Introdução
Nas sociedades democráticas modernas, espera-se que as leis sejam compreendidas como os meios apropriados e eficazes de resolução de conflitos e de garantia da ordem social. Ao menos em parte, a manutenção da ordem social deriva do reconhecimento, pelos cidadãos, das leis estabelecidas e das autoridades intituladas de fazer prevalecer os regulamentos - bem como da crença de que o poder legal é moralmente justificado1.
As principais constituições modernas estabelecem expressamente a preservação da ordem pública e da integridade física e patrimonial como função das polícias. É prerrogativa policial o uso da força física no cumprimento do dever legal. Do ponto de vista jurídico, o uso da força física é uma garantia constitucional e como tal deve seguir estritos ritos legais. De um ponto de vista político ou sociológico, o seu uso pela polícia deve obedecer à legalidade tanto quanto ser compreendida como aceitável por parte das populações a ela potencialmente sujeitas (Mesquita Neto, 1999). Nesse sentido, para além da legalidade da força física, as instituições policiais devem ser reconhecidas pela população como autoridades legítimas para exercer a sua função.
Assim, a legitimidade da polícia é uma complexa combinação de elementos sociais e normativos. Por um lado, a aceitação da polícia deriva da legalidade das suas ações. Por outro, os julgamentos de legitimidade da autoridade policial dizem respeito ao quão justificável é o poder das instituições legais frente às crenças e moralidades dos cidadãos. Deste modo, a polícia deve corresponder às expectativas que os indivíduos nutrem relativamente à sua habilidade de proteção e à sua capacidade de atuar em defesa dos valores da sociedade (Jackson e Sunshine, 2006; Terpstra, 2011).
A maneira como as sociedades elaboram as suas orientações em relação às leis e às autoridades é um corolário dos processos socializadores. Mais do que inocular nas consciências individuais uma compilação de regras, ou informar quais punições serão aplicadas em caso de inobservância das regras, tanto por meio das relações familiares e comunitárias quanto pela educação formal, os processos socializadores transmitem noções, valores e expectativas que atuam nas consciências de forma a desenvolver o senso de dever para com a sociedade e a estimular comportamentos autorregulados (Tapp, 1991; Durkheim, 2008).
Recentemente, um amplo conjunto de estudos elaborados em países europeus, nas Américas e noutros continentes destaca que o contacto com autoridades do sistema de justiça criminal é uma experiência socializadora em relação ao universo legal. A maneira como as autoridades policiais exercem o seu poder nas abordagens aos jovens constitui momentos de aprendizagem que tanto podem fortalecer como minar as perceções de legitimidade e confiança (Justice e Meares, 2014; Tyler, Fagan e Geller, 2014; Slocum, Wiiley e Esbensen, 2015; Trinkner, Jackson e Tyler, 2018).
Evidentemente, ainda que a socialização em relação às leis, ou a socialização legal, seja um processo previsível nas mais distintas sociedades, os valores que são transmitidos entre grupos e gerações são característicos de cada contexto social. Por conseguinte, distintas realidades sociais fomentam nos jovens diferentes expectativas em relação ao trabalho policial, e as práticas adotadas pelas forças policiais variam entre diferentes estruturas e culturas institucionais (Rodrigues et al., 2017).
O Brasil é semelhante à maioria das democracias consolidadas, mas, ao mesmo tempo, reúne aspetos que permitem supor a singularidade dos processos de socialização legal dos jovens e de legitimação de suas autoridades policiais. Ao longo do século XX, o país alternou entre períodos de intensa vida democrática e experiências de regimes autoritários. Sucederam-se mudanças institucionais que legaram ao atual regime profundas marcas autoritárias nas práticas policiais (Pinheiro, 1991; Mesquita Neto, 1999).
Ao contrário do que se poderia supor, as mudanças de ordem política e económica que deram sequência à reabertura democrática de finais da década de 1980 não aceleraram a modernização das práticas de poder no sentido de tornar a sociedade brasileira mais democrática. Apesar das diferenças regionais, durante os anos 1990 houve uma certa estabilização da economia brasileira, em grande medida propiciada pelo novo contexto democrático. Chegámos aos anos inaugurais do século XXI com a economia brasileira a caminhar para a redução dos níveis históricos de desigualdade socioeconómica. Não obstante as novas dinâmicas políticas e sociais instauradas, ao longo desses mais de trinta anos persistiram as grandes ofensas aos direitos humanos fundamentais.
O município de São Paulo é o exemplo mais acabado de como as violações de direitos convivem com a pujança económica. Na maior e mais rica cidade do país, o policiamento é fortemente ancorado em práticas dissuasórias ( Zanetic et al., 2016), e o município tem uma das polícias mais letais do país. No entanto, a violência é desigualmente distribuída. Em regiões mais empobrecidas, observa-se convívio paradoxal com a polícia: ao mesmo tempo que esta se faz constantemente presente, através das incontáveis abordagens aos moradores, a população ali não se sente protegida pelas agências responsáveis por garantir Lei e Ordem (Oliveira, 2021).
Este contexto desigual impõe às ciências sociais o desafio de compreender como a democracia constitucionalmente restabelecida em 1988 chegou às primeiras décadas desse século convivendo com a violação de direitos fundamentais, acumulando as maiores taxas de mortalidade violenta, e com uma das polícias mais letais do mundo (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2018). As consequências deste contexto para as experiências socializadoras e para a legitimidade das autoridades são ainda pouco conhecidas.
Este artigo pretende justamente contribuir para essa discussão ao explorar os impactos da violência na construção das expectativas dos adolescentes em relação às autoridades legais. Em particular, procurou-se compreender como os adolescentes da maior cidade brasileira são socializados para aceitar ou não a violência ilegal e o abuso de poder como prerrogativas legítimas da polícia. Procura-se responder à seguinte questão: até que medida a exposição à violência urbana e policial está associada às opiniões dos adolescentes em relação à legitimidade da autoridade policial? Para responder a esta questão, o artigo investigou associações entre diferentes experiências de contacto com o sistema de justiça criminal e os níveis de confiança e de legitimidade da polícia.
Para tanto, utilizam-se dados transversais do inquérito conduzido no âmbito do Estudo da Socialização Legal (São Paulo Legal Socialization Study - de sigla SPLSS, em inglês), estudo elaborado pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP). Os dados serão analisados de forma a indicar a relação entre os diferentes contactos dos adolescentes com a polícia e o convívio com a violência criminal e o desenvolvimento de crenças na confiança e na legitimidade policial.
