Introdução
Que significado têm os animais de companhia na vida pessoal contemporânea? Esta é a questão principal que nos guiará na reflexão que se segue. Será enquadrada por um olhar que cruza os contributos dos Human-Animal Studies, em particular os que se debruçaram sobre a definição do animal de companhia e a compreensão do seu significado no quadro da vida familiar; e da Sociologia da Vida Pessoal, que propôs um quadro analítico inclusivo para pensar a diversidade e complexidade de relações pessoais contemporâneas, para além do sangue e da aliança.
A partir de dados empíricos de uma pesquisa realizada entre 2013 e 2018 sobre comunidades pessoais em Portugal (Policarpo, 2013)1, propõem-se algumas pistas de interpretação sobre qual é, afinal, o lugar dos animais que connosco vivem, nas nossas casas, no Portugal de hoje. Depois de explicitar as opções metodológicas que enquadraram os dados que a seguir se analisam, propomos olhar para o tema a partir de um ângulo específico: os modos de entrada desses animais nas comunidades pessoais em que se inserem. Terminamos com uma discussão destes resultados, propondo alguns eixos interpretativos, no cruzamento da Sociologia da Vida Pessoal e dos Human--Animal Studies. Para efeitos de comodidade, utilizaremos a expressão animais para nos referirmos aos animais não-humanos. Contudo, esta designação não deriva de, nem pretende reforçar, uma conceção dualista humano/animal, sobre a qual adotamos uma perspetiva crítica e para cuja desconstrução pretendemos contribuir.
Animais de companhia, famílias e vida pessoal: construção de um olhar
Em ambiente urbano, a maioria das interações humanas com outros animais ocorre precisamente com os animais de companhia. Em muitos casos, essa chega mesmo a ser única interação direta que se tem com animais não-humanos (DeMello, 2012, p. 147). Importa, assim, começar por questionar a própria categoria.
Construindo o animal de companhia
Apesar de cães e gatos marcarem presença na vida privada de reis e aristocratas desde o Renascimento, com registo em iluminuras, pinturas ou outras peças de arte (Braga, 2015), é a partir da passagem do século XVIII para o XIX que a categoria, tal como a conhecemos hoje, se começa a desenvolver. Surge ligada à consolidação do papel da burguesia, e ao concomitante processo de privatização da vida familiar, em que a família fecha as portas ao exterior, instalando-se uma dicotomia entre espaço público e privado. Enquanto o espaço público se torna maioritariamente masculino, as mulheres e as crianças recolhem ao espaço privado da casa e, com elas, os pequenos animais.
A existência de animais que não servem para mais nada a não ser entreter, ou fazer companhia, às senhoras e crianças desocupadas da burguesia, ganha sentido em comunidades com abundância de recursos, e por isso, com a possibilidade de manter animais que não tinham como fim serem consumidos (DeMello, 2012). São os pets: do francês petit, um pequeno animal que serve, tal como um brinquedo, para ser acariciado, por vezes enquanto aquecem o colo (lap dogs). São animais que vivem em ambiente doméstico, ou de grande proximidade com o ser humano. Promotores de bem-estar (Antonacopoulos e Pychyl, 2010; Kotrschal, 2018; Meehan, Massavelli e Pachana, 2017; Purewal et al., 2017; Risley-Curtiss, Holley e Kodiene, 2011; Serpell, 2015; Zilcha-Mano, Mikulincer e Shaver, 2012), são vistos como fonte de suporte emocional incondicional, ausente de juízos de valor, e sempre disponível (Purewal et al., 2017; Risley-Curtiss, Holley e Kodiene, 2011; Zilcha-Mano, Mikuloncer e Shaver, 2012). Servem ainda como catalisadores de interações sociais dos seus donos ( Antonacopoulos e Pychyl, 2010; Kotrschal, 2018; Serpell, 2015). Os estudos têm ainda mostrado que a perceção do seu papel como fontes de suporte social e emocional está relacionada com o nível de apego (attachment) que os donos manifestam a seu respeito: quanto mais elevado o nível de apego, maior a tendência de os considerar fontes de apoio (Meehan, Massavelli e Pachana, 2017; Serpell, 2015).
Em muitos casos, estes animais apresentam alterações a nível físico e comportamental em relação à sua espécie de origem, por exemplo no seu tamanho (DeMello, 2012, p. 148), sendo a sua reprodução manipulada para obter as características mais desejáveis aos olhos dos humanos (Tuan, 1984). Por outro lado, nem todos os animais de companhia são iguais. Entre a mesma espécie, a pertença a uma raça define o seu valor extrínseco para os humanos. E entre espécies, cães e gatos estão à frente de coelhos, porquinhos-da-índia, pássaros, hamsters, peixes, e outras espécies, como invertebrados (v. g. cobras). No topo desta hierarquia estão os humanos. Desta forma, a produção da categoria do animal de companhia contribui, à sua maneira, para o que alguns autores chamaram máquina sem um centro do antropocentrismo (Agamben, 2004; Filippi, 2017), pela forma como deixa na invisibilidade outros animais que, massivamente, alimentam o sistema industrial e de consumo dos humanos (alimentar, de lazer, de experimentação científica).
