâmica coletiva cria campos de experiência, no qual se apresentam cenas, argumentadas e justificadas pelos atores, que tentam inscrever as suas causas (Cefaï e Terzi, 2012). Mais cedo ou mais tarde, este problema envolverá os órgãos públicos do Estado (Dewey, 1927), como as prefeituras ou o ministério público. Por isso, a análise da trajetória do problema público exige (re)conhecer as políticas/leis vigentes, visto que este problema vai transformando-se, ao longo do tempo, e institucionalizando-se através da judicialização, momento em que o Estado vai/terá de resolver o problema.
Quando o problema se torna público, deixa de ser particular e passa a ser discutido no espaço público, por diversos atores que, desde diferentes posições, avaliam, deliberam e julgam os argumentos (Cefaï, 2007). A cidade é um destes locais, um laboratório de experimentação pública em que a ação coletiva deve ser testada para entender de que maneira uma dada ação coletiva resolve os problemas que afetam o território.
Sobre o pragmatismo, são vários os caminhos possíveis. As teorias tornam--se instrumentos e não respostas aos enigmas que ajudam, na investigação, a entender o problema, a formular abordagens para a sua resolução e a avaliar as consequências das ações (prática) dos atores investigados (Dewey, 1929). Por isso é preciso, ao estudar as cidades, ter em mente que estas são um local que comporta variadas convivências dos atores, impulsionados por diferentes motivos, em momentos históricos particulares e com interesses diversos. Daí a necessidade da originalidade e de desenvolver métodos de análise e investigação que propiciem um melhor entendimento das fronteiras, uma região com vivas e distintas complexidades.
Condições que antecedem a investigação
Sato (2007) aponta que as narrativas em torno da origem das feiras são diferentes. A mais remota estaria associada ao século IX, na Europa, época em que os mercados locais eram organizados com o objetivo de fornecer à população produtos alimentícios de primeira necessidade. Hoje, as feiras possuem diferentes feições, enraizadas principalmente em costumes e hábitos locais, o que explica as características muito particulares das diferentes feiras livres espalhadas pelo Brasil.
Em Corumbá, os debates acerca da feira livre remontam ao ano de 1943, com efetivação na década de 1950. É, portanto, uma atividade histórica na cidade, com mais de seis décadas de existência, e faz parte do quotidiano da população fronteiriça. Hoje acontece sete vezes por semana. Também existe um centro comercial, semelhante a uma feira, que funciona na cidade. Originalmente, de acordo com Santo (2015), as feiras teriam sido idealizadas como canais que comercializavam o excedente da produção rural. Entretanto, as feiras localizadas na fronteira Brasil-Bolívia resistem às suas características particulares e apresentam algumas peculiaridades. Onde deveriam ser comercializados apenas produtos agrícolas, são também encontrados produtos falsificados, como CD e DVD, roupas, plantas, carne bovina, leite in natura, brinquedos, móveis, alimentos prontos a ser consumidos (como pastéis e tapioca) e outros artefactos, como se encontra retratado na Figura 1.
Todos os dias da semana, inúmeros brasileiros e bolivianos apoderam-se de algumas ruas, criando uma relação social única. Esta feira chama tanto a atenção que diferentes programas de televisão procuram, frequentemente, apresentar a sua dimensão e características, que ultrapassam a função económica, abrangendo também uma grande importância social e cultural, com grande potencial turístico, que precisa de ser mais bem trabalhado. Nota-se, portanto, que toda essa extensão da fronteira Brasil-Bolívia oferece vantagens que devem ser exploradas com vista à integração e ao desenvolvimento das cidades vizinhas.
Todavia, são estas próprias particularidades que caracterizam as feiras que podem gerar um verdadeiro entrave ao seu funcionamento, pois a participação dos feirantes bolivianos é constantemente retomada e (re)discutida pelo poder público local, principalmente devido à pressão dos comerciantes brasileiros. O risco de proibição ressurgiu a partir do escândalo2 (Boltanski e Thévenot, 1999) ocorrido em 2013, com o encerramento da Feira Brasbol.