Legitimação das autoridades e o processo de socialização legal
Por algum tempo, os estudos no campo da criminologia deixaram de lado a reflexão sobre o modo como as instituições de controlo social, especialmente a polícia, afetam a produção de crimes na sociedade (Wolfe, Mclean e Pratt, 2016; Baz e Fernández-Molina, 2017). Contudo, nas últimas décadas, observou-se uma renovação do interesse da criminologia nesse sentido. Para responder à questão “por que as pessoas obedecem às leis?”, os estudos deram nova ênfase ao conceito de legitimidade, e tornou-se fundamental compreender as relações que os cidadãos mantêm com as autoridades policiais (Tyler, 1990).
Até então, a perspetiva instrumental era preponderante para entender como os indivíduos se relacionam com as leis. Segundo essa corrente, as pessoas obedecem às leis e às autoridades encarregadas do seu cumprimento a partir da avaliação de que obedecer ou cooperar com determinada autoridade é mais vantajoso para conquistar um objetivo pessoal (Tyler e Lind, 1992). Por esse ângulo, os indivíduos obedecem na medida em que avaliam que a obediência é menos custosa individualmente do que a desobediência, ou seja, haveria um cálculo entre desobediência e punição, e obediência e recompensa (Tyler e Lind, 1992).
Do ponto de vista prático, essa perspetiva instrumental conduz a um tipo de policiamento dissuasório, em que as políticas de segurança se dedicam à repressão e à presença ostensiva do aparato policial como forma de evidenciar à população a possibilidade de sanção em caso de quebra da ordem. Muito embora o Estado moderno possa ser caracterizado pelo direito ao uso da violência legítima (Weber, 1970), e que, portanto, a dissuasão seja a sua prerrogativa legal, o processo de democratização é marcado também pelo recurso mínimo à violência (Elias, 1990) Ao confiarem tão somente no uso da força física, as instituições responsáveis pela manutenção da Lei e da Ordem inspiram na população comportamentos reativos e temporários, em vez da internalização de normas. Como demonstram Tyler e Trinkner (2018), as políticas baseadas em práticas coercitivas não são capazes de promover a internalização de valores caros à sociedade e a consequente adesão às normais sociais. Assim, ainda que um policiamento ostensivo possa impedir a ocorrência de crimes nos locais policiados, não é capaz de facilitar a internalização de valores orientados para as leis e que, a longo prazo, contribuem para uma relação de confiança com a instituição e uma disposição para a considerar legítima para o exercício das suas funções. Por esta razão, a motivação instrumental para a obediência às autoridades pode não ser tão eficaz a longo prazo quanto uma motivação normativa (Tyler e Trinkner, 2018; Zanetic et al., 2016; Sousa, 2002).
Por outro lado, destacam-se as abordagens que enfatizam a legitimidade das autoridades e a motivação normativa para os comportamentos em relação às leis. A abordagem normativa argumenta que quando o cidadão partilha os valores representados pelas leis, tende a obedecer às autoridades por considerar ser a coisa certa a fazer. Segundo Tyler e Lind (1992), a legitimidade das autoridades garante uma maior adesão dos cidadãos às normas sociais e, nesse sentido, enseja sentimentos de obrigação de obedecer voluntariamente às leis (Tyler e Trinkner, 2018; Rodrigues et al., 2017; Tyler, Fagan e Geller, 2014; Weber, 1999; Tyler, 1990).
Seguindo essa perspetiva, é possível afirmar que o Estado pode atuar no controlo do crime quando estimula sentimentos de legitimidade e confiança da população nas forças policiais. Ademais, a legitimidade da polícia pode afetar o controlo do crime porque, quando as pessoas confiam e legitimam, tendem a cooperar voluntariamente com as autoridades e a colaborar no registo, denúncia e resolução de delitos (Bradford et al., 2014).
Junto dessa nova perspetiva explicativa observou-se um crescente interesse em compreender que fatores podem promover ou abalar o reconhecimento da legitimidade das autoridades, especialmente das polícias. Investigações de natureza empírica procuram demonstrar os limites da perspetiva instrumental e identificar como se desenvolve o processo de atribuição de legitimidade.
Um aspeto fundamental do trabalho policial é garantir a ordem pública através das políticas de contenção das práticas criminais, aliado à sua capacidade investigativa de fornecer ao sistema judicial subsídios para a produção de justiça. Nesse sentido, alguns estudiosos consideram que a confiança na eficácia da polícia em controlar a criminalidade pode afetar as avaliações de legitimidade (Jackson et al., 2014; Tankebe, 2012; Tankebe, 2009; Hinds, 2007).
Tankebe (2009) destacou como, no Gana, a experiência de vitimização por crimes e a avaliação de eficácia no combate à criminalidade são tão ou mais importantes para a cooperação com a polícia do que outras variáveis relacionadas com a legitimidade. Durante uma investigação no Paquistão, Jackson et al. (2014) descobriram que a perceção da eficácia policial é o elemento mais importante para gerar um sentimento de confiança genérica na polícia. Similarmente, Bradford et al. (2014) destacaram que, em sociedades com altas taxas criminais, como a África do Sul, a avaliação da eficácia da polícia em controlar o crime é o que melhor explica as variações nos níveis de legitimidade da polícia.
No Brasil, há investigações que reúnem indícios semelhantes. Um estudo elaborado por Silva e Beato (2013) identificou que pessoas que foram vítimas de crimes confiam menos na polícia. De acordo com os autores, para a população que participou no estudo, a ineficiência policial expressa-se pela própria necessidade de ter de acionar a polícia para resolver crimes, além do facto de terem sido vítimas. Por outro lado, mesmo quando a polícia brasileira é vista como eficaz em conter crimes, outros aspetos institucionais podem sobressair nas avaliações populares. É o que apontaram Zilli e Couto (2017), que encontraram avaliações da qualidade do trabalho policial mais negativas entre adultos que sofreram alguma forma de extorsão ou violência por parte de agentes da polícia. Os resultados que interessaram aos cidadãos foram os ligados às demonstrações de combate, ao abuso e à corrupção dentro da corporação.