Na vida quotidiana, o território que os animais de companhia ocupam é negociado, pelos humanos, através da produção de uma categoria que lhes atribui um estatuto liminar, ou de transição (Fudge, 2002, 2014; Redmalm, 2013; Serpell, 1996). Alguém que se encontra entre dois mundos: apesar de ainda deter a sua animalidade, foi convidado a integrar a esfera pessoal humana, o que lhe concede características humanas ausentes noutros animais que estão à margem da domus. A categoria animais de companhia descreve os animais aos quais é dado um nome próprio, partilham o espaço (doméstico) com os humanos, e nunca são comidos. Esta transição para um estatuto de quase-humanos concretiza-se, assim, na atribuição de um nome e de uma morada (Ingold, 2011), e naquilo a que Fudge (2002, p. 34) chamou o tabu do canibalismo. Além disso, estes animais são vistos como indivíduos, com uma personalidade própria, mais do que como membros de uma espécie. Têm ainda grande visibilidade face a outros animais (v. g. os de produção alimentar, entretenimento ou experimentação; Fudge, 2014).
O animal de companhia surge então como um ser sem uma função bem definida (Charles, 2014, pp. 716-717; Serpell e Paul, 2003, p. 130), como sucede com outros animais, como os de produção, que têm um objetivo final, servirem de alimento (Charles, 2014, pp. 716-717). Os seus significados relacionais conjugam-se de modos diferentes, em diferentes famílias, com diferentes dinâmicas, e em diferentes fases do seu ciclo de vida. Doré, Michalon e Líbano Monteiro (2019) falam de três modos principais de integração dos animais nas famílias: integração (pertencem ao grupo familiar, e não são necessariamente comparados a humanos); assimilação (são como família, tornados equivalentes aos humanos da família); e substituição (são colocados no lugar de membros da família, que substituem). No seu estudo sobre animais de companhia em famílias israelitas, Shir-Vertesh (2012) mostra como estes animais podem ser despromovidos da sua condição privilegiada se ameaçarem a ordem humana, por não se ajustarem ao seu estilo e condições de vida. A autora aborda a atribuição do estatuto de pessoa aos animais de companhia de casais sem filhos, ou no processo de terem filhos, e chega à conclusão de que a atribuição deste estatuto é flexível. Num momento, o animal de companhia pode ser considerado como um filho, incorporando o estatuto de pessoa não--humana. Contudo, dada uma alteração significativa na organização familiar - como o nascimento de um bebé -, o animal pode ser despromovido desse estatuto, passando, por exemplo, de filho de quatro patas a aspirador de quatro patas (Shir-Vertesh, 2012).
A definição de animal de companhia é, assim, ambígua e aberta, dependendo da relação que os seus cuidadores têm para com ele/a. Começam, entretanto, a surgir alternativas a esta categorização. O termo animal companheiro2 tenta contrariar a perpetuação de um olhar sobre os animais como propriedade e com valor utilitário (Irvine e Cilia, 2017, p. 3). Em vez de cumprirem um papel instrumental de fazer companhia, são vistos como companheiros, pertencendo a espécies também elas companheiras (Haraway, 2003), parceiros na coconstrução de um mundo comum. Abandonando uma noção dos animais de companhia como inferiores na hierarquia humano-animal, e valorizando-os (Irvine, 2004, p. 58), a categoria animais-companheiros propõe assim uma maior paridade entre os humanos e os animais com quem partilham o espaço doméstico.
Comunidades pessoais multiespécies
No seu estudo sobre as relações de amizade no Reino Unido, Spencer e Pahl (2006, p. 2) definem uma comunidade pessoal como o “conjunto de outros significativos que habitam os nossos mundos micro-sociais”. Identificam cinco tipos principais de comunidades pessoais, conforme estas sejam principalmente fundadas em amigos; família; vizinhos; cônjuges/parceiros; ou profissionais (Spencer e Pahl, 2006, p. 130 et seq.).
Os dois últimos tipos são, como o próprio nome indica, muito focados num tipo específico de laço: o conjugal, e a relação com profissionais, sejam colegas ou técnicos que dão suporte. Já as comunidades fundadas nos amigos (friend-based 3 ) são maioritariamente escolhidas, no sentido em que os laços são construídos, e não herdados por sangue ou aliança. Os membros da rede são escolhidos em função da qualidade intrínseca do laço, e não tanto de normas culturais. Os amigos superam numericamente os membros da família, e desempenham muitos e diversificados papéis, que frequentemente se sobrepõem aos da família em sentido estrito. Neste perfil, Spencer e Pahl (2006) distinguem as comunidades friend-like das friend-enveloped. As primeiras têm uma maior ênfase na escolha como critério fundador, que se reflete na qualidade dos laços que compõem o mapa. Já as segundas caracterizam-se por uma disjunção entre práticas e perceções: a uma intimidade e suporte efetivos correspondem uma relativa invisibilidade no mapa, nomeadamente nos anéis centrais. O papel crucial dos amigos, construído e tornado visível nas práticas, não é reconhecido ao nível das normas e representações, que continuam a privilegiar os laços familiares.
Em contraste, as comunidades family-based são predominantemente herdadas (given), em vez de construídas. Os familiares (de sangue e aliança) superam numericamente os amigos e desempenham um amplo número de papéis, que se sobrepõem. Isto faz com que a família em geral ganhe grande ênfase, e não especialmente o cônjuge ou os filhos. Os primeiros anéis são quase exclusivamente ocupados por família de sangue ou aliança. Também neste tipo de redes os autores apontam duas declinações possíveis. Por um lado, as family--like contêm alguns laços de escolha, misturando amigos com família, mas raramente nos anéis interiores. Refletem sobretudo crenças normativas ou culturais acerca da importância da família, independentemente do que se passa na vida destes indivíduos ao nível das práticas. Baseiam-se assim, sobretudo, num modelo de família. Já as comunidades family-enveloped caracterizam-se por serem quase exclusivamente constituídas por membros da família, e por não terem praticamente amizades próximas. O repertório de amizade é aqui muito reduzido e os amigos, a existirem, desempenham apenas papéis limitados e institucionais, enquanto os familiares desempenham um leque vasto e variado de papéis, e constituem a maior fonte de suporte material e emocional.
