Introdução
As questões relacionadas com o percurso de vida estão em voga na sociologia. A popularidade do olhar sobre as biografias extravasa as fronteiras da academia e não será alheia à sua reverberação (auto)biográfica, por vezes alinhada com explicações de cariz atomista. Não obstante, o interesse na organização temporal das vidas humanas está na génese de uma perspetiva teórico-metodológica do percurso de vida (Elder, Johnson e Crosnoe, 2002). A preocupação com o destino social é também característica (explícita e implícita) das abordagens sociológicas clássicas às questões da desigualdade, com problematizações muito diversas, marcadas pelas antinomias estrutura/agência e sociedade/indivíduo. Em nosso entender, vale a pena refletir sobre a fertilização cruzada entre estes dois campos da disciplina. Esforços nesse sentido serão úteis à discussão sobre os aspetos paradigmáticos do percurso de vida nas sociedades contemporâneas.
Este artigo discute possibilidades de articulação entre a perspetiva do percurso de vida e a problemática das desigualdades sociais. Trata-se de reflexões desenvolvidas no âmbito de uma tese de doutoramento, continuadas em trabalhos posteriores. Começamos por apresentar, de forma sucinta, a perspetiva do percurso de vida e o modo como a mesma equaciona a relação entre instituições sociais e trajetórias individuais. Em seguida, discutimos conceptualizações clássicas da desigualdade social, ponderando acerca da utilidade de alguns dos seus mecanismos para a análise das biografias. Partindo da crítica face a explicações de cariz atomista, bem como a determinismos estruturalistas, na terceira parte mobilizamos o legado de Bourdieu, equacionando como as desigualdades, em especial as de classe e de género, contribuem para a divergência ou convergência biográfica. Esse argumento é expandido na quarta parte, onde convocamos resultados de pesquisas recentes para uma discussão acerca de aspetos paradigmáticos do percurso de vida no Portugal contemporâneo.
A perspetiva do percurso de vida: princípios orientadores e a importância do tempo
Com génese no período entre guerras mundiais, é na década de 1960 que a perspetiva sociológica sobre o percurso de vida se começa a consolidar, primeiro nos Estados Unidos e mais tarde na Europa. Segundo Elder, Johnson e Cronsoe (2002), esta perspetiva organiza-se em torno de quatro princípios: o princípio da localização histórica e temporal; o princípio da agência; o princípio da temporalidade (timing); e o princípio das vidas ligadas (linked lives). O princípio da localização histórica e temporal situa as trajetórias individuais nos tempos e contextos geográficos em que as mesmas se desenvolvem. Corresponde ao nível macrossociológico do percurso de vida, balizado por normas institucionalizadas, estatutos e representações sociais em torno das biografias.
O princípio da agência reconhece que os indivíduos desempenham um papel na construção das suas biografias. Esta agência é contextualizada e relacional, pois as ações individuais condicionam e são condicionadas por aqueles que os rodeiam. Assim, pode ser analisada de forma bidirecional: enquanto transformadora das estruturas sociais; e enquanto produto de contextos históricos e sociais concretos (George, 2002). O princípio da temporalidade (timing) estabelece que os antecedentes e as consequências de diferentes transições variam em função do momento de ocorrência na trajetória individual. Por último, o princípio das vidas ligadas (linked lives) estabelece que as vivências são interdependentes e que a influência do contexto sócio-histórico permeia as relações interpessoais. Este axioma implica situar os indivíduos no contexto de relações sociais significativas, indo além do domínio familiar ou corresidencial.
A noção de estratificação etária, que articula idade com posições e desigualdades sociais (Riley et al., 1972), bem como os conceitos de geração (Mannheim, 1952 [1927]) e coorte (Ryder, 1965) tiveram um papel determinante na consolidação desta perspetiva. Mobilizando o conceito de coorte etária, a perspetiva do percurso de vida estabelece uma interdependência entre mudança social e desenvolvimento individual (Elder, Johnson e Crosnoe, 2002). Em paralelo, foi desenvolvida uma conceção multiescalar de tempo, em que o tempo histórico condiciona a materialização do tempo social e do tempo individual (Settersten e Mayer, 1997). O tempo social refere-se ao calendário socialmente prescrito, inscrito nas normas e valores de gerações mais velhas, bem como na idealização de transições e trajetórias desejáveis. Assim, para esta perspetiva, a idade/geração desempenha uma função tripla: localiza os indivíduos no processo social, no tempo histórico e é um indicador de expetativas face à sua trajetória.
A comparação entre coortes etárias tem sido a estratégia mais utilizada para mapear a variabilidade histórica das trajetórias de vida. Essa estratégia confirma a importância do tempo (individual, social, histórico). Todavia, a comparação entre coortes não deve negligenciar a variabilidade intrínseca a cada coorte, sob risco de conduzir à reificação de um tipo de percurso como característica geracional, alimentando a “reiteração narrativa das diferenças intergeracionais” (Aboim e Vasconcelos, 2014, p. 12).
Instituições sociais e percurso de vida
Os centros de pesquisa e equipas de investigação de maior influência, no âmbito da perspetiva do percurso de vida, continuam a estar sediados nos EUA e na Europa continental. Contudo, as orientações e os interesses de pesquisa são diversos, em geral mais atentos aos percursos individuais no caso americano. Já no caso da sociologia europeia, em especial de inspiração germânica, é notória a enfâse no estudo do papel das instituições, entendidas como instâncias de regulação ou modelação dos percursos coletivos que, incorporando a dimensão cultural, criam interfaces entre o nível macro e micro da ação social (Kohli, 2009 [1986]). Na linha do construtivismo social de Berger e Luckmann (1987), as instituições são aqui entendidas como resultado de processos triangulares de externalização, objetivação e internalização (Levy, 2013, pp. 28-32). Deste ponto de vista, as instituições são objetivadas através de mecanismos que produzem regularidade na agência, para lá da volição individual. Nos últimos anos, este interesse tem sido articulado com o estudo do papel do Estado, abrindo portas a uma sociologia comparativa dos regimes de percurso de vida (Mayer, 2004; Möhring, 2016).