Com esta interrupção, vários feirantes que participavam nessa feira e nas feiras livres começaram a mobilizar-se em torno da controvérsia instaurada: a definição do que se podia comercializar nas feiras, sob a alegação, por parte do governo/comerciantes brasileiros, de que os produtos vinham da Bolívia e não eram taxados. Além disso, as mobilizações já reclamavam que havia um problema não oficializado pelo discurso político: a participação do feirante boliviano nas feiras de Corumbá. E.1 - um feirante da antiga Feira Brasbol argumenta:
Na época do fechamento houve muito preconceito, opressão e abuso de poder por parte das fiscais brasileiros. Apreenderam todos os produtos e nos retiraram do local. Não compreendem que, no dia a dia, a feira também é a cara da cidade; todos nós, brasileiros e bolivianos, precisamos trabalhar, pois nossas famílias vivem aqui. A feira é tradição e nós também contribuímos com a cidade.
Temos aqui, no caso do funcionamento e da gestão das feiras livres na fronteira Brasil-Bolívia, uma situação indeterminada que evoca uma investigação (Dewey, 1938). Trata-se da “urgência social” (Cefaï, 2013) que mobiliza diversos atores que se posicionam a favor ou contra a participação dos bolivianos e a venda de produtos diversificados. O que esses feirantes procuram é, no sentido de Dewey (1929), sempre indeterminado, além de ações coletivas que pretendem a transformação do mundo social. Escândalos, polémicas e controvérsias são considerados momentos efervescentes com que os atores podem desafiar, a partir das mobilizações coletivas, reivindicar direitos, questionar poderes, (re)distribuir grandezas e a (re)criar dispositivos que impactarão o seu futuro (Boltanski e Thévenot, 2006; Lemieux, 2007). Conforme será apresentado a seguir, a abertura e o encerramento de feiras é um problema histórico em Corumbá. Depois, a emergência destes atores deve ser reinserida na arena política com vista a ampliar o debate em torno do problema público (Dewey, 1927).
Situação problemática: desdobramentos nas feiras livres da fronteira
Nesta etapa, apresentaremos a trajetória das controvérsias em torno da comercialização de produtos e da presença do feirante boliviano nas feiras de Corumbá. Em termos metodológicos (Dewey, 1929), transformámos, durante o processo de investigação, a situação indeterminada em problemática. A sua qualificação é feita na incursão do campo (etnografia) que procura a transformação parcial da situação problemática em situação determinada, quando os factos refletem também o ato de ter uma experiência (Dewey, 1929), no sentido de experienciar, conhecer algo, viver a vida como ela é. Isto será demonstrado a partir de três momentos que indicam o aparecimento da feira, algumas características e os principais motivos que originaram a controvérsia.
Do surgimento das feiras à feira do boliviano
Através da investigação documental, é possível afirmar que, em Corumbá, foi a partir do Projeto-Lei n.º 37 de 12/6/1943, que começou a ser discutida a criação da feira livre. Este projeto previa que a feira fosse realizada no centro da cidade. Mas, só em 5/5/1952, é que a Câmara Municipal consolidou todas os processos necessários à criação da feira, com a aprovação da Lei Municipal n.º 58, de 5/5/1952. Mesmo criada, os registos indicam que a feira só começou efetivamente em 3/5/1959. Não há justificações na Câmara do porquê de a feira, mesmo estando aprovada (1952), só se tenha iniciado nove anos depois (1959). A reportagem do jornal Tribuna (edição n.º 17.731 de 3/5/1960), confirma a primeira feira nessa data, e destacou o êxito e a aceitação pelos moradores.
Desde o seu início, a feira sempre foi regulamentada por algum instrumento legal. A Lei 58/1952 foi o primeiro dispositivo para a criação e gestão de feiras. Na época, contou com a mobilização de associações de bairro e vereadores que lutaram pela sua aprovação. Em registos de atas encontrados na Câmara Municipal de Corumbá, é possível destacar alguns argumentos:
Senhor Presidente, designada relatora do projeto que cria a Feira Livre nesta cidade, sou de parecer que ela seja instalada com maior brevidade, para proporcionar grandes benefícios à população corumbaense, principalmente à classe pobre, que poderá adquirir os produtos por um preço razoável, visto que os abusos por parte de certos vendedores sem escrúpulos não permitem que essa classe tenha uma alimentação sadia, como seja a de verduras, frutas e legumes, que são indispensáveis à conservação da saúde [Nathercia Pompeu, Vereadora, em 02-04-1952].