Embora a preocupação com a eficácia policial seja proeminente em sociedades que registam altas taxas de crimes, esses estudos também demonstram que outros aspetos da autoridade policial são tão importantes quanto a avaliação de efetividade. Assim, no processo de legitimação das polícias, os cidadãos avaliam se essas autoridades estão de acordo com os valores sociais subjacentes à sua função social (Tyler e Lind, 1992).
De acordo com o modelo de justiça procedimental proposto por Tom Tyler (1988), a legitimidade está sujeita às avaliações que os indivíduos fazem a respeito da maneira como são tratados pelas autoridades. Segundo o argumento desta teoria, nos seus contactos com juízes, agentes da polícia ou outras autoridades legais e não legais, os indivíduos distinguem entre i) os procedimentos que foram adotados para a resolução de um problema ou conflito e ii) os resultados obtidos ou a eficácia das autoridades na sua atuação. Desta forma, a atribuição de legitimidade relaciona-se com as expectativas de que, mesmo que os resultados não sejam os mais favoráveis, foram obtidos por procedimentos justos, transparentes e respeitosos (Tyler, 1990).
Nas últimas três décadas, a ênfase nos contactos quotidianos com as autoridades como principal fator explicativo da legitimidade ampliou-se para outros centros de investigação nos Estados Unidos, em países da Europa, América do Sul e África. Os estudos demonstram em diferentes contextos que, quando são abordados por um agente da polícia, ou em qualquer outra circunstância que os coloque em contacto direto ou indireto com uma autoridade, os indivíduos atribuem-lhe legitimidade dependendo da forma como avaliam os procedimentos que foram adotados no exercício do poder. De entre os critérios destacados para avaliar a qualidade do tratamento dispensado pela autoridade, a literatura internacional aponta para as perceções de respeito, neutralidade e transparência na tomada de decisão como fundamentais no momento de interação direta entre autoridade e cidadão. Assim, quando as pessoas acreditam que foram tratadas com respeito, que a autoridade explicou os procedimentos e que sua opinião foi considerada no momento da tomada de decisão, é mais provável que considerem a autoridade como legítima (Trinkner e Cohn, 2014; Piquero et al., 2005). Encontraram-se resultados semelhantes no contexto brasileiro (Oliveira, Zanetic e Natal, 2020; Oliveira, Oliveira e Adorno, 2019; Jackson et al., 2020; Trinkner et al., 2020, Piccirilo et al., 2021).
A qualidade do contacto, então, é determinante para o desenvolvimento de atitudes positivas ou negativas face à instituição. Todavia, a sua importância não se resume a avaliações imediatas que os indivíduos fazem a respeito da polícia ou de outra autoridade. Os estudos assinalam o caráter socializador dessas interações. Especialmente quando os abordados pela polícia são os jovens, cada contacto é em si uma oportunidade de moldar a imagem que o indivíduo faz da instituição policial. Tendo como base as experiências pregressas com as autoridades, somando as informações, comentários e impressões que circulam entre os grupos de amigos e familiares, os indivíduos criam expectativas acerca dos contactos futuros, fazendo dessas interações momentos de aprendizagem sobre o papel da instituição e das normas sociais ( Piccirillo et al, 2021; Stamatakis, 2019; Justice e Meares, 2014; Tyler, Fagan e Geller, 2014; Tyler e Lind, 1992).
Por esse motivo, as primeiras interações com as autoridades durante a adolescência são especialmente relevantes, na medida em que comunicam um padrão de ação policial para os jovens. Tyler e Trinkner (2018) ressaltam a importância de compreender em que momento as crianças e os adolescentes passam a discernir o que é um exercício apropriado e correto da autoridade legal do que não é. A partir dos encontros quotidianos com essas autoridades, e a forma de atuação dos profissionais durante essas interações, os adolescentes desenvolvem atitudes a respeito da legitimidade dessas autoridades. Este processo de formação de atitudes e crenças a respeito das leis e instituições tem sido chamado de socialização legal, e é através deste que se desenvolve um posicionamento crítico que resultará em obediência voluntária, quando o indivíduo avalia que a autoridade deve ser obedecida devido à sua conduta correta e justa (Rodrigues et al., 2017).
Num estudo longitudinal com adolescentes infratores, Piquero et al. (2005) descobriram diferentes padrões de socialização legal, isto é, diferentes trajetórias dos adolescentes em relação às leis associadas às experiências anteriores com agentes legais, ao modo como foram tratados por esses agentes e a determinadas características sociodemográficas (como etnia, idade e género). Assim, aqueles identificados como hispânicos, mais velhos, e com pior avaliação de justiça procedimental tinham maior probabilidade de não legitimar as autoridades legais e de cometer delitos novamente.
Num estudo com adolescentes de 16 e 19 anos, Trinkner e Cohn (2014) perceberam que à medida que os adolescentes avaliavam os procedimentos de tomada de decisão da autoridade como justos, maior era a probabilidade de verem a polícia como uma autoridade legítima. Para os adolescentes mais jovens, a perceção de justiça procedimental foi o principal preditor do comportamento legal, ou seja, quando o adolescente avaliava como justa a atuação da polícia, menor era a probabilidade de relatar um comportamento de quebra de regras. Noutro estudo, com uma amostra mais jovem de adolescentes brasileiros, Trinkner et al. (2020) verificaram que contactos diretos e indiretos com a polícia diminuíam a confiança na justiça procedimental, a qual, em conjunto com a alta perceção de crimes no bairro, influenciava negativamente a avaliação da legitimidade da polícia.
Dilemas para socialização legal no Brasil
Pelo exposto, a perceção de legitimidade das autoridades pelos cidadãos como forma de garantia da ordem social é uma característica partilhada pelo conjunto das sociedades democráticas. Ainda que os fatores que podem promover ou enfraquecer a legitimação das autoridades variem conforme os contextos sociais, a literatura especializada aponta que o processo de legitimação combina avaliações de eficácia com o julgamento popular acerca da forma como as autoridades exercem o poder. Destaca-se que o respeito pelos princípios da justiça procedimental aparece como a variável mais significativa para a legitimação.
No que diz respeito às relações dos mais jovens com as forças policiais, a avaliação da justiça procedimental ganha maior relevância pelo caráter socializador que as experiências com as autoridades podem assumir. Os diferentes estudos listados anteriormente apontam que as experiências de contacto com as polícias ajudam a dar contorno às expectativas e aos valores dos adolescentes em relação às leis e às instituições. Contudo, apesar das semelhanças, é de esperar que os processos de socialização legal sejam permeados pelos dilemas e desafios próprios das diferentes democracias. Portanto, democracias em consolidação, como a do Brasil, exigem considerar outros fatores, apresentados a seguir.