Dado o familialismo presente na sociedade portuguesa, apesar das mudanças em termos de valores das camadas mais jovens, é de esperar que os tipos family-enveloped ou friend-enveloped sejam os que mais caracterizam as comunidades pessoais em Portugal. Trabalhos qualitativos e exploratórios sobre a amizade em Portugal apontam nesse sentido (Policarpo, 2016; 2017a; 2017b; 2018; 2019). Já um estudo sobre as normas que orientam o modo como os portugueses definem um amigo, ou um amigo íntimo, com uma amostra representativa da população portuguesa, revela a importância deste modelo normativo de família para a organização dos modelos de amizade. Para uma maioria relativa da população portuguesa (40%), um amigo é visto como um membro da família - real ou simbólico. Ou seja, a maioria dos portugueses tende a identificar-se com um modelo de amizade orientado para a família (Policarpo, 2015). Estas representações refletem também a estrutura sociodemográfica da população, na medida em que são principalmente os mais velhos e menos instruídos a partilhar desta definição mais familialista.
Não deixa de ser revelador que Spencer e Pahl (2006) não tenham incluído na sua tipologia os animais de companhia. Isto deve-se, em parte, às suas questões de investigação, orientadas para repensar o conceito de comunidade (Clark, 2007; Wellman, 1979, 1996), e, também, aos seus instrumentos de observação, como veremos na secção seguinte, centrados nos humanos. Neste artigo, porém, propomos uma abordagem diferente e inclusiva dos animais, avançando o conceito de comunidade pessoal multiespécies, ancorado na ideia de que a comunidade pessoal é uma estrutura em rede, em que podem participar, com impactos imprevisíveis, e contributos distintos, animais humanos e não-humanos. Neste sentido, a nossa alinha-se com uma perspetiva more-than-human (Abram, 1997), em que a esfera de ação e cultura humanas é entendida como parte de um todo mais alargado, a esfera terrestre sensorial, que ao mesmo tempo a inclui e excede; e pós-antropocêntrica, crítica da hierarquia de espécies e desconstruindo a supremacia da espécie humana em relação a todas as outras (Braidotti, 2013, 2019).
De como os animais irrompem numa investigação: considerações metodológicas
Serendipidade será o conceito que melhor descreve a chegada dos animais de companhia a este projeto. Desenhado para captar a rede de relações pessoais de portugueses residentes em meio urbano e periurbano, o projeto de investigação “Friends will be friends? Personal communities and the role of friendship in times of uncertainty” (FCT, BPD 85809 de 2012) tentando responder à questão inicial “qual o lugar e a importância dos amigos nesses mapas de relações pessoais?”, não contemplava explicitamente os animais de companhia, nem nas suas dimensões de análise, nem nos seus instrumentos de observação. Com uma metodologia mista e diversificada em função das facetas que pretendia explorar em cada momento, o projeto incluiu dados quantitativos recolhidos através de inquérito por questionário (Policarpo, 2015), entrevistas por email (Policarpo, 2016) e entrevistas em profundidade a 30 homens e mulheres residentes na área metropolitana de Lisboa (Policarpo, 2017b; 2018; 2019). E foi precisamente no decorrer destas entrevistas individuais que os animais irromperam, sem aviso prévio, na investigação. No seu estudo sobre a formação de redes pessoais, Charles e Davies (2008) constataram que os animais de companhia também surgiram de forma inesperada quando questionados sobre quem fazia parte da sua família(ver Quadro 1).
As entrevistas em profundidade, e individuais, tinham como base o convoy map: uma figura de círculos concêntricos, no centro da qual estava Ego (o/a entrevistado/a). Pedia-se aos entrevistados que dispusessem nessa figura os elementos da sua rede pessoal mais significativos para si, no momento da entrevista, sendo a proximidade em relação a Ego indicadora da importância atribuída. Este método foi usado em estudos qualitativos anteriores sobre o mesmo tema (Spencer e Pahl, 2006), o que permitiria também a comparação com esses resultados de outros contextos nacionais. A figura servia dois propósitos importantes. Por um lado, imprimia à entrevista uma dinâmica focada, dando ao entrevistado uma tarefa interessante que o alinhava com o tema, pouco tempo depois do início (a seguir à fase de quebra-gelo e caracterização). Por outro lado, proporcionava um exercício de imaginação inclusiva sobre a composição da própria rede de relações e afetos, por não propor uma discriminação dos seus elementos a partir de categorias pré-definidas (como teria acontecido se tivéssemos restringido a enumeração aos elementos da sua família, por exemplo).
Ao contrário de estudos anteriores (Pahl e Spencer, 2004; Spencer e Pahl, 2006), a questão inicial4 do guião de entrevista não integrava deliberadamente a expressão pessoas, mantendo assim a abordagem o mais abrangente possível. E foi assim que os animais de companhia chegaram à investigação. Um resultado não planeado, fruto da serendipidade. Mas não surpreendente, se pensarmos na importância numérica desses animais nas casas dos portugueses, reportada pelos estudos da chamada indústria pet (GFK, 2018); e atestada pelas mudanças recentes na legislação portuguesa (Araújo, 2003), no volume da indústria pet (alimentar, de bem-estar e, principalmente, de saúde), e nos processos e rituais de morte e luto (Policarpo, neste volume).