Esta sociologia do percurso de vida sugere que as instituições modelam as trajetórias através de três mecanismos-chave: faseamento, relacionamento e suporte (Krüger, 2001). O faseamento decorre da participação obrigatória dos indivíduos em instituições interdependentes. As instituições-chave no faseamento são a tríade escola-mercado de trabalho-reforma, que, ancoradas no critério etário, contribuíram para a tripartição do percurso de vida (Kohli, 2009 [1986]). A localização histórica e temporal ajuda a compreender este mecanismo, pois mudanças no funcionamento destas instituições alteram a proporção de indivíduos envolvidos, as modalidades de recrutamento e as possibilidades de progressão e de saída. O mecanismo de relacionamento opera sobretudo na esfera familiar/íntima. Os indivíduos estão vinculados a próximos (familiares, amigos ou outros) por via do parentesco (consanguinidade, aliança e afinidade), da corresidência, das obrigações de solidariedade intergeracional e da afetividade. Este domínio institucional é ainda balizado pelo Estado, Igreja e grupos de interesse, dando formas a aspetos tais como a definição de parentesco, quem pode casar ou adotar, as políticas fiscais etc. Por fim, o mecanismo de suporte refere-se às instituições que apoiam ou chamam a si uma série de tarefas e obrigações. Por exemplo, a disponibilidade e acessibilidade às instituições formais (creches/lares) ou informais (avós/apoio doméstico), é determinante para a organização e distribuição das tarefas no interior das famílias, no domínio dos cuidados a dependentes.1
O percurso de vida enquanto sequência de posições sociais
Uma pedra de toque da perspetiva do percurso de vida de tradição europeia é considerar as vidas individuais enquanto todo integrado de participação em campos (ou esferas) interdependentes. O conceito bourdieusiano de campo (Bourdieu, 2002 [1972]) refere-se aos espaços de interação social, estruturados em torno da produção e distribuição de capitais, e das relações de poder que se desenvolvem pelo controlo sobre os mesmos. Os campos podem ser caracterizados como mercados, na medida em que são espaços de competição por capital, enquanto jogos, pois implicam conhecimento de regras, e como espaços hierárquicos, pois são organizados em função de relações de poder, de dominação e das legitimidades simbólicas específicas.
A participação dos indivíduos em cada campo da vida social está associada a diferentes posições/estatutos (Levy, 2013). A posição dá conta do lugar ocupado pelos indivíduos na estrutura interna do campo (capitais que possui, prestígio de que goza, posição hierárquica que ocupa) e tem implicações que extravasam os seus limites, pois cada indivíduo está sincronicamente envolvido em múltiplos campos. Deste ponto de vista, o percurso de vida é concebido enquanto sequência cronológica de participação e posições ocupadas nos campos da vida social em que cada indivíduo está envolvido (Levy, 2013). Admitindo-se a autonomia relativa dos campos, é nas intersecções que se situam algumas das potencialidades analíticas mais relevantes, por exemplo examinando a relação entre trajetórias profissionais e trajetórias familiares.
A prática científica desta sociologia confere centralidade ao domínio profissional e à vida familiar, reconhecendo a sua importância na organização espácio-temporal nas biografias individuais. No entanto, a perspetiva do percurso de vida não tem um olhar autónomo, nem apresenta prognósticos em relação ao desenvolvimento das trajetórias. Na prática, a investigação mobiliza contributos teóricos de múltiplas sociologias temáticas para estudar, por exemplo, as trajetórias profissionais, familiares, a transição para a vida adulta, entre outros temas.
Sinopse: limites e possibilidades
São notórios os esforços de consolidação de um campo interdisciplinar sobre o percurso de vida, seja na crescente especialização da pesquisa, seja no estabelecimento de secções dentro das associações profissionais ou ainda na produção de sistematizações teóricas (por exemplo: Bernardi, Huinink e Settersten, 2019). A proliferação de pesquisas sobre o percurso de vida merece reflexão em torno do seu estatuto epistemológico - será paradigma, lente ou teoria? (George, 2002). Podemos distinguir entre pesquisas que tomam o percurso de vida enquanto “orientação teórica” ou enquanto “fenómeno” (Elder e O’Rand, 1995; Nico, 2011, p. 10). Esta distinção revela a dupla potencialidade deste objeto científico. Enquanto orientação teórica procura compreender o efeito de experiências prévias e de condições de ocorrência de várias transições no rumo biográfico (Elder e O’Rand, 1995; George, 1993). Assim entendido, o percurso de vida é um campo de investigação comum que permite enquadrar pesquisas de tipo descritivo/explicativo, identificar e formular problemas, selecionar variáveis relevantes e definir estratégias analíticas (Elder, Johnson e Crosnoe, 2002, p. 4). Encarado como constructo, o foco jaz nas biografias individuais, sobretudo no que diz respeito à estrutura etária, à temporalidade e à sequência dos eventos (Mitchell, 2007 [2006]).