Apesar dos avanços que o processo de redemocratização trouxe em termos institucionais e de garantias constitucionais, os elevados níveis de violência são um desafio para a democracia brasileira. Testemunharam-se nos principais centros urbanos brasileiros profundas e rápidas alterações nos padrões e nas dinâmicas da criminalidade. A emergência de alguns dos maiores e mais influentes grupos de tráfico de drogas é uma expressão dessa nova dinâmica, bem como as altas taxas de mortalidade violenta em todo o país.
A título de exemplo, só para o ano de 2017, para cada 100 mil habitantes, registaram-se 30,8 mortes violentas intencionais. Foram mais de 63 mil vidas tiradas violentamente, sem contar com as mais de 60 mil violações, 270 mil roubos de veículos e outros eventos não letais. Vale notar que tais estatísticas representam parcialmente a magnitude do problema, dada a existência de subnotificação (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2018).
Essa dinâmica da violência trouxe novos desafios às instituições de segurança pública. O Brasil entrou na rota da guerra às drogas e as políticas públicas de segurança foram em grande medida orientadas pelo ideal de dissuasão, em que se prioriza o combate ao crime pela vigilância constante e pelo controlo ostensivo das populações.
A manutenção de um paradigma de combate ostensivo ao crime transformou a polícia brasileira numa das mais violentas do mundo. Só em 2017 foram mortas 5012 pessoas por ação da polícia, equivalendo a uma taxa de 2,4 mortes por 100 mil habitantes. Não obstante, a polícia brasileira é também a que conta com maior número de agentes mortos. Em 2017, o país teve 385 agentes da polícia assassinados, de acordo com dados do Monitor da Violência (2018). Em termos comparativos, a polícia brasileira matou 6,2 vezes mais e os seus agentes morreram 1,9 vezes mais do que a polícia dos EUA (Lima, 2019).
O estado de São Paulo concentra um número expressivo dos casos de violência policial, apesar da relativa melhoria nas taxas de violência intencional (Monitor da Violência, 2018). Com base em dados disponíveis para o período de 2005 a 2011, a pesquisa de Cubas (2012) apontou evidências de uso abusivo da força pela polícia naquele estado. Noutro estudo, Sinhoretto, Schlittler e Silvestre (2016) apontam que em 2014, pelo menos 20% dos homicídios ocorridos no município de São Paulo foram praticados por agentes da polícia. Entre os anos de 2019 e 2020 do total de mortes violentas intencionais registadas em São Paulo, 33% decorreram da ação policial (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2021).
Sabe-se que, no geral, a violência se distribui de maneira desigual entre os diversos setores sociais. Estudos realizados no país mostram que os impactos da violência se concentram nos grupos populacionais mais vulneráveis, exacerbando as suas condições de marginalização social (Minayo, 2005; Waiselfisz, 2004; Minayo, 1990). Por sua vez, os jovens estão proporcionalmente mais expostos à violência. A pesquisa de Cardia e Cinoto (2012) mostrou que os jovens testemunham quase duas vezes mais violência na comunidade do que os adultos. Não bastasse uma maior exposição à violência, os jovens negros predominam entre as vítimas da violência policial. Do total de homicídios registados no município de São Paulo em 2014, 64% das vítimas eram homens negros e 43% tinha entre 15 e 19 anos de idade (Sinhoretto, Schlittler e Silvestre, 2016).
Apesar da gravidade da situação, pouco se conhece no Brasil sobre o impacto que o convívio com a violência tem nos processos de socialização dos jovens. Mesmo na literatura internacional, a exposição à violência é considerada, principalmente, nas suas consequências sobre a vida psicológica e comportamental de crianças e de adolescentes. De entre os efeitos da vitimização, destacam-se: maior agressividade, distúrbios do humor, depressão, sintomas de stress pós-traumático, dificuldades escolares (tanto em relação ao desempenho cognitivo como nos relacionamentos), conduta antissocial, sentimentos negativos em relação ao futuro, perceções de não ser amado, medo, maior adesão a comportamentos de risco (Velez-Gomez et al., 2013; Fowler et al., 2009; McDonald e Richmond, 2008; Barroso et al., 2008; Benetti et al., 2006; Howard et al., 2002; Salzinger et al., 2002; Osofsky, 1995).
No mesmo sentido, estudos no campo da criminologia indicam que há uma associação entre estar exposto a violência e desenvolver comportamentos de quebra de regras. Crescer num ambiente de constantes vitimizações aumentaria o risco de desenvolver comportamentos agressivos, violentos e até criminais (Fagan e Tyler, 2005; Eitle e Turner, 2002). Nesse eixo, ser vítima ou presenciar violência tem efeitos sobre as ideias e visões de mundo, o que molda a relação dos adolescentes com as autoridades. Por exemplo, Kuther e Wallace (2003) identificaram que crescer em comunidades violentas impactou negativamente a forma como as crianças e os adolescentes afroamericanos desenvolveram valores como justiça, honestidade, solidariedade e as suas perceções sobre o papel da polícia. Do mesmo modo, Cardia e Cinoto (2012) apontaram que estar exposto à violência pode modificar as crenças em relação ao respeito pelas normas, pelas leis e pelas autoridades, e fomentar a formação de atitudes agressivas como respostas aceitáveis e normais.
Como exposto, a legitimidade atribuída às autoridades públicas depende das expectativas que os cidadãos nutrem relativamente às funções e às maneiras como os agentes públicos exercem o poder. Além disso, estudos sinalizam que o convívio com a violência é um fator socializador importante para compreender como os indivíduos formam as suas visões de mundo, as suas expectativas e como a partir dela orientam os seus comportamentos.
Todavia, este campo de estudo carece de reflexões a respeito da socialização legal em contextos marcados tanto pela elevada incidência de crimes contra as pessoas e contra o património quanto pela violência policial. Pretende preencher-se esta lacuna com o presente artigo. O estudo apresentado a seguir procura contribuir para esta discussão.