Poucas são as cidades que não dispõem mesmo de um mercado e ainda muito poucas as que não têm a sua Feira Livre. Em nosso Estado, sabemos que existe a Feira nas cidades de Três Lagoas, Campo Grande […] logo, por exceção lamentável, por certo, está a nossa Corumbá que não dispõe nem de mercado e nem de feira livre, ficando o produtor à mercê dos intermediários e o povo, sujeito aos escorchantes preços que lhes são impostos por tais desalmados sugadores [Geraldino Martins, Vereador, em 06-08-1951].
Identificámos, a partir do discurso dos vereadores e de diversos números do jornal Tribuna, um grande problema público da época: a população mais carente tem dificuldade em aceder a alimentos básicos e com preços acessíveis. Essa dificuldade pode ser compreendida pela localização geográfica de Corumbá, onde, até à década de 1960, o único acesso à cidade pelo Brasil se fazia por uma estrada de terra, ou pelo rio Paraguai. Também não havia contacto territorial com a Bolívia; o comboio só surgiu em 1955. Nessa época, a comunicação com este país era feita via fluvial (Canal do Tamengo). Os diversos registos permitem concluir que, a partir deste problema, os vereadores, a sociedade civil, as associações de bairro, os feirantes, bem como os comerciantes da época, começaram a apresentar argumentos desde diferentes posições para a abertura e regulação da feira livre.
Durante os anos de 1959-1960, Corumbá tinha três feiras, que aconteciam em diferentes pontos da cidade. Em 1959, a feira de domingo já contava com 133 feirantes. As diferentes localizações permitiram que a população tivesse acesso a verduras, legumes, frutas e a outros produtos por menor preço (Santo, 2015). Neste período, Corumbá experimentou um crescimento económico e populacional, justificado principalmente pela abertura de indústrias na cidade, somada ao processo do êxodo rural (famílias oriundas da região de Pantanal). Segundo o jornal Tribuna (n.º 17.460, de 3/6/1959), isto explica a expansão dos bairros e o excedente de mão de obra presente na cidade. Apesar da grande aceitação das feiras, publicitadas pelos jornais da época, poucos estudos indicam o momento preciso em que os feirantes bolivianos começaram a participar nelas.
Sobre as dificuldades logísticas, encontramos em Amaral e Oliveira (2010) a justificação segundo a qual, mesmo depois da construção do caminho de ferro, Corumbá (Brasil) e Puerto Suarez (Bolívia) permaneciam afastadas, já que os transportes existentes (fluvial e férreo) exigiam tempo, dinheiro e faltava autonomia (para ir e para voltar). Segundo os autores, foi só em 1971 que a mobilização de diversos grupos de atores da região criou as condições necessárias para que se revertesse o processo, com a construção da estrada de terra que liga o Brasil à Bolívia, o que intensificou o livre acesso de brasileiros e bolivianos às duas cidades fronteiriças.
Diversas entrevistas aos feirantes, à população local e a funcionários do poder público municipal validam esta argumentação. É assim que surge a Feira do Boliviano,3 próxima da estação central de Corumbá, justificada pelo livre acesso e pelo próprio caminho de ferro. O comboio chegava às terças e quintas a Corumbá, vindo da Bolívia, com muitas verduras e outros alimentos. Era uma feira movimentada e ainda muito recordada pela população, mas foi encerrada no início dos anos 1990. Com isto, “muitos feirantes passaram a se infiltrar nas diferentes feiras livres da cidade. E, assim, os bolivianos começaram a competir com os feirantes brasileiros dentro da feira livre local” (E.3). Sobre este encerramento, o jornal O Sucesso (2000) e E.4 (representante da prefeitura de Corumbá) indicam que em 1991 entrou em vigor o Código de Posturas do Município, que, dentro das principais modificações, tentou implantar um reordenamento territorial na cidade. Uma delas foi o encerramento da Feira do Boliviano, com reflexos noutros setores da cidade, como o aumento das feiras livres e da Feira do Camelô, além de diversos carrinhos pelas calçadas da cidade, que comercializam pequenos produtos/souvenires. Estes vendedores ambulantes estão presentes até hoje em diversos pontos do centro da cidade (Figura 2).