A amostra compreendeu 15 homens e 15 mulheres, entre os 21 e os 65 anos, pertencentes a todos os grupos da Classificação Portuguesa das Profissões (CPP)5. Destas, em nove casos os entrevistados reportaram espontaneamente animais de companhia nos seus mapas pessoais, nomeadamente cães e gatos. Um caso reportou também pássaros. Com um perfil socioprofissional bastante diversificado, estes entrevistados apresentam níveis de escolaridade que vão desde o 8.º ano à licenciatura, e profissões em praticamente todos os grupos da CPP. Trata-se ainda de famílias com alguma diversidade morfológica: uma pessoa a solo, três famílias monoparentais (duas femininas, uma masculina), três casais heterossexuais com filhos, um casal do mesmo sexo com dependentes a cargo.
As entrevistas foram realizadas com recurso a um duplo método de recrutamento: um terço por bola de neve, através da rede de contactos da investigadora; para evitar o enviesamento inerente a este tipo de amostragem, que tende a reproduzir o perfil social do investigador, parte do recrutamento foi realizado pela empresa de estudos de mercado IPSOS-APEME. As entrevistas foram todas realizadas pela investigadora responsável do estudo, nas instalações desta empresa, em condições que permitiram assegurar um ambiente de conforto e segurança propício à narrativização da intimidade. Duraram entre uma e duas horas, em três casos estendendo-se até às três horas. Este material foi posteriormente transcrito, anonimizado e sujeito quer a análise de caso (Policarpo, 2018) quer a análise transversal temática (Policarpo, 2017b; 2018; 2019).
Resultados: modalidades de entrada dos animais nas comunidades pessoais multiespécies
Nove casos reportaram espontaneamente animais de companhia nos seus mapas pessoais. A sua diversidade em termos de escolaridade e profissão, assim como de morfologia familiar, sugere que a presença dos animais é transversal na estrutura social, económica e familiar portuguesa. Chegar à vida dos humanos acontece muitas vezes de modo descompassado dos marcos normativos, antes em sintonia com o lado mais imprevisto da vida, fruto do impacto precário e inesperado dos afetos que orientam os indivíduos no seu dia a dia (Anderson, 2014; Power, 2008; Owens e Grauerholz, 2019; Turner, 2005; Shir-Vertesh, 2012; Volsche, 2018). Umas vezes de forma planeada, outras sem aviso prévio, os animais entram em cena de três formas principais: por necessidade; porque são desejados; ou porque são encontrados. As três modalidades podem, claro, sobrepor-se. Porém, para efeitos analíticos, abordemo-las em separado.
O animal necessário
Precisar de um animal para guardar a casa, fazer companhia, ou ajudar a superar uma doença, uma perda ou um luto, é uma das formas de entrada que mais articula valores e representações instrumentais e afetivos. Ancorada na necessidade e, consequentemente, na utilidade do animal para os humanos, não exclui a relação emocional e afetiva. Transparece nas histórias das famílias como a concretização de necessidades diferentes, para diferentes membros da família, de diferentes gerações. É o caso de Paulo [E11, 22 anos, 1 cão]. O cão que sempre quis ter, que marcou a sua infância, e que ainda hoje figura no primeiro anel do seu mapa de relações pessoais, surgiu de uma necessidade dos avós de um cão de guarda, para a sua casa na aldeia. O animal necessário e útil para a geração dos avós, foi também o animal fonte de afetos da geração dos netos. À sobreposição de diferentes gerações, e respetivos valores em relação aos animais, corresponde uma sobreposição de modos de relação com estes (instrumental e afetivo).
Na nossa amostra, os animais também surgem como necessários devido ao seu papel de apoio emocional, que pode converter-se em verdadeiro suporte terapêutico, por exemplo em caso de fragilidade psicológica ou doença mental. Por vezes, este papel funde-se com processos de perda por outro animal que os precedeu: o novo animal vem preencher o lugar do falecido, e dar apoio emocional aos humanos em processo de luto. Noutros casos ainda, os animais chegam à família para fazer companhia aos outros animais que lá vivem. Nesta sobreposição de expectativas, o seu papel terapêutico e de suporte emocional reforça a sua legitimidade como membros do núcleo familiar e como personagens centrais na biografia afetiva dos entrevistados. A história de João ilustra esta múltipla presença do animal terapeuta na vida familiar. Os cães têm tido um papel muito importante no apoio emocional do seu marido durante uma depressão prolongada. A simbiose entre cão e humano em situação de fragilidade emocional e psicológica faz com que as funções entre humanos e animais, família e não família, se esbatam: os cães são mesmo vistos como filhos. A relação de cuidador inverte-se, e o cão passa a ser o cuidador principal.
A entrada e presença dos animais como uma necessidade articula-se com comunidades pessoais em que os membros da família, de sangue e aliança, sobressaem. Isto pode acontecer quando os mapas relacionais são fundados maioritariamente na família (family-based), mas também quando os amigos superam os familiares (friend-based). No primeiro caso, sobressaem a importância da corresidência ou da consanguinidade, e o papel supletivo dos amigos, expresso na sociabilidade e diversão (fun-friends), ou parceria (associates, colegas de trabalho).
Já no caso dos mapas friend-based, apesar de os amigos superarem por vezes os familiares, nunca ocupam o espaço central da figura, sendo relegados para os anéis mais distantes. Ou seja, os indivíduos com este tipo de rede pessoal apresentam algum tipo de disjunção entre práticas e perceções, no que respeita ao lugar dos seus amigos na sua rede pessoal: o relato de intimidade e confidência, e de efetivo apoio, não encontra contraponto total no desenho do mapa. Em suma, nos dois casos, sobressaem os valores familialistas - seja ao nível da constituição da própria rede, seja ao das representações.
