Em 1993, António Manuel Hespanha publicou uma coletânea de textos cujo título diz muito acerca da sua investigação sobre o direito e a justiça na época moderna (séculos XV-XVIII): La Gracia del derecho: Economia de la cultura en la Edad Moderna. Com este título manifestou o seu gosto pelo estudo destes temas, reconhecendo a graça que tinham para ele. Mas também sublinhou a alteridade de uma teoria jurídica que, nas suas palavras, “(…) subordinaba - de forma explícita e incluso escandalosa - el derecho a otras esferas de normatividad: el amor, la moral y la religión (Hespanha, 1993, p. 152)”. Além de ser juridica e jurisdicionalmente plural, com muitas fontes do direito originadas em diversas entidades com jurisdição própria, o ordenamento jurídico dessa época não era fechado nem pretendia ser “puro”, como Hespanha não se cansou de afirmar. Pelo contrário, integrava várias ordens normativas (a moral e a religião) e incluía também sentimentos e virtudes (além do amor, a amizade, a liberalidade, a clemência ou a caridade). Estes, que na época eram olhados como o verdadeiro cimento da ordem social, não somente geravam obrigações “quase jurídicas” (Hespanha, 1993, p. 169) como deviam ser considerados nos casos concretos, no momento em que se aplicavam as normas do direito, flexibilizando-as ou mesmo dispensando-as. Tudo isso em nome do que se desejava que fosse uma justiça mais perfeita.
Nesse livro Hespanha também explicou que essa maneira de fazer justiça se articulava com formas de exercício do poder (incluindo o poder dos príncipes) que se impunham menos pelo temor do que pelo amor. Num dos seus capítulos mostrou de que modo esses processos condicionavam até a aplicação de normas especialmente vocacionados para a disciplina e a punição, como é o caso das normas do direito penal: “Pues hay que saber que el secreto de la concreta eficacia del sistema penal del Antiguo Régimen yacía justamente en essa “inconsecuencia” propria del amenazar sin cumplir. De hacerse temer, amenazando; de hacerse amar, no cumpliendo. Y que para que este doble efecto se produzca es preciso que la amenaza se mantenga y que su no concretización resulte de la valoración particular y específica de cada caso: de esa benevolencia y de esa compasión suscitada en el trance de aplicar la norma general a una persona particular” (Hespanha, 1993, p. 226).
O conjunto de textos que aqui se publicam evocam estes e muitos outros trabalhos de António Hespanha, e a sua reunião neste dossier constitui uma homenagem que os seus autores desejam, uma vez mais, prestar-lhe. Em todos eles são convocadas as sociedades católicas da época moderna e as suas formas próprias de encarar o poder, a justiça e a relação de ambos com a ordenação das sociedades. No riquíssimo ensaio bibliográfico de Pedro Cardim, em torno do livro de Julián Viejo Yharrassarry, intitulado Amor propio y sociedad comercial en el siglo XVII Hispano (2018), encontramos muitas referências a essa ideia de uma “vida coletiva centrada na caritas”, que desconfiava de sentimentos como o “interesse” ou o “amor próprio” e os associava à desordem. José Subtil também recorda elementos cruciais da economia da graça régia, além de descrever os pressupostos e os mecanismos institucionais práticos através dos quais ela se exercia, valorizando dimensões menos conhecidas, que lhe davam uma configuração muito própria, como as da tributação e da burocracia. Com isso mostra de novo que, além de não ser livre, a graça régia também não era gratuita. Pelo contrário, gerava uma dinâmica de dons e de contradons, à qual António Hespanha concedeu muita atenção: “(…)incluso el universo de la gracia, que es por tradición el mundo duro del voluntarismo y el absolutismo reales, esta limitado - visiblemente limitado - por una ratio presestablecida. Y más aún: la naturaleza especular de los deberes de dar y de restituir, de la liberalidad/caridad y de la gratitud potencia si cabe la dimensión coactiva de este orden, y a las exigencias de orden moral suma los deberes contraídos con los agentes sociales envueltos en unas relaciones de favor que se sostienen por sí mismas y se reproducen casi indefinidamente” (Hespanha, 1993, p. 176).
Anna Clara Lehmans Martins e Arthur Barrêto de Almeida, embora se refiram a épocas ainda mais tardias, também começam por recordar que a equidade era “um caminho para a flexibilidade” na aplicação do Direito muito “típico do direito medieval e do Antigo Regime”.