A Feira do Camelô acontecia no início da década de 1990, na Praça da República, onde se comercializava artesanato, roupas, acessórios, CD piratas, revistas, lanches e outros. Mas novas reivindicações foram encenadas, principalmente pelos comerciantes e pela gestão pública municipal, o que motivou o fim da Feira do Camelô em 1995, quando os feirantes (brasileiros e bolivianos) foram retirados da praça e conduzidos ao novo espaço, a Feira Brasbol.
Da feira brasbol ao aparecimento do centro comercial cidade branca
A Feira Brasbol surgiu em 1995 e ficou popularmente conhecida como “feirinha” (Costa, 2013), uma feira localizada no centro de Corumbá, tendo funcionado até 13 de maio de 2013. Ao longo dos seus 18 anos, comerciantes bolivianos e brasileiros negociaram a sua presença e a legitimidade do seu negócio, que sempre funcionou, como colocado por Telles (2010), nos interstícios entre o legal e o ilegal.
Na sua constituição original, na Feira Brasbol (Figura 3) só deveria ser comercializado artesanato de ambos os países. A presença do boliviano foi aceite sob esta condição. Contudo, no desenrolar das atividades, os vendedores bolivianos que trabalhavam nas ruas ou feiras de Corumbá, e alguns brasileiros oriundos da Feira do Camelô, acabaram por ir parar à Feira Brasbol, juntamente com os feirantes previamente destinados a esta feira.
O artesanato era parte de um complexo emaranhado que comercializava produtos nacionais e internacionais. Chama a atenção o facto de que a maior parte destes produtos era roupa e acessórios e, também, o facto exposto por Costa (2013), de que boa parte destes não vinha da Bolívia, mas de São Paulo e de Goiás, sendo vendida na Feira Brasbol a baixo custo, se comparado ao das lojas do centro comercial.
Como informado pela prefeitura, todos os feirantes pagavam Imposto Sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e possuíam o Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ), Alvará da prefeitura de Corumbá e de uma associação. Todos estes dispositivos foram insuficientes, porém, para legitimar a sua presença e evitar inúmeras questões sobre a legalidade da feira. Na visão dos comerciantes da cidade, a feira gerava uma concorrência desleal devido à falta de tributação e de encargos sociais, além da presença de produtos falsificados e até de contrabando.
Por tudo isso, em 15 de dezembro de 2009, foi deflagrada a “Operação Brasbol”, a partir de uma ação conjunta entre o Ministério Público Federal (MPF), um Grupo de Atuação Especial em Repressão ao Crime Organizado, a Polícia Federal, a Civil e a Militar de Corumbá, a Receita Federal e a Estadual, com o apoio da Polícia Militar Ambiental e do Departamento de Operações de Fronteira (DOF), que apreenderam 70 toneladas de mercadorias, totalizando R$240mil. Já em 27 de abril de 2011, a Feira Brasbol teve uma das suas primeiras interdições, sendo retomada sete dias depois (Winkler, 2009; MPF/MS, 2009; Gaertner, 2011).
Segundo Costa (2013), após esta operação e as eleições de 2012 (com posse em janeiro de 2013), o novo prefeito tinha como promessa, junto dos comerciantes de Corumbá, a Associação Comercial e Empresarial de Corumbá (ACIC) e o judiciário da cidade, fechar a Feira Brasbol. Ato este que foi difícil, devido à mobilização dos feirantes e da sociedade, que viam a feira como um ponto cultural. Contudo, após o incêndio da boate Kiss4 (27/1/2013), que matou 242 pessoas, o prefeito encontrou uma prerrogativa que culminou com o encerramento da Feira Brasbol, sob a alegação de que correria risco de incêndio e representava um grande perigo para os comerciantes e clientes. Na época, a ACIC emitiu uma nota de apoio à decisão da prefeitura sobre a interdição, justificando:
Chegou num ponto insuportável, não é possível mais conviver com essa situação. Não podemos conviver é com a concorrência desleal. São duas as finalidades desta interdição. Primeiro, mostrar ao comércio local que é uma vitória contra o comércio clandestino que vinha acontecendo e [segundo] dizer ao novo prefeito de Corumbá que o comércio local está apoiando a sua atitude. Não somos contra o comércio, mas precisamos de concorrência leal, que seja igual para todos [Presidente da ACIC/2013, em entrevista a Fernandes, 2013].