Este estudo
Este artigo analisa em que medida os adolescentes julgam a legitimidade da polícia em função dos contactos prévios que tiveram com agentes da polícia, bem como das suas experiências de vitimização e de exposição à violência. Para tanto, a legitimidade da polícia será abordada a partir de duas dimensões: i) a adequação normativa do poder legal exercido pela polícia aos olhos das pessoas, isto é, a perceção que os adolescentes têm de que os valores que a polícia representa coincidem com os seus próprios e são adequados para representar a autoridade legal; e ii) o reconhecimento público da polícia como uma instituição com autoridade para esperar que as pessoas se conformem às suas ordens, isto é, a crença dos adolescentes de que obedecer à polícia é um dever normativamente fundamentado
Utilizaram-se para esse fim os dados da pesquisa São Paulo Legal Socialization Study (SPLSS), um inquérito longitudinal conduzido pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP) que, entre 2016 e 2019, acompanhou anualmente adolescentes nascidos em 2005, estudantes e moradores da cidade de São Paulo. Os participantes foram selecionados por meio de escolas públicas e particulares, seguindo a proporção de matrículas dos censos escolares de 2015. Para compor a amostra, as escolas em São Paulo foram sorteadas através do método de Probabilidade Proporcional ao Tamanho, garantindo a representação de todas as regiões da cidade. Após o sorteio, as escolas foram contactadas e os alunos dos sextos anos receberam o Termo de Consentimento, a ser assinado pelos pais ou responsáveis, e o Termo de Assentimento, assinado pelos alunos. Apenas aqueles que receberam a permissão dos pais participaram na investigação. O questionário aplicado foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa envolvendo Seres Humanos da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo.
A amostra inicial foi composta por 800 adolescentes, igualmente divididos entre rapazes e raparigas. Utilizam-se para este artigo os dados da terceira vaga, recolhidos entre agosto e novembro de 2018 e na qual participaram 724 adolescentes, o que configura uma taxa de atrito de apenas 9,5%. Os participantes receberam um vale de compras no valor de R$40,00 após a entrevista.
A configuração da amostra da terceira vaga foi composta por 49,5% raparigas e 50,5% rapazes, 60,4% estudantes de escola pública e 39,6% de escola particular, 48% autodeclarados brancos e 52% não-brancos.
Medidas
As questões incluídas no estudo dizem respeito ao reconhecimento e à justificação do poder legal da autoridade policial, à expectativa da ação policial, às experiências de contacto - direto e indireto - com o sistema de justiça criminal e às exposições à violência.
Para analisar os julgamentos dos adolescentes em relação à legitimidade da polícia, os participantes do estudo foram confrontados com algumas frases que dizem respeito à crença de que a polícia é uma instituição normativamente apropriada e que deve ser obedecida. Para avaliar o seu alinhamento normativo com a autoridade policial, os adolescentes responderam quanto concordavam com as seguintes frases: “a polícia age de acordo com o que você acha certo e errado” e “os policiais tomam as decisões certas para você”. Para mensurar o sentimento de dever obedecer, os respondentes foram confrontados com as seguintes afirmações: “os policiais têm o direito de parar e revistar as pessoas na rua”, “os policiais têm o direito de dizer o que as pessoas devem fazer” e “as pessoas devem obedecer aos policiais mesmo quando não concordam com eles”. As respostas foram recolhidas por meio de uma Escala Likert de 4 pontos (1 = Discorda Muito; 4 = Concorda Muito). Os itens foram elaborados a partir de estudos empíricos anteriores, traduzidos para o português e testados em estudo piloto (Fagan e Tyler, 2005; Trinkner e Cohn, 2014).
A expectativa da ação policial foi dividida em duas dimensões distintas. Para mensurar a confiança na justiça procedimental, os respondentes foram questionados sobre a sua opinião a respeito de qual seria a reação de um agente da polícia caso o entrevistado fosse capturado em alguma ação errada: “Daria a chance de você contar o seu lado da história”; “Explicaria porque você está sendo abordado”; “Agiria com você da mesma forma que agiria com qualquer outra pessoa” e “Conversaria com você de forma educada”. Cada um dos itens corresponde a um dos princípios que compõe a noção de justiça procedimental, conforme abordado pela literatura especializada (Trinkner e Cohn, 2014): qualidade no processo de tomada de decisões (voz, imparcialidade e transparência) e nas relações interpessoais (respeito e dignidade). Para avaliar a confiança na eficácia policial, os participantes do inquérito foram convidados a responder como avaliam o trabalho da polícia em relação a quatro itens: “Prevenir crimes em seu bairro”, “Encontrar ou prender pessoas que cometem crimes”, “Atender aos chamados de emergência ou pedido de ajuda” e “Rapidez no atendimento das chamadas de emergência ou nos pedidos de ajuda”. As questões foram adaptadas de estudos especializados no tema e traduzidas para português (Sunshine e Tyler, 2003; Jackson e Sunshine, 2006; Tyler et al., 2014). As respostas para os itens de “confiança na justiça procedimental” foram recolhidas numa escala Likert de 4 pontos (1 = Discorda Muito; 4 = Concorda Muito) e “confiança na eficácia policial” em Likert de 4 pontos (1 = Muito ruim; 4 = Muito bom).
As questões que procuram mensurar a exposição à violência dizem respeito às experiências indiretas de violência e os participantes do estudo SPLSS são inquiridos se viram acontecer nos seus bairros, em até um ano antes da entrevista, quatro circunstâncias: “pessoas vendendo drogas na rua”, “pessoas sendo assaltadas”, “pessoas andando com armas sem ser policiais” e se “ouviram sons de tiros”. As respostas foram recolhidas numa escala de quatro pontos (3 = Muitas vezes; 0 = não viu). Essas questões foram adaptadas do estudo elaborado por Cardia e Cinoto (2012).
As cinco variáveis mencionadas acima - dever normativo de obedecer à polícia, alinhamento normativo com a polícia, confiança na justiça procedimental da polícia, confiança na eficácia policial da polícia e exposição à violência - foram mensuradas adotando uma abordagem reflexiva de avaliação (Oliveira et al., 2019). Estimaram-se diversos modelos de análise fatorial confirmatória para avaliar as propriedades escalares dos indicadores.2 Os resultados indicam que os itens do inquérito utilizados para analisar as cinco variáveis latentes se distinguem empiricamente de acordo com o que era teoricamente esperado.