O maior interesse deste conjunto de textos não reside, contudo, na reconstituição do papel da graça ou da equidade em contextos medievais ou nas sociedades da Época Moderna. O que trazem de mais inovador é o esforço que em cada um se desenvolve no sentido de surpreender as modalidades de permanência e de acomodação dessas formas antigas de pensar a política e de fazer a justiça em contextos de mudança que desafiaram os fundamentos da cultura que as tinha originado. Esses contextos são a ilustração católica no mundo hispânico (Pedro Cardim), o Estado de Polícia em Portugal no século XVIII (José Subtil) e o Estado liberal oitocentista no Brasil da segunda metade do século XIX. Assim, na sua análise da obra de Yharrassarry, Pedro Cardim destaca o modo como aí são reconstituídos os processos de aceitação seletiva e de resignificação por meio dos quais os autores da ilustração católica compatibilizaram a sua ideia de “ordem centrada na caritas” com a valorização do “amor próprio” e dos “interesses”, que estava já inscrita em obras que exaltavam as sociedades comerciais dos séculos XVII e XVIII, como as de David Hume ou Adam Smith. José Subtil, por sua vez, sublinha a lenta apropriação dessas formas antigas “por mecanismos administrativos e racionais que, parecendo dispensar, cada vez mais, as virtudes da graça, não dispensaram as receitas devidas pelas mercês e, naturalmente, os mecanismos burocráticos de controlo e monitorização sobre os diplomas e as cartas de doação”. E também se surpreende com a permanência desses mecanismos no século XIX, não obstante a extinção, logo nos primeiros tempos do regime liberal português, de instituições como o tribunal de graça do Desembargo do Paço (1833). Finalmente, Anna Clara Lehmans Martins e Arthur Barrêto de Almeida mostram, a partir da análise de casos resolvidos pelo Conselho de Estado brasileiro, como numa cultura jurídica que se considerava fundada sobre o princípio da legalidade permaneciam muito ativas formas anteriores de flexibilização do direito, como a graça, a equidade e o pluralismo normativo e jurisdicional. Nos pareceres que analisam convocam-se mesmo princípios romanísticos que rejeitavam a aplicação estrita do direito, e que não se esperaria encontrar num sistema legalista, assim como a ideia do perdão concedido com base na ignorância das pessoas miseráveis (miserabilee personae). Também estes dois autores sublinham as descontinuidades que a importação dessas formas pelo novo contexto oitocentista necessariamente implicou.
A atenção concedida nestes estudos ao modo como em contextos novos se receberam e transformaram noções antigas matiza muito a ideia de que, com o iluminismo e, sobretudo, após as revoluções liberais, o ordenamento jurídico europeu do século XIX se tinha tornado, no essencial, estadualista, legalista e, por isso, juridicamente monista, e até monótono. Foi assim que António Hespanha o descreveu em muitos textos nos quais contrastou o “paradigma estadualista” que se implantara a partir do século XIX e das revoluções liberais e o “paradigma corporativo” e pluralista das sociedades da Época Moderna. Considerava até que o primeiro, ao colonizar a realidade e a mente dos historiadores, tinha tido como resultado a desvalorização, pela historiografia, do pluralismo e do jurisdicionalismo da cultura jurídica e política da Época Moderna, da sua abertura a argumentos que vinham de outras esferas normativas que não o que os historiadores consideravam ser o direito estrito. Contudo, essa contraposição muito radical dos dois “paradigmas” aparece já atenuada na sua investigação sobre o ordenamento jurídico-político português do século XIX, à qual se dedicou a partir de 2001. Nesse momento do seu percurso, Hespanha passou a interessar-se mais pelas continuidades, pela transformação do antigo em novo, e menos pelas ruturas. Numa coletânea que reuniu alguns desses escritos, e cujo título lhe foi inspirado pela obra do historiador italiano Pietro Costa (1983), alertou para o facto de ideias como a do Estado ter passado a ser a principal fonte de normatividade social, a do primado da lei ou a ideia de que o direito é um sistema fechado e autossuficiente, terem estado, no século XIX, mais do lado da imaginação do que do lado da “realidade” (Hespanha, 2017).1 E também que mesmo esse novo imaginário “estadualista” tinha coexistido com a ideia de que havia princípios normativos que a lei não podia subverter (os princípios liberais, os princípios da Razão, ou os princípios do direito natural invocados no artigo 16.º do Código Civil, para dar alguns exemplos que referiu) (Hespanha, 1983). Ideia que correspondia, na sua estrutura, ao pensamento constitucional antigo, e cuja recuperação devolvia aos juristas de oitocentos um poder de “dizer o direito” que fazia deles muito mais do que a “longa mão da lei”. Alertou igualmente para o facto de a “realidade” do direito (ou da normatividade social) e do poder ter permanecido sempre plural e diversa. O que certamente não o surpreendeu, se pensarmos na forma como compreendia os fenómenos do poder. Independentemente dos seus titulares ou das suas fundamentações teóricas, o poder era, para Hespanha, que desde cedo se identificou com as categorias propostas na obra de Michel Foucault, uma realidade descentrada, que estava por todo o lado. Confrontados com essa realidade policêntrica, e usando-a a seu favor, os reis (e os juristas) do Antigo Regime tinham assumido o papel de árbitros de um jogo complexo e multifacetado de normas e de equilíbrios sociais que não viam como criação sua. Tinham sido mais “couteiros” - aqueles que Hespanha definiu, inspirando-se em Zygmunt Bauman, como gamekeepers, respeitadores dos equilíbrios existentes, tradutores de diferentes ordens normativas, flexíveis, empenhados em encontrar a harmonia na diversidade - do que “legisladores”. Estes, que Hespanha descreveu, também em abstrato, como sendo inflexíveis na sua missão de impor, de modo autoritário, uma ordem (por si imaginada) às coisas, foram, para ele, os que mais se afastaram da graça do Direito, os que menos compreenderam a sua racionalidade. Foram também os que, sem criatividade, a rejeitaram em bloco, em nome da modernidade jurídica e dos seus princípios axiomáticos, a legalidade, a segurança, ou a previsibilidade (Hespanha, 2001, 2008). A sua proposta, nos textos também recentes que escreveu sobre teoria e política do direito, parecia ser a de uma nova acomodação, criativa, seletiva, desse saber antigo, aos contextos contemporâneos do “direito democrático numa era pós-estatal”, o título de um dos últimos livros que publicou (Hespanha, 2007, 2018).