Com o encerramento da feira, iniciaram-se muitas mobilizações contra o ato, requerendo a sua reabertura. De antemão, já se pedia para que se mantivesse a presença dos bolivianos nas feiras livres. Numa dessas manifestações, a presidente da Associação da feira Brasbol manifestou-se assim:
Somos trabalhadores, pagamos todas as taxas recolhidas pela Prefeitura e não merecíamos ser tratados desta forma, de nos tirarem de imediato da feirinha. Não são só bolivianos que trabalham neste local. Aqui há brasileiros, peruanos, libaneses. Queremos um prazo maior para retiradas das mercadorias, queremos entrar em um acordo com a Prefeitura. Se for demorar muito para regularizar toda a situação do local, que a Prefeitura nos dê um novo lugar para trabalhar. Há famílias que dependem exclusivamente das vendas aqui e não sabem como farão para manter o sustento [Presidente da Associação em entrevista a Cavalcante, 2013].
A Figura 4 mostra cenas da operação, a destruição do espaço, e a manifestação em frente ao Ministério Público e pelas ruas da cidade.
“É a primeira vez que se enfrenta efetivamente essa questão. A feira está interditada, não foi fechada. Há uma diferença entre interdição e fechamento. Nos comprometemos de, em 30 dias, apresentar proposta de como será o seu funcionamento” (Promotor de Justiça de Corumbá, em entrevista a Fernandes, 2013, trechos escolhidos). A prefeitura de Corumbá, na época, também emitiu uma nota informando que a feira seria reaberta após ter o seu funcionamento regulamentado (Corumbá, 2013).
À luz de Gusfield (1981), percebe-se, nessa operação dramática, como determinados problemas públicos são acompanhados tanto de um projeto mediático quanto de uma politização, ocasião em que surgem os “proprietários do problema”, neste caso, formado pela coligação entre o poder judicial, a Prefeitura Municipal de Corumbá e a ACIC. Sobre esta apropriação do problema, Gusfield comenta:
Nem todos os grupos têm poder igual para definir o problema. Ser proprietário de um problema é deter a autoridade de enunciar que uma situação é problemática e propor algo para remediá-la. É ter o poder de orientar e dirigir a organização dos recursos - leis, opiniões, meios de aplicação, bens e serviços, para contribuir com a solução do problema (1981, pp. 72).
Depreende-se, das falas do presidente da ACIC e do promotor de justiça, que o problema foi definido a priori por um grupo que detinha o poder e, em nenhum momento, se buscou reconhecer os fins em vista (Dewey, 1929) dos feirantes - as suas objetivações, realidades, desafios e angústias. Não se procurou sequer viabilizar, de facto, a relocalização da feira, nem reforçar o discurso sobre a preocupação com a vida dos trabalhadores, caso ocorresse um incêndio.
Aliás, a promessa de estruturar um espaço para os feirantes não aconteceu. No antigo local, a prefeitura criou a praça Nossa Senhora de Urkupiña. A reabertura de um novo espaço só aconteceu em 25 de julho de 2017, por iniciativa dos próprios feirantes, quando alguns deles se articularam, compraram um terreno e criaram o Centro Comercial Cidade Branca, que conta com 100 barracas para os feirantes. Este centro funciona até aos dias de hoje (Figura 5).