O conceito de percurso de vida é por vezes apresentado como panaceia, autêntico Santo Graal sociológico. Exemplo disso é a afirmação de que ultrapassaria a dialética entre ação e estrutura, almejando compreender “fatores objetivos da situação” e a “subjetividade da circunstância individual” (Chamberlayne, Rustin e Wengraf, 2002, p. 2). Em termos teóricos solucionaria antinomias clássicas (ação/estrutura, mundo exterior/self). Em termos metodológicos responderia à insatisfação gerada com o estudo das estruturas sociais com base em dados agregados, pois advoga a combinação entre métodos causais e narrativos (Giele e Elder, 1998). Consideramos essas expectativas desproporcionadas e até equívocas. Em nosso entender, esta perspetiva é sobretudo uma prática científica e um dispositivo heurístico útil para analisar questões relacionadas com o tempo (social, histórico e individual) e com a relacionalidade. Essa potencialidade justifica a sua maior mobilização em alguns campos subdisciplinares (sociologias da família e da juventude ou nos estudos sobre o envelhecimento). No entanto, a perspetiva do percurso de vida é um corpo que pode ser animado para dar resposta a questões muito diferenciadas. Assim sendo, que contributos pode aportar ao estudo das desigualdades sociais e seu impacto nos destinos pessoais, um tema clássico da sociologia? Disso tratamos na secção seguinte.
Desigualdades sociais, destinos individuais
A questão das desigualdades sociais tem conteúdo moral e político, convocando à tomada de posição e à ação (Therborn, 2006). A desigualdade é expressão de uma diferença que viola princípios de justiça, repartindo recursos de forma enviesada e concedendo vantagens apriorísticas (Fraser, 2008). É conhecida a relação entre desigualdades e consequências perniciosas para a coesão do tecido social, bem como para a realização pessoal dos indivíduos (Wilkinson e Pickett, 2009). Porém, existe o risco de pensar nas desigualdades enredando-as numa ideologia meritocrática que “leva a comparar quantitativamente coisas que se é levado a supor serem qualitativamente idênticas” e “desvia(ndo) a atenção do essencial: as diferenças estruturais de condição” (Bertaux, 1978, pp. 39-40; itálicos do autor). A verificação, denúncia e crítica dos efeitos da desigualdade sobre os destinos individuais assenta, por vezes, no pressuposto de que a origens diferentes correspondem orientações, valorizações e desejos semelhantes. Do ponto de vista sociológico, o mais importante é compreender os mecanismos que produzem e distribuem os indivíduos pelo espaço social, analisando as instâncias que material e ideologicamente regulam esse processo (Bertaux, 1978).
A desigualdade social resulta da repartição díspar de bens, capitais ou recursos entre indivíduos de uma sociedade. Esses bens são de ordem material (rendimentos, património, condições de vida), política (relações, redes de conhecimento e socialização, capacidade de fazer valer interesses e direitos, representação institucional) e simbólica (diplomas, saberes, capacidades de se impor e ser respeitado [Bihr e Pfefferkorn, 2008, p. 8 et seq.]).2 Diferenças no acesso ou controlo sobre os mesmos resultam em desigualdades na ordem do ter, i. e., distribuição da riqueza socialmente produzida; na ordem do poder, i. e., capacidade de defender interesses, direitos e influência sobre a organização da sociedade e curso dos eventos históricos; e na ordem do saber, i. e., domínio dos saberes, com implicações na capacidade de propor e legitimar escolhas, relações e práticas. Mas a desigualdade também se expressa em aspetos como a disponibilidade e usos do tempo.
A desigualdade é gerada ao nível socioestrutural, seja por via das relações de produção, dos regimes de propriedade, da divisão social e sexual do trabalho ou das formas de organização política. Tilly (2005) identifica a raiz das desigualdades em processos de exploração (enquanto retribuição injusta ou inexistente da riqueza produzida) e de açambarcamento de oportunidades (marginalização no acesso aos meios de produção de riqueza). A manutenção histórica dos sistemas de desigualdade beneficia da emulação, isto é, da transposição de categorias com as suas regras, práticas e relações sociais para outros contextos sociais, e da adaptação, que consiste no estabelecimento de rotinas e recompensas sociais que dependem da manutenção do statu quo de posições relativas (Tilly, 2005). Therborn (2006) acrescenta que a desigualdade é reforçada por via da distanciação, quando vantagens obtidas numa arena da vida social contribuem para distanciar as condições dos grupos ou indivíduos; da exclusão de indivíduos ou grupos sociais do acesso a bens, serviços ou outros; e da hierarquização, quando se aplicam esquemas de tratamento diferenciado a indivíduos ou grupos sociais.
A sociologia desenvolveu instrumentos teórico-metodológicos para estudar o impacto das desigualdades sobre vidas e trajetórias individuais, sendo clássicas as abordagens que as relacionam com categorias sociais (Costa, 2012). A análise da distribuição de recursos pelos diferentes grupos sociais em função de características tais como o género (desigualdades de género), a idade (desigualdades etárias, geracionais ou de coorte), o local de nascimento ou de residência (desigualdades geográficas ou residenciais), a etnia (desigualdades étnicas), a classe social (desigualdades de classe), entre outras possibilidades, combinações e intersecções.