No entanto, os animais de companhia são colocados nos anéis centrais, e frequentemente mais próximos do que os humanos mais íntimos. Isto acontece independentemente de o mapa ser maioritariamente family-based, ou friend-based. Mais interessante ainda, esse posicionamento acontece independentemente de os animais já terem morrido. Ou seja, o facto de os animais de companhia surgirem como membros não só significativos, como centrais, destas comunidades pessoais, parece questionar não só a barreira interespécies, mas também a que separa vivos e mortos. Como se, a partir do momento em que nos atrevemos a incluir animais, fosse igualmente legítimo ultrapassar a fronteira da vida. Barreiras interespécies e barreiras existenciais são renegociadas, através dos animais de companhia e da nossa relação com eles. A este processo não é alheia a ação dos próprios animais: é pelo modo como ativamente se dirigem aos humanos, como eles comunicam e interagem, que conquistam o seu espaço e estatuto.
O animal sonhado
Uma segunda modalidade de chegada dos animais de companhia às famílias implica trazer para a história comum uma dimensão de sonho e imaginário, que enformará as expectativas em relação àquele indivíduo concreto, assim como à sua raça e à sua espécie. Segue-se um processo de adaptação, de aprendizagem da vida em comum. Conforme a relação entre humano e animal, estas expectativas podem ser defraudadas ou superadas. Mas, nos dois casos, a realidade que se apresenta é sempre diferente da sonhada. A narrativa construída em torno da chegada de um cão assim sonhado pode estruturar-se em crescendo, conferindo um significado singular não só ao animal, mas à vida comum com ele. O animal torna-se um ser profético.
Embora a dimensão do sonho integre sempre, de algum modo, a narrativa das famílias a respeito dos seus animais, nesta modalidade ela ganha uma importância constitutiva do laço. E surge relacionada com características próprias do animal, investidas de significado simbólico pelos humanos e, em particular, com a espécie e a raça a que pertencem. São animais que possuem aquilo a que Lorimer (2007) chama carisma não-humano, em particular estético: ou seja, são portadores de características físicas, próprias da sua espécie e raça, que os tornam mais atraentes, e desejáveis, aos olhos dos humanos. Este carisma estético pode associar-se também a uma seleção antropomórfica ( Serpell, 2005) de características associadas aos humanos, que geram identificação (por exemplo, os olhos redondos, membros curtos).
É o que aconteceu com Daniel: “Fui buscar este cão… Sonhei com o cão. Primeiro sonhei com o cão, depois descobri que aquela raça existia.” Ao mesmo tempo, porém, Daniel manifesta resistência em incluir o seu cão no mapa, nomeadamente nos círculos mais próximos, por lhe parecer estranho colocá-lo ao mesmo nível que membros da sua família ou amigos. Da conjugação dessa resistência com o papel inegável que esse cão tem na sua vida - sendo o único elemento que faz, permanentemente, parte do seu agregado familiar - resulta a sua inclusão nos anéis mais periféricos do mapa. Trata-se de uma comunidade baseada fundamentalmente na família, com as funções afetivas e instrumentais mais importantes preenchidas por familiares diretos (ver Figura 3).
O cão Lucas surge na transição entre o terceiro e o quarto anel, ou seja, o que distingue os amigos próximos dos outros. No entanto, no dia a dia, o cão é a presença mais constante, em casa, afetando diretamente a vida do entrevistado. O seu lugar, longe de refletir a efetiva importância quotidiana ao nível das práticas, reflete antes a ambivalência que subsiste ao nível das representações.
O animal inesperado
Finalmente, os animais podem chegar de forma inesperada, pela mão do próprio ou de alguém da rede pessoal. Esta modalidade é ditada pela fluidez e pela adaptação às circunstâncias da vida, mais ou menos favoráveis, e sempre em constante mudança. Sobressai a adoção de animais sem dono, errantes, nascidos de ninhadas na rua ou em circunstâncias não planeadas. São animais trazidos pelos vizinhos, dados por amigos, encontrados na rua ou noutros locais, como feiras ou abrigos. As vidas dos animais são atravessadas por múltiplas desigualdades que também ditam as dos humanos, como as que atravessam o território, ou as desigualdades económicas. Humanos e animais (sobre)vivem com a ajuda uns dos outros, nas franjas de um sistema em que a afluência não chega a todos, nem a todo o momento.
Assim aconteceu com Alberto, que depois do desgosto pela morte do seu cão de 17 anos, encontrou o seu cão atual numa feira. A comunidade pessoal de Alberto (ver Figura 4) assenta no papel central do cônjuge como fonte de suporte prático e emocional, com o qual se tem uma relação fusional, fechada ao exterior, e dinâmicas de estilo cocoon (Kellerhals, Widmer e Levy, 2004). Os filhos participam deste círculo íntimo, mas os restantes membros da rede são escassos, e dispersos pelos anéis mais periféricos. Os amigos são poucos, e têm um papel mais distante e superficial, sendo principalmente colegas de trabalho, ou parceiros esporádicos de sociabilidade.
Neste mapa, o cão Bernardo ocupa um lugar que destoa da importância que lhe é atribuída no dia a dia. Tal como nos mapas friend-enveloped, existe uma disjunção entre a perceção do seu lugar e o nível das práticas, traduzida numa relutância em incluí-lo nos anéis interiores, junto ao cônjuge e aos filhos. A barreira interespécies é paradoxalmente atualizada.