Frente aos acontecimentos, é possível compreender que o principal problema, aos olhos dos proprietários do problema, era a possível comercialização de produtos não tributados, hipótese insinuada nos discursos sobre a sua origem chinesa. Ademais, esses proprietários e parte da população local que se queixava desse comércio também alegavam a venda de munições e drogas. Durante esta pesquisa, pudemos levantar informações que, na época, além dos produtos chineses, boa parte dos itens comercializados na Feira Brasbol vinha de São Paulo e Goiás. Não identificámos nada sobre a venda de drogas e munições. Não descartamos, porém, esta possibilidade, pois, nesta cidade, isto também ocorre noutras partes, como no próprio centro comercial que, até hoje, não sofreu nenhuma operação ostensiva (Costa e Oliveira, 2014; Silva et al., 2017).
Fica claro que a presença dos bolivianos na cidade, enquanto comerciantes/feirantes, gerava, como ainda gera, um certo incómodo não assumido nos discursos, mas totalmente evidenciado na prática. Ao contrário do que pensa o promotor de Justiça, esta não foi a primeira vez que a interdição e o encerramento de feiras na fronteira aconteceram. Conforme mostrámos no decorrer deste artigo, esta é uma prática antiga, e, tratando-se de feiras, ocorre desde a Feira do Boliviano.
Nas palavras de Lemieux (2007, p. 3), “seria ilusão acreditar que uma autoridade poderia, sozinha, impor um fim a uma controvérsia”. Ou seja, a justificação de que a feira era cultura e que a população e os comerciantes dependiam financeiramente dela não foi suficiente para remediar o escândalo instaurado. Neste debate, mais uma vez, o grupo formado pelos poderes públicos municipal, judicial e comerciantes saiu a ganhar. Já os feirantes precisaram de procurar, como discute Dewey (1929), outros “fins em vista”, permeados pela experiência de enfrentar novos desafios e situações problemáticas, afinal, como colocado pela presidente da associação na passagem mais acima, estes precisavam de agir rápido para manter o sustento e a sobrevivência das suas famílias.
As feiras livres de corumbá
Em 1991, após a aprovação do Código de Posturas (Lei Complementar 004/91), que revogou as leis e os decretos anteriores a 1991, culminando com o encerramento da Feira do Boliviano, a prefeitura de Corumbá passou a ordenar o funcionamento de sete feiras durante os sete dias da semana na cidade. Contudo, em 17/12/2010, foi atualizada (e em versão mais recente) a Lei Orgânica do Município que, especialmente em relação às feiras, destacava, no seu artigo 7.º, ser de competência do município promover o ordenamento territorial do solo urbano, especificamente, dos mercados e das feiras.
Em 2006, foi aprovado o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Rural (Lei Complementar 098/2006), em atendimento ao Estatuto da Cidade. Neste plano, nenhum artigo específico faz referência à feira livre, atualmente regimentada pelo Decreto Municipal n.º 307 (5/7/2007), o qual regulamenta a organização e define dias e locais de funcionamento. Na investigação de campo, constatou-se que as feiras de Corumbá cresceram sem nenhum tipo de planeamento. Não só extrapolaram os espaços definidos pelo referido decreto, como também subverteram a normativa, com a inserção de produtos de comercialização proibida.
São vários os produtos que, de facto, competem em condição desigual com os dos comerciantes da cidade, como roupas e brinquedos. Existe, ainda, a questão ilegal da entrada de produtos agrícolas internacionais no país, pois quaisquer produtos, de origem animal ou vegetal, só podem entrar no Brasil se submetidos à análise de riscos sanitários e fitossanitários pelo Ministério da Agricultura, além de obedecer aos requisitos de identidade e qualidade correspondentes. Essas leis valem para todos os meios de transporte do país, mesmo considerando as áreas fronteiriças. Os espaços fronteiriços, porém, são diferenciados devido às suas sociabilidades, dinâmicas, esquemas, complexidades e até às próprias contradições. A convivência e as relações de troca entre os habitantes da fronteira são, muitas vezes, a própria condição de ser da fronteira.
Na procura de um dispositivo jurídico que possa contribuir para um desfecho deste problema público (a presença do feirante boliviano e da comercialização) está o Tratado de Roboré, um acordo de trânsito livre assinado entre o Brasil e a Bolívia em 29 de março de 1958, em La Paz (Bolívia), e promulgado pelo Decreto n.º 65.447, de 13 de outubro de 1969, no Brasil.