No que se refere ao contacto com a polícia, o questionário reúne circunstâncias em que os adolescentes entrevistados poderiam ter estabelecido algum contacto com agentes da polícia num período de até um ano antes da entrevista. Neste artigo, essas circunstâncias foram agrupadas da seguinte forma: “Contato indireto legal” para quando presenciaram a polícia exercendo as suas funções, mas não eram diretamente alvo do trabalho policial, expresso em frases como “você viu a polícia parar e revistar alguém na rua?” e “você viu a polícia algemando e prendendo alguém?”; “Contato indireto violento” reúne ocasiões em que presenciaram a polícia a usar a força contra outrem: “você viu a polícia batendo em alguém?” e “você viu a polícia humilhando alguém, por exemplo, xingando, rasgando documentos?”; “Contato direto” diz respeito a experiências diretas com o trabalho policial: ter sido parado pela polícia, ter sido revistado pela polícia ou ter sido encaminhado pela polícia a um Distrito Policial. Os itens foram elaborados considerando não só experiências, que são as mais frequentes nessa faixa etária (Rodrigues e Gomes, 2019), como também considera circunstâncias de maior gravidade. Todas as respostas são captadas em escalas de quatro pontos para frequência (3 = muitas vezes; 0 = não). As questões foram posteriormente aglomeradas e dicotomizadas de modo a constituírem uma variável binária indicando alguma experiência de contacto ou não.
O construto relacionado com a vitimização pela polícia diz respeito a uma forma de contacto diretamente estabelecido com a polícia e que, pelos motivos apresentados anteriormente, será especificamente tratada como situações de violência pelo nível de agressividade das experiências e pela ilegalidade das ações. Os participantes são questionados se alguma das seguintes ocorrências já lhes havia acontecido: “foi xingado por algum policial?”, “foi agredido por algum policial? (ex: tapa no rosto)?” e “um policial apontou uma arma para você?”. Os itens foram elaborados considerando as experiências mais frequentes de circunstâncias de maior gravidade. Todas as respostas são captadas em escalas de quatro pontos para frequência (3 = muitas vezes; 0 = não) e posteriormente aglomeradas e dicotomizadas de modo a constituírem uma variável binária indicando alguma experiência de vitimização ou não. Quadro 1.
Por fim, para mensurar vitimização, o questionário do estudo SPLSS analisa se os participantes tiveram alguma das seguintes experiências: “Alguém usou uma arma para te roubar?”, “Alguém usou força ou ameaçou usar força para te roubar?” e “Alguém te atacou, agrediu ou ofendeu por causa de alguma característica sua? Por exemplo, sua cor de pele, seu sexo, sua religião ou o lugar onde você vive?”. As respostas foram recolhidas em escalas de quatro pontos para frequência (3 = muitas vezes; 0 = não). As três questões referentes à vitimização geral foram aglomeradas e dicotomizadas de modo que no fim há uma variável binária indicando se os respondentes vivenciaram algum dos episódios ou não. Essas questões foram adaptadas do estudo elaborado por Cardia e Cinoto (2012).
Estratégia analítica e mensuração
Uma vez que o objetivo deste artigo consiste em investigar efeitos diretos de diferentes tipos de contacto dos adolescentes com a polícia, da exposição à violência e de vitimizações prévias sobre os julgamentos dos adolescentes em relação à legitimidade da polícia, bem como os seus efeitos indiretos mediados por duas dimensões de confiança na polícia, um modelo de equações estruturais foi estimado, conforme a Figura 1.
Essencialmente, este modelo estima uma série de modelos de regressão e de mensuração simultaneamente. Por exemplo, os itens de inquérito refletidos pelas cinco variáveis latentes mencionadas acima (dever de obedecer, alinhamento normativo, justiça procedimental, eficácia e exposição à violência) são incluídos no modelo para estimar as suas respetivas variáveis latentes (representadas por elipses nos resultados, em oposição aos retângulos, que indicam variáveis avaliadas diretamente no inquérito). Esse é o modelo de mensuração (basicamente, uma análise fatorial de cinco fatores). Ao mesmo tempo, cada seta presente no diagrama da Figura 2 indica um modelo de regressão linear. Esse é o chamado modelo estrutural.
Além da estimativa das variáveis latentes, o modelo estimado consiste em três momentos - todos estimados simultaneamente. As variáveis explicativas são o contacto prévio com a polícia (direto, indireto legal e indireto violento), vitimização (policial e geral) e exposição à violência. Em primeiro lugar, as duas variáveis mediadoras - confiança na justiça procedimental e na eficácia policial - são regredidas em todas estas variáveis explicativas. Em segundo lugar, as duas variáveis dependentes - obrigação de obedecer à polícia e alinhamento normativo com a polícia, as duas dimensões de legitimidade - são regredidas nas duas variáveis mediadoras (as duas dimensões de confiança na polícia). Em terceiro lugar, as duas variáveis dependentes (ambas dimensões de legitimidade) também são regredidas nas variáveis explicativas (contacto, vitimização e exposição). Com isso, é possível obter tanto os efeitos diretos das variáveis explicativas sobre as variáveis dependentes como os seus efeitos indiretos transmitidos pelas variáveis mediadoras.
Este modelo tem a vantagem de decompor os efeitos diretos e indiretos por meio de uma série de regressões simultâneas.3 Ao mesmo tempo, essa abordagem metodológica permite incluir modelos de mensuração na mesma estimativa do modelo estrutural, o que aumenta a eficiência e diminui o viés introduzido por erros de avaliação (Bollen, 1989) e consiste no principal método utilizado pela literatura (Huq, Jackson e Trinkner, 2017; Trinkner e Cohn, 2014; Jackson et al., 2012; Sunshine e Tyler, 2003).
Resultados: associações entre a violência em São Paulo e a legitimidade da polícia
Os resultados do modelo de equações estruturais estimado no software Stata 15 podem ser observados na Figura 2. Utilizou-se a máxima verossimilhança com a informação total para lidar com os dados em falta - isto é, os adolescentes que deixaram de responder apenas a algumas questões do inquérito não são removidos da análise. Os erros-padrão estimados que foram agrupados4 ao nível das escolas, foram estimados por conta das características de amostra empregadas - uma vez que alunos que estudam na mesma escola podem partilhar características não mensuradas no inquérito. Todas as variáveis latentes foram regredidas em variáveis sociodemográficas (género, raça e renda). Os parâmetros estimados destacados possuem p < 0.05, ao passo que as setas pontilhadas consistem em coeficientes estatisticamente iguais a zero.