Por vezes, a entrada do animal acontece no cruzamento de vulnerabilidades de humanos e não-humanos. É o caso de Maria do Céu, outrora vigilante numa empresa de Segurança, e que a crise de 2008 fez entrar numa trajetória de desemprego de longa duração. Atualmente empregada de limpeza, paga à hora, em diversas casas particulares, vivia sozinha até que uma vizinha lhe trouxe uma gatinha, de uma ninhada de rua. Atender à urgência da cria sem casa foi atender também a situações precárias dos humanos envolvidos: uma vizinha em situação de sobrecarga com o resgate de outros gatos sem dono; e da própria Maria do Céu, que vivia sozinha e em situação económica frágil. A vida de humanos e animais entrelaça-se assim na precariedade, em várias dimensões, esbatendo, ainda que temporariamente, a barreira interespécies.
A comunidade pessoal de Maria do Céu reflete uma trajetória de alguma desafiliação familiar e social (ver Figura 5). Nesta rede destacam-se os profissionais que prestam algum tipo de assistência, as relações com a comunidade religiosa e as relações que estabelece com as pessoas para quem trabalha. A sua comunidade é professional-based, com alguns amigos a ocuparem o segundo anel, em conjunto com as relações laborais. Tirando a mãe e a gata Flor, estes poucos amigos, e as senhoras em casa de quem trabalha são as relações mais próximas.
A gata Flor surge no anel mais próximo, em conjunto com a mãe. A relação com esta última é descrita como fria e distante, sugerindo um laço mais institucional do que afetivo, e a resistência em reconhecer a precariedade dos laços de sangue, num quadro de valores familialista como é o da sociedade portuguesa. Pelo contrário, a relação com Flor é descrita como quente e próxima, construída com base na corresidência, na aprendizagem de linguagens comuns que permitam comunicar, nos corpos que se tocam, na cama que se partilha, na companhia mútua. Nestas múltiplas trocas, humanos e animais são mutuamente afetados, conduzindo à produção de um laço e de uma vida comuns.
Discussão: “não é não querer pô-lo; não sei é qualificá-lo”. Fusão ambivalente entre humanos e animais
Estes resultados exploratórios apontam para uma fusão entre humanos e animais, em termos de importância, significado e funções na vida dos humanos. Os animais são considerados tanto membros da família (filhos, irmãos), como amigos próximos, numa indistinção que atravessa o modo como também os humanos são integrados na rede pessoal. Neste sentido, a questão tão badalada sobre se afinal os animais são considerados amigos ou família, perde relevância. De facto, Spencer e Pahl (2006, pp. 108-127) falam de suffusion para descrever o processo pelo qual amigos e familiares se fundem nos mapas relacionais, numa indistinção entre laços escolhidos e herdados. Ou seja, a indistinção familiar/amigo (suffusion) que encontramos em relação aos animais mais não é do que uma extensão daquela que caracteriza as relações entre humanos nesses mapas relacionais. O papel que os animais aí desempenham é assim, tal como acontece entre humanos, caracterizado por um esbater das fronteiras entre funções instrumentais e afetivas, laços construídos e herdados (Spencer e Pahl, 2006, p. 112). Uma fluidez enquadrada pela importância que os afetos e os laços construídos e escolhidos têm, como fundadores das famílias contemporâneas (Singly, 2010), que vem legitimar não a presença dos animais nas famílias, pois sempre lá estiveram; nem tão pouco a relação emocional com eles, que também sempre existiu (Serpell, 1996; Thomas, 1983); mas antes a perceção que disso se tem, e a legitimidade social para o expressar.
No entanto, no caso dos animais, esse esbater de fronteiras e respetiva legitimidade afetiva implicam por vezes um questionamento da fronteira humano/animal. Os animais são incluídos em lugares afetivamente mais próximos do que elementos humanos da rede, e acumulam funções instrumentais (guardar a casa, fazer companhia, zelar pela saúde e bem-estar físico ou mental) e afetivas (fazer festas, dar carinho, brincar). Nesta vida comum, as tarefas do cuidar constituem um núcleo agregador da intimidade, em que os corpos se tornam familiares através da partilha dos aspetos e momentos mais desagradáveis da vida, como os fluidos do corpo sujo ou doente; mas também dos mais agradáveis, como as brincadeiras ou trocas de carinho. E embora os humanos assumam a maior parte das tarefas e responsabilidades do cuidar, os animais tornam-se também cuidadores, desafiando o ato de cuidar como uma actividade da espécie humana, que inclui tudo o que os humanos fazem para manter e reparar o mundo, de forma a nele viver o melhor possível (Fisher e Tronto, 1990).