Este tratado fala sobre as práticas comerciais e a circulação de mercadorias entre os países. O seu 1.º artigo determina que o livre trânsito entre os países será realizado de forma “permanente e irrestrita, em todo o tempo e circunstância, para toda a classe de cargas, sem exceção alguma […] inclusive o trânsito de material bélico” (Brasil, 1970). Quer dizer, este tratado indica uma permissividade para a entrada e comercialização dos produtos bolivianos nas feiras, apesar da ressalva de que a transação seja feita por intermédio da alfândega e sujeita a tarifação. Isto mostra que as cidades fronteiriças precisam de dialogar mais, com o objetivo de regularizar a comercialização, contribuindo, assim, para os feirantes, consumidores, comerciantes e para a população em geral. Todavia, não foram encontradas alfândegas que regulem a comercialização de produtos nas feiras. A entrada de feirantes ocorre diariamente pelas passagens de fronteira, como apresentado abaixo na Figura 6.
Durante a pesquisa realizada nestas feiras, encontrámos cerca de 450 feirantes apenas na feira de domingo, a maior delas. Nos outros dias da semana, o número oscilava de 130 a 300, com destaque para a feira de sexta, com 350 feirantes.
Quanto à comercialização, identificámos produtos variados, como roupas, brinquedos, comidas, móveis, mantimentos, lanches, artigos para telemóvel, CD pirata, carnes e outros. Observámos que boa parte destes produtos fora adquirida no Brasil. Os “hortifrutis” (frutas, legumes e verduras) vinham de São Paulo, Campo Grande, Paraná, ou da produção local, nos casos em que o feirante também é produtor rural. Já a maioria das roupas vinha, novamente, de Goiânia e São Paulo. Evidentemente, muita coisa também vem da Bolívia, que, por sua vez, a recebe da Argentina e do Chile (como as frutas), e até da China (no caso de produtos eletrónicos e brinquedos, por exemplo). Porém, foi possível reconhecer que a grande maioria era adquirida no Brasil, quando os feirantes faziam questão de mostrar as notas de compra/aquisição. Ademais, também evidenciámos que os consumidores apreciam a feira e percebem nela um vibrante espaço que permite o desenvolvimento económico da região, além de constituir também um palco de encontros sociais e culturais.
Tais constatações indicam que, após o encerramento da Feira Brasbol, a situação problemática aumentou, pois, a falta de planeamento territorial fez com o que já era confuso (a Feira Brasbol) se espalhasse por todos os cantos da cidade (as sete feiras). De 2013 até 2016, a presença dos bolivianos continuou a ser discutida. Contudo, as trocas de prefeitos, o falecimento de um deles e o facto de o vice ter assumido o posto, para além do aquecimento da economia boliviana (que leva muitos bolivianos a fazer compras em Corumbá, devido à valorização de sua moeda frente ao Real) contribuíram para que o debate em torno deste problema se neutralizasse um pouco, e assim parece dever continuar até próxima ordem.
Considerações finais
No final deste percurso, o estudo em rede permitiu-nos ilustrar as controvérsias, os conflitos e as disputas em torno do funcionamento das feiras na fronteira Brasil-Bolívia. Mas a trajetória e a experiência das feiras nesta fronteira revelam não apenas a jornada dos feirantes aqui investigados, também iluminam os desafios gigantescos de boa parte das fronteiras do Brasil: promover a integração e o desenvolvimento das cidades fronteiriças.
As experiências aqui narradas resultam da ação e da prática de vários atores, principalmente dos feirantes, brasileiros e bolivianos na sua maioria, que diariamente montam as suas barracas e comercializam os seus produtos para consumidores fervorosos que, de maneira geral, apreciam esse tipo de mercado.