Classes sociais e trajetórias
Na sociologia, os sistemas categoriais das classes sociais são um instrumento analítico com um legado impressionante (Costa, 2012). Esse património atesta da sua relevância para compreender os destinos pessoais. A produção sociológica internacional das últimas décadas é dominada por duas linhas de investigação que se inspiram e desenvolvem conceitos propostos por Marx (1975 [1848]) e Weber (1978 [1920]). As propostas neomarxistas e neoweberianas, encimadas por Wright (1997) e Goldthorpe e Marshall (1996), diferem nos ponto de partida (exploração e oposição capital/trabalho versus disposição/controlo sobre recursos no mercado). A abordagem neomarxista depreende que às posições geradas pela relação de exploração correspondem comportamentos e interesses partilhados - explicando as probabilidades de convergência na ação individual e as bases da ação coletiva (Pires, 2007, p. 31). A proposta neoweberiana reconhece que os padrões de desigualdade emergem das diferentes posições na estrutura social, mas rejeita a primazia estrutural do domínio económico sobre a ação, as normas ou práticas culturais. Na prática, as duas propostas esforçaram-se por definir estruturas/fronteiras de classe, em última análise recorrendo ao critério do emprego. No plano empírico, ambas inspiraram ambiciosos programas de pesquisa empírica, assentes em amostras robustas, analisadas com recurso a técnicas estatísticas avançadas, também em Portugal (Estanque e Mendes, 1998). A discussão dos resultados incide na relação entre estruturas de classe e consequências no rendimento, desempenho escolar, atitudes políticas, identificando-se diferenças relevantes em função da origem social.
O estrutural-funcionalismo, herdeiro do pensamento conservador de Émile Durkheim (1977 [1893]), insere-se num campo que, com frequência, legitima e naturaliza a desigualdade (Silva, 2009, p. 40), considerando-a expressão de talentos e aptidões distintas - naturais, herdadas ou adquiridas (Davis e Moore, 1945). Esta linha concentra-se na análise da distribuição e mobilidade dos indivíduos pelas posições na estrutura social, em função das ocupações (Lipset, Bendix e Zetterberg, 1959 [2019]).3 O conceito de mobilidade social refere-se à possibilidade de transição dos indivíduos para posição diferente da ocupada pelos progenitores.4 Desde meados dos anos 70, a tónica dos estudos sobre mobilidade social incide na comparação de padrões, antecipando-se uma perda de importância da hereditariedade social. No entanto, os resultados demonstram que o efeito mediador do desempenho escolar na mobilidade ascendente é correlacionável com as origens sociais (Goldthorpe, 2003). Os padrões resistem à mudança, não se observando maior fluidez social, em função do grau de modernização e industrialização das sociedades (Goldthorpe, 2005). A sofisticação estatística e o esplendor técnico das análises revelam-se inconsistentes face aos pressupostos meritocráticos de partida (Cachón Rodríguez, 1989): a mobilidade ocorre sobretudo entre grupos intermédios; as franjas no topo e na base revelam-se bastante impermeáveis. Deste modo, a busca da cientificidade, assente em modelos matemáticos sofisticados, mas desprovida de contextualização histórica, social e política, choca com a realidade observável.
Críticas e redefinições conceptuais
Desde meados da década de 1980 tem-se acumulado objeções à utilidade do conceito de classe social, sobretudo pelos proponentes das teorias da individualização (Beck, 1992; Beck e Beck-Gernsheim, 2002) e da reflexividade (Beck, Giddens e Lash, 1994; Giddens, 1997). Estas propostas teóricas não descartam o conceito, enquanto categoria factual, nem negam a importância das relações de produção na configuração das sociedades capitalistas contemporâneas. Mas afirmam que as mesmas perderam importância nas trajetórias individuais e identidades contemporâneas. Nesse sentido, os autores da modernidade reflexiva convergem com a tradição estrutural-funcionalista na desvalorização do conceito de classe social enquanto condição estruturante das biografias contemporâneas.
A oposição à utilidade do conceito de classe social é velha, ciclicamente reemergindo as investidas e elegias fúnebres (Clark e Lipset, 2001; Pakulski, 1996). Nalguns casos, resulta de leituras pouco atentas de resultados empíricos; noutros, fundamenta-se em divergências teóricas de fundo acerca da (i)legitimidade da desigualdade social e dos seus efeitos, apelando-se ao desenvolvimento de outros conceitos para compreender as biografias individuais; noutras ainda, é a repercussão dos discursos políticos de matiz (neo)liberal. A linha de argumentação utilizada para demonstrar o ocaso das classes sociais baseia-se num diagnóstico assim resumível:
[…] baisse des inégalités économiques et éducatives, affaiblissement des frontières sociales en termes d’accès à la consommation et aux références culturelles, mais aussi croissance de la mobilité, moindre structuration des classes en groupes hiérarchiques distincts, repérables, identifiés et opposés, moindre conflictualité des classes et conscience de classe affaiblie. [Chauvel, 2001, p. 319]
A defesa apresentada pelos neoweberianos face à velha tese do emburguesamento admite que as diferenças de classe manifestam-se agora de formas menos vincadas, embora não negligenciáveis, sobretudo em termos da instrumentalidade do trabalho, orientação para a família e nas experiências de vida (Erikson e Goldthorpe, 1992). Por seu turno, a resposta do campo neomarxista pautou-se pela rejeição do Materialismo Histórico (Wright, 2006) e pela efetiva “weberianização” da teoria, por via da expansão das ordens de exploração aos recursos organizacionais e educacionais/credenciais (para um balanço desta discussão, vide: Silva, 2009).