Conforme o esperado, as duas dimensões de confiança - justiça procedimental e eficácia - estão positivamente e diretamente associadas a julgamentos positivos de legitimidade policial. Como os coeficientes estão padronizados - isto é, os coeficientes indicam a mudança esperada nas variáveis dependentes a cada acréscimo de um desvio-padrão nas variáveis explicativas -, podem ser comparados diretamente. Tanto em relação ao reconhecimento do poder da polícia (i.e., obrigação de obedecer) quando à justificação desse poder (i. e., alinhamento normativo), a associação com confiança na justiça procedimental da polícia (β = 0.8 e β = 0.29, respetivamente) é um pouco maior do que a associação com confiança na eficácia da polícia (β = 0.49 e β = 0.26, respetivamente). Ainda assim, a associação entre confiança na eficácia policial e julgamentos de legitimidade da polícia é relativamente forte. Investigações com adultos destacam a prevalência da confiança na justiça procedimental para a atribuição de legitimidade das autoridades legais, mas a relevância da confiança na eficácia já foi ressaltada em outros estudos com adolescentes (Hinds, 2007). Isso significa que, para os adolescentes, não há uma distinção clara entre as motivações normativas e as instrumentais na avaliação de legitimidade da polícia.
No que diz respeito às outras variáveis testadas, apenas a exposição à violência está diretamente associada à legitimidade - e apenas sobre uma das suas dimensões. Cada aumento de um desvio-padrão na variável latente que avalia a exposição dos adolescentes à violência está associado a um decréscimo de β = 0.4 desvios-padrão na variável latente que analisa o alinhamento normativo dos jovens com a polícia. Isto leva-nos a pensar que, quanto mais os adolescentes convivem com a violência no bairro, menor a perceção de que os seus valores estão alinhados com os da polícia, ou dito de outro modo, cresce a distância entre os valores partilhados pela polícia e os adolescentes. Por outro lado, os diferentes tipos de contacto com a polícia e a vitimização não têm efeito direto sobre a legitimidade.
Algumas variáveis têm, no entanto, um efeito indireto sobre a legitimidade mediado pelas duas dimensões de confiança na polícia. É o caso de contacto indireto violento, da vitimização policial e da exposição à violência: essas variáveis estão associadas a mudanças no grau de confiança na polícia por parte dos adolescentes, o que por sua vez transmite o efeito e impacta mudanças nos julgamentos de legitimidade da polícia por parte dos adolescentes.
Como esperado, adolescentes que convivem com a violência nos seus bairros têm uma expectativa mais baixa a respeito da qualidade do tratamento dispensado pela polícia no cumprimento das suas funções, isto é, quanto mais expostos os adolescentes estão à violência, menos eles confiam que a polícia vá agir dentro dos parâmetros de justiça procedimental. Em particular, cada aumento de um desvio-padrão nessa variável latente está associado a um decréscimo de β =- 0.18 desvios-padrão na outra. Dessa forma, um ambiente de violência urbana atrapalha o desenvolvimento da confiança dos adolescentes na polícia, prejudicando a criação de expectativas e atitudes positivas em relação à polícia.
Estes resultados apontam para a relevância das ações legais e ilegais, e o papel de destaque da violência na formação de atitudes frente à polícia. A literatura tem ressaltado a importância dos contactos diretos e indiretos entre cidadãos e agentes da polícia para a legitimidade, sem, contudo, qualificar esses contactos para além da avaliação de justiça procedimental. Ao separar os contactos indiretos entre “violentos” e “legais”, foi possível verificar até que ponto a atuação policial dentro dos limites legais das suas funções é não só reconhecida pelos adolescentes, mas também valorizada.
A análise também revela que adolescentes que testemunharam algum contacto violento entre a polícia e o cidadão têm uma média esperada de confiança na justiça procedimental mais baixa do que adolescentes que não presenciaram esse tipo de contacto (β = -0.75).
Da mesma maneira, ter um encontro direito com a polícia dentro dos parâmetros da lei não exerce nenhuma influência na expectativa de justiça procedimental, mas ser vítima de violência policial sim. Adolescentes que sofreram algum tipo de vitimização policial têm menor expectativa de que a polícia aja com justiça no futuro: a média esperada para esse grupo é β = -0.82 desvios-padrão mais baixa.
É interessante notar que não há associação estatisticamente significativa entre as outras variáveis. Em particular, adolescentes que sofreram algum tipo de vitimização esperam que a polícia aja de maneira justa em igual medida aos adolescentes que não foram vitimizados. De acordo com a teoria da justiça procedimental, cada contacto que os cidadãos têm com a polícia pode diminuir a confiança do público nessa instituição, especialmente se o contacto for considerado violento ou injusto (Tyler e Lind, 1992; Slocum, Wiiley, e Esbensen, 2015; Tyler et al., 2014; Fagan e Tyler, 2005; Tyler e Trinkner, 2018). Isto não foi verificado no presente estudo: simplesmente ter um contacto direto com a polícia não está associado a diferenças no grau de confiança na polícia. Finalmente, presenciar uma ação policial legal também não impacta quanto os adolescentes esperam que a polícia aja com justiça no futuro.
Além disso, no que se refere à confiança de que a polícia vá agir com eficácia, apenas o contacto indireto violento indica alguma diferença: adolescentes que presenciaram algum tipo de policiamento agressivo têm uma média esperada de confiança na eficácia policial mais baixa do que aqueles que não presenciaram esse tipo de contacto (β = -0.3). Todas as outras variáveis - contacto indireto legal, contacto direto, vitimização, vitimização pela polícia e exposição à violência - parecem não impactar a expectativa instrumental de que a polícia será eficaz no combate ao crime. Se pensarmos em termos de entrega de resultados, a violência no bairro poderia ser vista como uma falha das instituições policiais em garantir a segurança; entretanto, esta relação não foi verificada nesta amostra, indicando que não há uma influência deste tipo de experiência sobre a perspetiva instrumental.
Por fim, cabe destacar que o contacto indireto violento influencia negativamente a avaliação de eficácia, o que indica que os adolescentes não esperam que o trabalho policial envolva agir com violência. Esse resultado é diferente daquele que é encontrado entre a população adulta, em que há o apoio ao uso da violência policial com os outros, ainda que não contra si mesmo (Cardia e Cinoto, 2012; Jackson et al., 2020). Os adultos esperam que a polícia use a violência para resolver o problema da criminalidade, legitimando a violência policial. Mas os adolescentes nessa idade ainda não aderiram à violência como forma legítima de atuação policial, pelo contrário: se ela é violenta, não pode ser eficaz.