Esse processo conta ainda com outros personagens: o poder judicial, os média, os diferentes órgãos de governo (municipal, estatal e federal), a ACIC, enfim, múltiplos atores que se formam em torno da existência das feiras. As feiras, aliás, estão longe de ser dispositivos públicos expressos em decretos e legislações. São produto das atividades diárias desses feirantes, coproduzidos com a participação dos consumidores e demais frequentadores que, entre trancos e barrancos, enfrentam conflitos, perseguições, desvios, manobras e outros elementos que compõem a sua territorialidade.
Recuperar e religar a trajetória das feiras nesta zona fronteiriça é um ponto de partida para a análise, pois permite compreender que a “situação problemática” gira em torno não só da organização da feira e do que ali é comercializado, mas também da própria participação do feirante boliviano. Esta é a situação indeterminada que, em variadas épocas, provoca o distúrbio na política local, originando uma disputadíssima “apropriação do problema” - que repercute em diferentes operações narrativas, retóricas e performances de vários atores que vão tentar inscrever-se no debate e propor “soluções para o problema”.
De momento, as controvérsias à volta da organização das feiras e da participação dos feirantes bolivianos estão silenciadas. Quando, porém, um problema é histórico, é raro que este silêncio se mantenha definitivamente, que indique tanto esquecimento ao ponto de o tornar insignificante. No desenrolar da vida quotidiana, é pouco provável que as controvérsias que parecem estar sob controlo parem de se renovar, pois sempre haverá uma crise e um incómodo para alguns dos atores envolvidos, interessados em reabrir a caixa negra, reacendendo as controvérsias e começando tudo novamente.
Portanto, é ilusório pensar que o encerramento da Feira Brasbol, a abertura do Centro Comercial e o decreto que deveria regulamentar a feira signifiquem o final das controvérsias, que tudo, de um modo geral, tenha sido resolvido para todos. Isto porque, as controvérsias têm algo de interminável e, mais cedo ou mais tarde, o seu retorno é a única certeza. Vemos, então, que o problema não se resolveu e se arrasta por mais de seis décadas, denotando os efeitos de uma cultura política afeta ao património, de relações sociais permeadas pela profunda assimetria de poder e por uma democracia frágil, onde os atores afetados não são ouvidos, nem mesmo após a realização de várias manifestações pela cidade.
Essa pesquisa contribui tanto com a sistematização de mais de 60 anos de experiências em torno das feiras, quanto com a possibilidade de ajudar a superar a ideia dominante e, ao nosso ver, limitada, de que o feirante boliviano é um “invasor do sistema”. Ficou evidente a necessidade de uma política fronteiriça que regule a gestão, a comercialização e a participação nas feiras. Talvez seja um bom começo a criação de um espaço público que inclua os diferentes atores da sociedade civil - e considerar a heterogeneidade das fronteiras - para procurar, coletivamente, a organização territorial binacional, resguardadas as soberanias.
De ordem epistémico-metodológica, foi possível compreender que a investigação pragmatista permite configurar a experiência pública das cidades. Para além das práticas detalhadas, evidenciou-se o sentimento, a memória, o símbolo e a imaginação sobre o projeto (as feiras). São estas as características que vão formando o público e ligando-o ao problema. A experiência mostrou que as coisas não são tão simples. Então, as ações empreendidas pelo Estado, e o seu aparato judicial, reverberam nos atores, o que provoca bastante emoção e desconforto, além da problemática financeira, já que é deste projeto que sai o sustento das famílias.
Esse processo de investigação pública fornece uma lente útil para as ciências sociais e humanas, que podem deliberar sobre a trajetória do problema público com diferentes atores, ao enfatizar as atividades microcívicas e micropolíticas, destacando os desdobramentos da ação pública e até da procrastinação do distúrbio, que levou ao atual silenciamento das controvérsias.
Compreender a complexidade da vida nas cidades é um desafio para os investigadores devido às múltiplas identidades, diferenças e conflitos, ainda mais em zonas de fronteira. Investigar as cidades permite a democratização da ciência, tornando as suas técnicas básicas acessíveis a todos os cidadãos, bem como vislumbrar a possibilidade de dar voz aos múltiplos atores que passam a ter maior visibilidade no espaço público, revelando a sua contribuição social, económica e cultural para a cidade, como é o caso das feiras analisadas nesta investigação.