Em todo o caso, as propostas analíticas dominantes têm tido dificuldade em rebater alguns dos argumentos teóricos apresentados (Atkinson, 2010). Giddens (1997) ou Beck e Beck-Gernsheim (2002) defendem que as transformações nos valores individuais, agora menos centrados na satisfação de necessidades materiais (Inglehart, 1997), concorrem para uma crescente procura de autonomia e expressão individuais, concretizada por via das práticas culturais e nos estilos de vida. Essa interpretação tem sido sujeita a apreciação crítica e escrutínio desfavorável (Atkinson, 2010, 2011, 2017). Nalguns casos, os conceitos de classe social mobilizados são superficiais, inconsistentes ou até contraditórios, conduzido à generalização da experiência das classes médias, repercutindo o discurso neoliberal vigente (Savage, 2000). Beck e Giddens, entre outros, adotam uma posição voluntarista, que desvaloriza o constrangimento social e à qual faltam elementos para compreender as motivações dos indivíduos para fazer opções biográficas diferentes daquelas que a sua inserção estrutural e trajetória tornariam mais prováveis. Pelo contrário, os dados empíricos continuam a revelar o efeito estruturante da classe social sobre múltiplas dimensões e fases do percurso de vida. Só a título de exemplo, pesquisas que mobilizam a perspetiva do percurso de vida comprovam como as desigualdades de classe modelam os calendários e as circunstâncias em que se dão as transições para a vida adulta, a entrada na vida profissional, a saída de casa dos pais ou a transição para a parentalidade (Cunha, 2007; Schoon, 2010), assim como os ritmos de saída do mercado de trabalho e a vivência da reforma (Radl, 2013).
A (re)genderização das trajetórias
Tal como a classe, o género é determinante para compreender os percursos de vida, na medida em que estrutura relações sociais e permeia todos os campos de interação social. A pesquisa demonstra que a “genderização” dos percursos familiares e profissionais de homens e mulheres foi uma característica central da biografia normal no auge da modernidade organizada (Moen, 2001). A divisão do trabalho em função do género, que designaríamos hoje como tradicional, assegurava uma modalidade de integração da vida profissional e familiar, bem como a sucessão económica e o controlo social (Kohli, 2005). Assim, as biografias masculinas e femininas diferiam nos ritmos e circunstâncias das transições para a vida adulta (Billari, 2001) e terceira idade (Moen, 2001), bem como na participação no trabalho pago ou no envolvimento nas tarefas familiares ao longo da vida (Brückner e Mayer, 2005).
Comparações internacionais revelam que as diferenças de género nas trajetórias de vida dependem também das instituições do Estado-providência e das diferenças culturais neles inscritas (Pfau-Effinger, 2004). Não obstante as variações, a institucionalização de um padrão de percurso de vida hegemónico ancorou-se nos estereótipos de género e na segregação de tarefas subjacente ao modelo parsoniano de família. O modelo do ganha-pão masculino e da cuidadora feminina beneficiou da sua inscrição nos sistemas de providência social, que, não raro, assumiam a exclusão das mulheres do trabalho pago, nelas depositando as tarefas de cuidado (Scott, Crompton e Lyonette, 2010).
A maior participação das mulheres na esfera pública nas últimas décadas alterou a lógica das assimetrias de género. Apesar da persistência de processos de socialização “genderizados”, haverá uma “destradicionalização” de género, i. e., um retrocesso no duplo padrão de papéis e destinos (Nico, 2011, pp. 67-68). Nalguns contextos, os dados apontam para o esbatimento das diferenças de género nos percursos familiares e profissionais em coortes recentes (Widmer e Ritschard, 2009). No entanto, as recentes transformações nos percursos de vida, em especial a chamada desestandardização do percurso de vida, corresponde sobretudo a uma reconfiguração das desigualdades de género (Schoon, 2010). Às mulheres é exigida flexibilidade no mercado de trabalho e capacidade para conciliar os domínios profissional e familiar. Também no domínio familiar permanecem diferenças, continuando as mulheres a percorrer trajetórias mais rápidas e lineares (Billari e Liefbroer, 2010), ocorrendo a aproximação sobretudo pelo lado das trajetórias educacionais/profissionais. Por outro lado, a crescente instabilidade ao longo da vida profissional incide de forma mais intensa sobre as mulheres, mais expostas ao desemprego, às formas precárias de emprego ou ao trabalho a tempo parcial involuntário (Brückner e Mayer, 2005; Casaca, 2010).
A feminização do mercado de trabalho tem sido também relacionada com o conflito entre vida profissional e vida familiar e com um segundo turno laboral feminino (Hochschild e Machung, 1997). A mitigação desse conflito e a adoção de novas modalidades de divisão familiar do trabalho está dependente, desde logo, das políticas públicas, mas também das representações de masculinidade e feminilidade, inclusivamente na divisão do trabalho doméstico (Wall, 2007). No contexto europeu, a adaptação dos Estados-providência é diferenciada, variando em função dos recursos disponíveis, do compromisso político com a igualdade de género ou dos contextos culturais (Scott, Crompton e Lyonette, 2010). Em países como a Alemanha ou a Holanda, os pressupostos da biografia normal e da divisão sexual do trabalho continuam a estar institucionalizados (por exemplo, promovendo o regime de trabalho feminino a tempo parcial, reservando as licenças parentais às mulheres, oferecendo um número limitado de vagas em creches etc.). Noutros casos, têm sido implementadas políticas mais ambiciosas de conciliação entre vida profissional e familiar, envolvendo o duplo emprego, a provisão de serviços de apoio à infância e incentivos para que os homens assumam uma maior parcela do trabalho doméstico e nos cuidados aos filhos.
Em nosso entender, a análise do impacto das desigualdades de género sobre o percurso de vida só pode ser entendida quando articulada com as desigualdades de classe bem como com outras formas de opressão (por exemplo: Crompton, 2003; Davis, 2016 [1983]). Um exemplo desta interdependência é revelado pela análise das estratégias adotadas por mulheres europeias para equilibrar a vida profissional e a familiar, com base nas preferências em relação à participação no trabalho pago. As preferências são diferenciadas em termos de classe social, não só em termos de recursos materiais como na capacidade de acionar o sistema (Scott, Crompton e Lyonette, 2010). Se as mulheres de classe trabalhadora dificilmente podem prescindir do emprego a tempo inteiro, também as mais qualificadas acabam por estar pressionadas pelas exigências dos dois domínios. No entanto, as mais qualificadas podem dispor de capital suficiente para pagar a delegação de tarefas, muitas vezes a outras mulheres de condição migrante.