Considerações finais
Há um aparente paradoxo na realidade brasileira no que toca ao convívio entre uma democracia formal e uma profunda dificuldade de conseguir a pacificação social. A persistência do recurso à força física por parte tanto dos cidadãos quanto dos representantes do Estado indica que opera na sociedade brasileira uma espécie de padrão de interação em que a violência é admitida como recurso válido para resolução de conflitos (Franco, 1969).
Um aspeto crucial da persistente violência na democracia é a truculência e a letalidade policial, factos que expressam como as relações de poder no país são marcadas pelo autoritarismo - um traço brasileiro cujas raízes remontam ao colonialismo, constantemente revigorado pelos regimes ditatoriais do século XX. Pinheiro (1991) cunhou a noção de continuidade autoritária para caracterizar o processo que combina mudanças na ordem da representação política com a manutenção da reprodução histórica das relações de autoridade. Dentre as tantas dificuldades interpostas pela continuidade autoritária, acentuam-se as dificuldades de impor controlo institucional da violência praticada por autoridades públicas.
Isso não quer dizer que condições institucionais igualem o presente estado democrático aos regimes ditatoriais anteriores. De facto, a Constituição de 1988 introduziu novos dispositivos formais e informais de controlo da violência policial (Mesquista Neto, 1999; Cubas, 2012). Ocorre que perante as mudanças institucionais, o monopólio estatal real da violência e o controlo específico da violência policial estão muito aquém do que se observa em outras democracias similares à brasileira.
Sob a democracia, a força física contra indivíduos diferencia-se da violência quando ao ser colocada em prática se restringe a limites impostos pelas expectativas normativas e à legislação vigente e é estritamente vinculada às prerrogativas constitucionais da polícia. Em sentido inverso, a força física confunde-se com a violência quando as ações dos agentes da polícia avançam para o terreno da ilegalidade e da inadequação - quando agentes da polícia a empregam de maneira privada para resolver conflitos e praticam assassinatos através das execuções de suspeitos ou em chacinas, para citar alguns exemplos (Mesquita Neto, 1999).
Foi nesse sentido que o estudo ora apresentado procurou elucidar e diferenciar as distintas medidas em que a violência criminal, a violência policial e o contacto legal com a polícia impactam a socialização legal de adolescentes. Evidentemente, a reflexão apresenta limitações de várias ordens. Vale a pena mencionar que a socialização é um processo amplo, multidimensional e que inclui diversos atores além da polícia. A experiência familiar, o quotidiano escolar e as interações com os pares também são oportunidades de socialização dos adolescentes (Trinkner e Cohn, 2012; Rodrigues et al., 2017). Espera-se que estudos futuros ampliem as circunstâncias socializadoras para o contexto brasileiro. Além disso, ressalta-se que a análise aqui apresentada consiste apenas numa descrição de associações a nível populacional - os resultados não devem ser interpretados como causais, dado que se trata de um desenho observacional; mesmo as questões de ordem temporal são assumidas teoricamente e não descobertas empiricamente.
Os dados compilados mostram que, entre os adolescentes estudados, há pouca diferenciação entre confiança na eficácia e o respeito aos princípios da justiça procedimental na legitimação da polícia. Há uma pronunciada expectativa de que a polícia atue no combate ao crime, o que não necessariamente a autoriza, na visão dos participantes, a desrespeitar princípios democráticos básicos.
Manifesta-se uma constatação similar nos resultados obtidos para os impactos diretos e indiretos do contacto com a polícia e da violência nas avaliações de legitimidade. O contacto com o trabalho policial executado relativamente à ordem legal não demonstrou associação negativa com a perceção de legitimidade, indicando que os adolescentes nessa idade reconhecem o uso da força policial como parte esperada do trabalho. Por seu turno, o contacto com o uso ilegal da força apresentou efeitos negativos nas variáveis de confiança. Nesse sentido, um processo de socialização marcado por tais formas de violência transmite aos adolescentes a perceção de que a polícia não é uma instituição confiável, pois não pauta a sua atuação por princípios democráticos e nem se atém às suas prerrogativas.
Outrossim, o impacto da violência ilegal praticada pela polícia pode revelar que os adolescentes reconhecem que a autoridade seja exercida dentro de determinados limites, aquilo que a literatura internacional tem chamado de bounded authority (Trinkner, Jackson e Tyler, 2018; Tyler e Trinkner, 2018). Isto é, mesmo os indivíduos que tendem a legitimar a polícia ou outras autoridades, sabem que a autoridade atua em determinado domínio, e que se restringe a esse domínio. Ações que fogem ao que é normativamente justificado para a autoridade policial são reconhecidas como abuso e, portanto, atrapalham o processo de legitimação.
Em suma, este estudo pode indicar alguns caminhos que as instituições democráticas poderiam seguir no sentido de elaborar políticas efetivas de segurança pública. O estudo indicou que a eficácia policial é importante para a legitimidade; contudo, não é possível que a instituição policial atue de qualquer maneira para reduzir os crimes. Há por parte da população adolescente a expectativa de que a polícia atue apropriadamente, respeitando os cidadãos. Um policiamento que se foque exclusivamente na entrega de resultados sem considerar a qualidade do serviço prestado pelos agentes da polícia corre o risco de contribuir negativamente para a imagem institucional. As instituições responsáveis pela aplicação da lei precisam, portanto, de considerar a maneira como interagem com os cidadãos em geral e com as novas gerações em particular, uma vez que a sua proximidade com o público as torna num modelo de como o Estado e a sociedade tratam os cidadãos e os grupos sociais aos quais pertencem. Para transmitir segurança para a população e ter o reconhecimento de um bom trabalho, a polícia não pode só ser eficaz no exercício de suas funções, mas precisa também de ser confiável, e isso passa por agir de maneira respeitosa, imparcial, evitando o uso da força desproporcional e demais abusos quando na interação com o público.
Nesse sentido, as instituições policiais e legais precisam de trazer a democracia para o dia a dia do seu trabalho. Isso implica reconhecer e respeitar o facto de que, em sociedades efetivamente democráticas, todas as autoridades e instituições possuem limites à sua atuação e devem atuar dentro de determinados padrões, garantindo o respeito pelos cidadãos, a possibilidade de estes serem ouvidos e estabelecendo uma conduta profissional neutra e imparcial.