Porém, esta inclusão dos animais nos anéis mais próximos dos mapas pessoais não é nem automática nem feita sem ambivalências. Shir-Vertesh (2012) fala do estatuto incerto dos animais de companhia, vulneráveis a despromoção em termos de papel e importância, em função de vicissitudes e ciclo de vida das famílias. Nos nossos resultados, essa incerteza no modo como são considerados não se traduz tanto nas práticas, mas mais na hesitação, e dúvida, sobre o lugar que deve ser atribuído aos animais no mapa (Charles e Davies, 2008). Como diz Daniel: “Não sei onde é que o ponho, porque acho mal, por princípio, pô-lo ao pé de… […] Sinto-me mal por estar a pô-lo ao lado de uma pessoa. […] intuitivamente tenho sempre a sensação - aquele preconceito - de que ‘é só um cão…’. ” A contradição que surge nestes mapas pessoais revela a ambivalência que caracteriza a relação dos humanos com os animais, e que também se aplica aos animais de companhia. A crescente humanização dessa relação, atribuindo-lhes características, ou sujeitando-os a práticas mais próximas dos humanos, não se traduz num largar da hierarquia entre espécies. No mesmo sentido, a crescente narrativa da familialização dos animais, ou seja, de que estes são vistos como membros da família (e não já como amigos), não encontra contraponto inequívoco no modo como estes indivíduos percecionam as suas redes interpessoais. Assim, estes animais de companhia parecem conservar o seu estatuto liminar, percebidos como estando em transição ou na fronteira entre ser um de nós; e um outro, uma alteridade que não conseguimos conhecer, e que persistimos em tentar dominar (Beck e Katcher, 1996; Fudge, 2014; Serpell, 1996; Tuan, 1984).
Este questionamento incerto alastra-se ainda à fronteira que separa vivos de mortos. Uma vez ultrapassada a barreira moral de os colocar no mapa pessoal, os animais são incluídos apesar de já terem morrido. Este resultado corrobora, para os adultos, o que Tipper (2011) encontrou para as crianças, e Spencer e Pahl (2006) para os humanos. Ao mesmo tempo, aos animais é reconhecido um poder transcendente de afetar as vidas dos humanos com quem vivem. Sugerindo que a transmissão desses afetos (Brennan, 2004) ultrapassa e questiona não só a barreira de espécie, mas também a da mortalidade e o modo como as vidas humanas são sujeitas a forças que as transcendem e à sua racionalidade.
A importância do imaterial e afetivo não se esgota na memória do passado, antes se projeta no futuro. Estende-se ao modo como se imagina os animais que ainda não se tem, antes da sua chegada, como se sonha a vida com eles. E enquadra o lugar dos animais nestas famílias e comunidades pessoais: como membros de uma espécie e como indivíduos específicos, quer por relação a outros da mesma espécie quer por relação a animais anteriores. Smart (2007) fala-nos da importância do imaginário na construção das relações familiares e pessoais na vida contemporânea, e de como ele gera expectativas que se relacionam com os modelos normativos que, em determinado contexto histórico e social, enformam o que é ser família. Do mesmo modo, o animal imaginado enforma o viver com o animal real. E tal como as famílias pelas quais se vive se distinguem das famílias com as quais se vive (Gillis, 1996), os animais imaginados ou pelos quais se vive são diferentes dos animais com quem se vive. O animal chega à família em função de uma ideia que se tem, e da idealização da relação futura, imbuída de expectativas e memórias. Porém, viver com o animal concreto pode estar em desacordo com esse imaginário. O animal torna-se o resultado da conjugação incerta destes dois elementos: imaginário e realidade.
Neste confronto, as características próprias do animal (quer como espécie quer como indivíduo), têm um papel. Investidas de simbolismo pelos humanos, algumas características físicas, próprias da espécie ou raça, tornam-nos especialmente desejáveis. Portadores de carisma estético (Lorimer, 2007), estes animais como que espoletam, primeiro ao nível do imaginário, depois proxémico, um processo em que os humanos se transformam, eles mesmos, em algo mais: em algo sonhado. São momentos em que humanos se tornam em (outro) Ser com esses animais (becoming with,Deleuze e Guattari, 1987; Haraway, 2003), através de processos de encantamento ou deslumbramento (Lorimer, 2007, p. 918 ).
Notas finais
Ao longo deste artigo, interrogámo-nos sobre o lugar dos animais nas vidas dos portugueses, a partir de um ângulo muito específico: o modo como eles chegam à rede pessoal. Revisitámos o conceito de animal de companhia à luz de dados empíricos de uma pesquisa realizada em Portugal, sobre as relações de amizade e o modo como estas se inscrevem nas comunidades pessoais mais alargadas, como o “conjunto de outros significativos que habitam os nossos mundos micro-sociais” (Spencer e Pahl, 2006, p. 2). Os animais entraram de forma inesperada nesta pesquisa, ao serem espontaneamente nomeados pelos entrevistados como membros centrais da sua rede.
Da mesma forma, é inesperadamente que muitas vezes chegam às famílias: sendo encontrados, adotados quando sem dono, ou trazidos por alguém da rede. Usámos o neologismo “inesperar” para dar nome a esta modalidade, em que, da incerteza e através dela, os animais se fazem inesperadamente certos nas vidas dos humanos. Identificámos ainda duas outras modalidades de entrada nestas comunidades pessoais: para preencher uma ou mais necessidades, ou para preencher um sonho ou um desejo. No primeiro caso, o animal chega com um papel instrumental, que acaba por se articular com outros expressivos, como o de fazer companhia, ou dar afeto. Tornam-se também cuidadores dos humanos com quem vivem, fornecendo suporte na saúde física e mental, dando apoio emocional. No segundo caso, as expectativas em relação ao animal sonhado acabam quase sempre por gerar um confronto com a realidade, que é preciso gerir e a que ambos, humanos e animais, têm de se adaptar. As características próprias da espécie, o seu carisma estético, podem desempenhar um papel muito importante na construção de um imaginário que irá enformar a relação com o indivíduo concreto.