Percurso de vida e desigualdades sociais: possibilidades de articulação teórica
A contestação ao conceito de classe social é reveladora de uma tensão patente em diversos domínios das ciências sociais. Algumas pesquisas empíricas sobre mobilidade ou destinos sociais ponderaram de forma insuficiente a capacidade dos indivíduos para, dentro de certos limites, agir, escolher e decidir, o que suscitou justificadas críticas. Por seu turno, abordagens centradas no indivíduo, partindo do pressuposto de que os fatores estruturais têm influência decrescente, concebem as trajetórias biográficas como resultando de preferências ou de ações e estratégias individuais, às quais estão subjacentes cálculos enquadráveis nas teorias da escolha racional.
É comum que as pesquisas que lidam com as desigualdades sociais assentem em análises ou comparações sincrónicas. Essa estratégia pode tornar-se problemática se encapsular as forças sociais no ponto de observação. Essa opção pode ser insuficiente para equacionar a relação dialética entre indivíduos e contextos sociais, históricos e institucionais. A perspetiva sobre a relação entre desigualdade social e percurso de vida proposta por Bourdieu (2002 [1972], 2010 [1979]) acentuou a importância da transmissão familiar dos capitais e a socialização primária nas trajetórias dos indivíduos. Bourdieu (2002 [1972]) definiu a internalização da estrutura a partir do conceito de habitus, i. e., sistema de disposições duráveis e transferíveis que, integrando experiências passadas, opera como uma matriz de perceções, apreciações e ações. O habitus corresponde a um sentido individual do possível, uma intuição do jogo social construída e ajustada pela experiência contínua nos vários campos da vida social.
As trajetórias individuais seriam trajetórias de classe, na medida em que as possibilidades de circulação dos agentes pelo espaço social corresponderiam a um leque de trajetórias equiprováveis, dependentes do volume e da composição dos capitais, bem como da sua posição no espaço social das classes (Bourdieu, 2010 [1979]). Deste ponto de vista, os fluxos entre posições sociais corresponderiam a trajetórias verosímeis. Mais que mera agregação estatística, o aspeto modal das trajetórias seria efeito da estrutura de classes, por via de processos de reprodução social e estratégias de classe.
Algumas críticas consideraram que proposta inicial de Bourdieu atribuía primazia ao campo económico, resultando numa tensão irresolúvel entre um entendimento holista da estrutura internalizada (habitus enquanto sistema de disposições) e uma conceção plural da estrutura externa (que acentua a autonomia dos múltiplos campos [Pires, 2007, pp. 37-38]). A crítica de Lahire (2001) desvalorizou a ideia de habitus, e enfatizou que as disposições dos indivíduos são moldadas nos múltiplos contextos de interação e socialização (campos) em que estes estão envolvidos. Para este autor, a incorporação da estrutura é um processo contínuo de constituição social e de individualização dos agentes sociais, pelo que a consistência e sistematicidade da relação entre disposições será variável. Reformulações posteriores ultrapassaram a exclusividade da socialização primária e a transmissão linear do património enquanto determinantes das desigualdades que caracterizam a vida adulta (Bourdieu, 2010 [1979]). Esses avanços afastaram uma noção cristalizada de habitus, sendo até plausível que as disposições revelem idiossincrasia, em virtude da discrepância entre posições e experiências em cada campo. No entanto, a questão da consistência ou da relação sistemática entre disposições deve constituir um problema de análise e não um a priori conceptual (Pires, 2007, p. 38). A este propósito, poderá ser útil revisitar o conceito de superfície social (Atkinson, 2020), que remete para o “conjunto de posições simultaneamente ocupadas num dado momento […] e que age como suporte de um conjunto de atributos e atribuições que permitem (ao indivíduo) agir como agente eficiente em diferentes campos” (espaço social, família, emprego [Bourdieu, 1986, p. 72]).5
Este debate não contraria a ideia de que os constrangimentos externos têm poder estruturante sobre vidas individuais. O verdadeiro teste ao impacto das forças sociais, testando a eventual diminuição dos condicionamentos estruturais, impõe verificar em que medida as mesmas resultam em percursos díspares (Dannefer e Kelley-Moore, 2009). Em nosso entender, o impacto das desigualdades estruturalmente produzidas (de classe, género, entre outras) sobre os percursos de vida pode ser verificado mobilizando alguns dos mecanismos já mencionados. A sua ação gera ou reforça a divergência biográfica em função de posições ocupadas, dos capitais disponíveis e mobilizáveis e da competição em diferentes campos, considerando os conceitos propostos por Bourdieu (2002 [1972], 2010 [1979]). Desde logo, porque as múltiplas formas do capital (económico, cultural, social e simbólico) são intrinsecamente conducentes à cumulatividade. Por si só, a acumulação de stocks de capital não consumível conduz ao aumento das desigualdades existentes.6 Essas desigualdades emergem sobretudo nos momentos de transição da vida, quando a capacidade para tomar iniciativa ou aproveitar oportunidades é diferenciada, conduzindo, em potência, à divergência nos percursos de indivíduos da mesma coorte. Um exemplo por excelência é a relação entre qualificações (i. e., o capital cultural adquirido) e modalidades de participação no mercado de trabalho e para aceder, a posteriori, a recompensas, reconhecimento e recursos diferenciados.
De igual modo, o mecanismo de distanciação permite compreender como dividendos decorrentes de um posicionamento numa arena da vida social conduzem ao afastamento entre as trajetórias individuais. Por exemplo, a posse de credenciais à entrada no mercado de trabalho pode contribuir não só para diferenças substanciais na trajetória profissional como também na trajetória familiar, eventualmente conduzido a uma polarização das transições entre classes sociais e/ou géneros. Devido à interdependência entre os campos da vida social, os indivíduos com trajetórias profissionais mais instáveis e inseguras, marcadas pela dificuldade em acumular recursos, podem sofrer consequências nos diferentes calendários (de autonomia residencial, de entrada na conjugalidade etc.) como também na sua trajetória familiar/íntima.
A desigualdade ao longo do percurso também decorre do mecanismo de hierarquização que impõe esquemas de tratamento diferenciado a indivíduos ou grupos sociais. Podemos enquadrar aqui a desigualdade de género no mercado de trabalho (a segregação vertical e horizontal, assim como a desigualdade salarial), bem como outras formas de atribuição sistemática de vantagens e de desvantagens. Um exemplo paradoxal de hierarquização jaz na contradição entre o ideal de carreira profissional enquanto escada rolante ascendente (a promessa de mobilidade ascendente). Esta ideia, que pressupõe guiar e motivar os indivíduos, choca com estruturas e organizações altamente hierarquizadas, uma realidade que, com frequência, frustra expectativas individuais.
Os processos de exclusão também geram desigualdade ao longo da vida, estabelecendo barreiras a indivíduos ou grupos sociais no acesso a posições, estatutos, bens ou serviços. Exemplo de processos deste género são as estratégias de fechamento social, tais como a homogamia na formação dos casais, a homofilia nas relações sociais ou a seleção profissional homossocial (Almeida, Ferrão e Sobral, 1997; Levy, 2013). Também a segmentação do mercado de trabalho entre insiders e outsiders é geradora de novas desigualdades entre classes sociais, géneros e grupos etários, assim como a distância face aos centros urbanos, a segregação espacial das cidades, a regulação de grupos ocupacionais ou o fechamento das estruturas organizacionais. Estes são apenas exemplos de articulação entre a problemática das desigualdades sociais, informada sobretudo pela sociologia de Bourdieu, e um olhar diacrónico sobre as trajetórias de vida. Na próxima secção, mostramos como esta estratégia combinatória pode ser usada na análise de aspetos paradigmáticos do percurso de vida no Portugal contemporâneo.
Contrariando a falácia epistemológica da modernidade tardia
Se a mudança social das últimas décadas transformou de forma indelével algumas dimensões da vida, também o olhar da sociologia se alterou. Uma série de viragens trouxe para o centro da agenda de pesquisa a experiência individualizada e implementaram dispositivos teórico-metodológicos capazes de a traduzir. Alguma sociologia incorporou uma prática muito sensível ao discurso hegemónico que dá primazia à escolha individual e às oportunidades, subestimando as continuidades, nomeadamente dos constrangimentos estruturais, institucionais e culturais (Dannefer, 2009, p. 195 e 204; Furlong e Cartmel, 2007 [1997], p. 12). Esse raciocínio conduz à denominada falácia epistemológica da modernidade tardia:
Although social structures, such as class, continue to shape life chances, these structures tend to become increasingly obscure as collectivist traditions weaken and individualist values intensify. As a consequence of these changes, people come to regard the social world as unpredictable and filled with risks which can only be negotiated on an individual level, even though chains of human interdependence (Elias, 1978, 1982) remain intact [Furlong e Cartmel, 2007 (1997), p. 2].
Na modernidade tardia ocorreria então uma situação paradoxal em que as fundações coletivas da vida social perdurariam, enquanto estruturas que circunscrevem a experiência individual, apesar de mitigadas sob a ação de poderosas transformações sociais e complexificadas pela subjetividade reflexiva dos agentes (Furlong e Cartmel, 2007 [1997], pp. 138-139). A interpretação dos percursos de vida contemporâneos segundo essa lente tem contribuído para estabelecer uma dicotomia passado/presente que exagera mudanças e é omissa face às continuidades em relação a gerações mais velhas. É comum que os percursos de vida do passado sejam apresentados de uma forma esquemática, simplista, pouco problematizada. Mais do que facto observado, a dicotomia entre um passado marcado por vidas estandardizadas e um presente desestandardizado assenta num artifício metodológico (Nico, 2011, p. 38). Esse artifício resulta da substituição da análise do impacto das estruturas sociais, tais como as da classe, de género, por uma análise individualista que cria uma self-fulfilling prophecy (Nico, 2011, p. 39). Em nosso entender, comparar épocas históricas recorrendo a dispositivos teórico-metodológicos distintos produz um contraste que é um (d)efeito da perspetiva. As ferramentas e a heurística proposta pela perspetiva do percurso de vida dão aqui um contributo importante para reequacionar estas questões.