Os modos como os entrevistados falaram dos seus animais, decidindo incluí-los ou não, e em que lugar, no seu mapa pessoal, falam-nos a um tempo da complexidade e contradição que envolve a relação com os animais, mesmo os que nos são mais próximos; e de como esta se inscreve no quadro de outras relações afetivas que caracteriza esses mapas. Se por um lado encontramos uma indistinção entre humanos e animais, com estes a ocuparem posições muito próximas no mapa, e a desempenharem funções instrumentais e afetivas que os humanos mais íntimos também desempenham, também é verdade que essa indistinção tem limites, e a hesitação sentida em comparar animais a humanos revela uma ambivalência que a certo momento reinstala a barreira entre espécies. Por outro lado, o facto de o animal ser indistintamente considerado um amigo ou um familiar encontra esteio na sufusão que caracteriza as relações pessoais contemporâneas. Verificada também entre humanos, traduz-se numa diluição de fronteiras e intercâmbio de funções entre laços herdados e construídos. Aqui, a barreira entre espécies também é questionada.
Neste artigo reconstituímos alguns modos como os animais entram na vida pessoal dos humanos, mas de fora ficou a sua vida prática, e a coconstrução de um espaço e uma vida comuns. Porém, foi possível ver desde já como se intersectam, e sobrepõem, fatores estruturais de desigualdade que em certa medida aproximam humanos e animais. Género, precariedade económica, fragilidade de laços, falta de redes fortes e perenes, que assegurem alguma estabilidade aos indivíduos, podem transmutar-se, no longo prazo, em trajetórias de desafiliação social, ou mesmo exclusão, que tornam as vidas de humanos e animais mais precárias. Nos humanos, as mulheres, menos escolarizadas, com trajetórias profissionais instáveis e baixos rendimentos, com ascendentes ou descendentes a cargo, e sem grande rede de apoio, são mais vulneráveis a esta precarização (Vasconcelos, 2005).
Entre os animais, o efeito cruzado do género e da espécie faz ressonância das desigualdades que aproximam historicamente os processos pelos quais mulheres e animais foram negados o acesso a uma subjetividade e direitos próprios (Cudworth, 1998; Adams, 2010; Adams e Donovan, 1995; Birke, 2002). A espécie de pertença faz diferença, com algumas espécies a serem privilegiadas para adoção. E o género também faz diferença, o destino biológico de ser fêmea fértil, em idade reprodutiva, transformando-se potencialmente num destino social de abandono. Como, de resto, também foi, historicamente, a situação de muitas mulheres. Além disso, para os animais contribui ainda o seu habitat: o modo como se aproximaram dos humanos e seus estilos de vida, e na medida em que os seus cuidados passaram a depender destes, não “ter dono” torna-se um problema. Ou seja, para estes animais de companhia, e diferentemente dos animais que vivem na natureza, não ter uma “comunidade pessoal” de humanos torna as suas vidas mais precárias. E na medida em que as comunidades pessoais dos “seus” humanos entrem em falência, as suas vidas serão também afetadas. Os animais representam assim de algum modo uma “durabilidade frágil”. Seres que asseguram a continuidade da memória e identidade familiares, que acompanham os indivíduos na sua travessia pelas fases incertas do seu ciclo de vida. Ao mesmo tempo, permanecem na fronteira instável e precária da sub-humanidade, em risco de despromoção das suas condições de vida.
Destes aspetos, destacamos algumas implicações cívicas e societais desta investigação. Em primeiro lugar, o lugar dos animais de companhia nas famílias portuguesas onde vivem, e as implicações concretas na vida do animal, só podem ser compreendidos no quadro mais alargado das relações familiares e afetivas nessa família. Neste sentido, a definição de animal de companhia é relacional: os animais não existem numa família num vazio relacional, nem separados das restantes dinâmicas e redes de relações. Antes, estão posicionados nesta rede de relações. E o seu significado nas vidas dos humanos depende da relação que uns e outros vão construindo em conjunto. Neste sentido, os animais também contribuem ativamente para dar forma, alterar, esse quadro de relações.
Por outro lado, a vida dos animais é afetada pelas mesmas mudanças que influenciam a família ao longo do seu ciclo de vida. Estar atento a momentos sensíveis e de mudança e reconfiguração da família, acompanhando eventuais mudanças no seu estatuto no seio da família, pode ajudar a evitar situações de precariedade, que inclusivamente redundem em negligência, maus-tratos ou abandono.
Esta investigação convida assim a reconhecer o estatuto dos animais de companhia enquanto participantes completos e legítimos da vida familiar, a quem a família reconhece papéis específicos, como o de dar suporte emocional, ou fazer companhia. Porém, este estatuto não é fixo e estável, não estando imune às mudanças da família no tempo, ao longo do seu ciclo de vida. Também não é transversal, nem a todas as espécies, nem a todas as famílias e situações, sendo atravessado por desigualdades de poder com base na espécie ou no género. Importa pois colocar a atenção no modo como estas desigualdades se cruzam e sobrepõem, para (re)produzir espécies e indivíduos mais vulneráveis a vários tipos de violência e/ou exclusão.
Finalmente, neste artigo, argumentámos que os animais não-humanos são centrais para definir as comunidades pessoais que integram de duas formas: por um lado, e a um nível mais superficial, o da sua morfologia, ou seja, como entidades significativas e produtoras de laços afetivos e instrumentais. Por outro lado, os animais estão por vezes no cerne dessas comunidades pessoais a um nível mais profundo e menos visível, o da sua ontologia fundacional. São casos em que a existência de laços com outras espécies se torna uma característica fundadora da própria comunidade pessoal. Por outras palavras, esses animais tornam-se num elemento de coesão que liga os humanos entre si, para além de ligar humanos a animais, num intercâmbio cooperativo de características entre diferentes espécies. Este é, em nosso entender, o mais profundo significado da comunidade pessoal multiespécies.