Alguns resultados de pesquisa sobre Portugal
Trabalhos recentes sobre a realidade portuguesa analisaram as trajetórias de vida de diferentes gerações, combinando os princípios da perspetiva do percurso de vida com instrumentos teóricos da sociologia das desigualdades e classes sociais (Ramos, 2015). Tal foi feito para discutir criticamente os pressupostos das hipóteses da pluralização das trajetórias individuais e da desestandardização do percurso de vida na modernidade tardia (Ramos, 2019). Em linhas gerais, os resultados não corroboram as hipóteses mencionadas. Se falar em pluralização do percurso de vida implica assumir a existência de um dinamismo e instabilidade na atualidade, por contraposição a um passado monolítico, marcado pela homogeneidade e estabilidade nas trajetórias, há que fazê-lo com parcimónia a propósito da sociedade portuguesa. Mesmo nas coortes que cresceram durante a vigência do Estado Novo existiu uma pluralidade de trajetórias, tanto familiares como profissionais. Aliás, confirma-se que insistir numa simplificação do passado, no caso das trajetórias familiares, conduz mais à reprodução da cartilha ideológica do Estado Novo, que então sustentava um modelo de família nuclear procriativa, do que ao retrato das trajetórias vividas pelos indivíduos. Já a análise das trajetórias profissionais demonstra a recência da generalização de percursos próximos dos pressupostos de carreira profissional, i. e., assentes na estabilidade e previsibilidade (Ramos, 2017). Além disso, a análise também revela a fragilidade e precariedade inscritas em muitos percursos profissionais contemporâneos.
Em todo o caso, a comparação entre coortes revela diferenças, mais subtis no caso da vida familiar e mais intensas no caso da vida profissional. Será mais prudente enquadrar a evolução observada no âmbito de um processo estruturalmente limitado de pluralização do percurso de vida. Outras investigações têm demonstrado que as transformações económicas, políticas e institucionais das últimas décadas não influenciam todos os domínios da vida de igual forma, nem atingem todas as realidades nacionais com igual intensidade ( Zimmermann e Konietzka, 2018). Isto é, a pluralização e desestandardização são processos condicionados pela estrutura social, em especial pelas desigualdades de classe e de género, bem como pela configuração das instituições nacionais.
Em traços gerais, as pesquisas mencionadas reiteram a importância da classe social, em especial as diferenças em termos capitais económicos e culturais, na diferenciação dos percursos de vida. Os efeitos de transmissão patrimonial e de acumulação dos capitais são sobretudo evidentes nas trajetórias profissionais. Existem algumas dinâmicas de mobilidade social, sobretudo pela via do ensino, intensificando-se o efeito do sucesso escolar em coortes etárias mais recentes. Em todo o caso, são os indivíduos com mais capitais à partida que tendem a acumular maiores recursos, sobretudo escolares e culturais, ao longo das suas trajetórias individuais (de trabalho e de emprego). Na lógica da reprodução social estão gravadas as marcas da desigualdade de classe. O tempo despendido em anos de trabalho é uma das marcas mais salientes. Isto contribui para uma distanciação relevante entre percursos, que se manifesta sob múltiplos aspetos: em termos das idades e da cadência a que ocorrem as transições; das ocupações a que se dedicam os indivíduos; do prestígio das profissões que desempenham; ou da própria estabilidade na trajetória profissional percorrida. Uma consequência do alargamento da escolaridade é o adiamento das transições familiares. No entanto, essa tendência geral ofusca uma certa polarização social, uma vez que o sucesso escolar é diferenciado em termos das origens sociais e dos capitais presentes à partida.
Do ponto de vista das desigualdades de género, é clara a “genderização” dos percursos profissionais e familiares, embora se observe uma relativa “desgenderização” no período de transição para a vida adulta, na linha do já concluído por Nico (2011). Em termos gerais, as transições familiares femininas ocorrem, em geral, mais cedo e com cadência mais rápida. Este cenário indicia que, neste domínio, as pressões normativas serão mais intensas sobre as mulheres. As trajetórias profissionais femininas são também mais instáveis, estando mais expostas à informalidade, à precaridade e ao desemprego. Embora exista convergência de género no acesso a trajetórias de emprego estável em coortes mais recentes, essa aproximação não esconde duas dissonâncias. Por um lado, apesar do sucesso escolar das mulheres em coortes etárias mais recentes, há um claro diferencial no acesso a carreiras de emprego estável qualificado, revelador da força dos mecanismos de segmentação vertical ou do efeito teto de vidro. Por outro lado, também se mantém uma segmentação horizontal, concentrando-se o emprego feminino em sectores de atividade a que estão tipicamente associados maiores diferenciais salariais. A “genderização” do percurso de vida em Portugal tem aspetos distintos dos observados em sociedades da Europa Central. A razão mais substancial prende-se com o elevado grau de participação das mulheres no trabalho pago em Portugal, seja no mercado de trabalho formal no presente, seja em atividades informais no passado.
Considerações finais
O intuito deste artigo foi o de pensar em modalidades de articulação entre preocupações centrais para a perspetiva do percurso de vida e olhares sociológicos que permanecem atentos às questões da desigualdade social. Em nosso entender, uma leitura diacrónica das trajetórias, atenta tanto ao tempo coletivo como ao individual, supera leituras deterministas e apriorísticas dos destinos sociais. Por outro lado, ao situarmos os agentes sociais nas suas circunstâncias coletivas ficamos mais perto de evitar alguns entendimentos voluntaristas de agência que têm permeado a investigação sociológica.
Como demonstrado, este tem sido um caminho produtivo, permitindo recentrar o debate em torno das transformações no percurso de vida, nomeadamente em torno das hipóteses da pluralização das trajetórias individuais e da desestandardização do percurso de vida. Mais do que fetichizar a inovação teórica constante ou a busca da novidade inconsequente, importa mobilizar o vasto património conceptual e empírico da sociologia, seja através releitura dos clássicos, seja pela valorização das propostas de síntese. Os exemplos aqui citados procuraram fazê-lo, de forma a responder a questões de cariz macrossociológico. Entendida como lente e práxis científica, a perspetiva do percurso de vida é assim bastante aberta a possibilidades de aprofundamento e articulação criativa (um exemplo é o projeto Linked Lives/Vidas Vinculadas: https://linked-lives.wixsite.com/linkedlives/), podendo dar também aportes relevantes ao estudo das práticas.