Introdução
Tendo como ponto de partida a combinação de campos disciplinares distintos, mas complementares (e. g., sociologia da saúde e da doença; antropologia médica; animal studies), o presente artigo aborda o modo como o relacionamento entre humanos e animais de companhia influencia o bem-estar e a saúde dos primeiros, acarretando também, eventualmente, vantagens para os segundos. A categoria animal de companhia pressupõe uma familiaridade com os humanos, não sendo geralmente consumidos por estes, nem usados para atividades de entretenimento e laboratoriais (Haraway, 2003; 2008). Os animais de companhia assumem assim um estatuto paradoxal, na medida em que se num momento podem fazer parte da vida dos humanos, sendo a sua presença valorizada; em outro podem vir a ser abandonados ou mesmo eutanasiados (Redmalm, 2013; Policarpo, 2020).
De facto, esta noção de companhia remete para a ideia de partilha de vida comum, em que humanos e animais partilham práticas, afetos e significados (Policarpo, 2022; Policarpo e Tereno, 2022). Além dos cães, são vários os exemplos de animais que podem ser inseridos nesta categoria, como gatos, coelhos, peixes e pássaros (Amiot, Bastian e Martens, 2016). Não obstante, ao falarmos sobre animais de companhia é fundamental ter presente que a flexibilidade ontológica dos mesmos se relaciona diretamente com o seu estatuto social de subalternidade (Tuan, 1984) e com o papel que desempenham em determinadas fases tanto das suas vidas, como das vidas dos humanos com quem coabitam (Shir-Vertesh, 2012).
Em particular, este artigo procura explorar o papel que os animais de companhia podem desempenhar no campo do bem-estar e da saúde humana. Os laços físicos e afetivos entre humanos e não humanos parecem promover não só o bem-estar dos primeiros em situação de doença, mas também dos humanos considerados saudáveis (Lee Davis, Maurstad e Dean 2015). De facto, os animais de companhia podem contribuir para a diminuição da solidão humana, bem como para a promoção de uma vida mais ativa (Staats, 2006; Staats, Wallace e Anderson, 2008). Para além disso, podem até adotar um papel determinante na facilitação de interações positivas entre membros das famílias às quais pertencem, quer ao nível do equilíbrio emocional ( Tannen, 2004; Walsh, 2009; Leow, 2018), quer da saúde física e psicológica dos seus membros (Albert e Anderson, 1997; Eckstein, 2000; Herzog, 2010).
Neste âmbito, num primeiro momento, procura-se dar conta do lugar que os animais de companhia ocupam na vida dos humanos. Num segundo, reflete-se sobre o papel que os animais de companhia têm sobre o bem-estar e a saúde dos humanos de forma geral. Por último, analisa-se esse mesmo papel, mas em situações críticas, como é o caso da doença crónica. Propõe-se assim explorar, através de diversos exemplos interdisciplinares, como esta relação entre humanos e não humanos marca e demarca a experiência da doença, em particular da doença crónica dos primeiros, sem prejuízo das vantagens que os segundos possam vir a auferir nestas situações.
O lugar dos animais de companhia na vida dos humanos
Humanos e animais têm coexistido ao longo da história (Knight, 2018; Wilson, 1993), estabelecendo um alargado leque de interações que podem ser caracterizadas em maior ou menor grau por dinâmicas de competição, dominação e/ou cooperação. De facto, são vários os artefactos históricos (e. g. pinturas rupestres) que espelham a importância e centralidade que os animais têm assumido no percurso das sociedades humanas (Amiot, Bastian e Martens 2016; Engster, 2006). Sugere-se que esta centralidade resulta do longo processo evolutivo, de algum modo partilhado, que tem permitido aos humanos relacionar-se com os animais numa vasta diversidade de experiências e com diferentes espécies (New, Cosmides e Tooby, 2007). Assim, as relações que estabelecemos com os animais são diversas e até paradoxais (Herzog, 2010; Possidónio et al., 2019). Mobilizamos recursos para conservar e proteger algumas espécies no seu estado natural, ao mesmo tempo que sujeitamos outras a processos deliberados e sistemáticos de alteração genética para satisfazer finalidades humanas, como a alimentação e o vestuário (Herzog, 2010; Dhont et al., 2019). Alguns animais são integrados nos nossos círculos sociais e familiares, outros são ignorados, e outros são rejeitados ou até exterminados. Mas como explicar tamanha diversidade e complexidade nas relações que estabelecemos com os não humanos?
Assumindo, frequentemente, uma perspetiva antropocêntrica, tendemos a classificar os animais não humanos com base em variados fatores (Amiot e Bastian, 2015; Dhont et al., 2019). Alguns destes fatores prendem-se com características biológicas, relacionadas com os próprios animais (e. g., classe, espécie). Outros prendem-se com a utilidade percebida que os animais têm para os humanos, em função do seu valor instrumental (e. g., económico, recreativo, nutricional). E também avaliamos os animais em função das nossas próprias características e experiências pessoais e sociais. Por exemplo, vários estudos têm verificado que a quantidade e a qualidade do contacto com animais de companhia durante a infância podem influenciar a nossa relação com os animais durante a vida adulta (e. g., Serpell, 1981; Rothgerber e Mican, 2014; Possidónio et al., 2021).
Também o género tem sido consistentemente identificado como uma variável importante para compreender as relações entre humanos e animais em vários contextos culturais, no sentido em que os homens tendem a demonstrar, em média, atitudes de maior dominância e apoio à exploração animal, em comparação com as mulheres (e. g., Amiot e Bastian, 2015; Graça et al., 2018). Em relação às características (percebidas) das próprias espécies e animais, há evidência de que os animais entendidos como sendo esteticamente mais atrativos, detentores de maior complexidade emocional e cognitiva (i. e., mais capazes de sentir e de pensar), e menos comestíveis, são tendencialmente investidos de maiores sentimentos de cuidado e proteção por parte dos humanos (Possidónio et al., 2019). Paradoxalmente, a nossa preocupação com o sofrimento dos animais está intimamente relacionada com a utilidade percebida desse sofrimento (Braithwaite e Braithwaite, 1982; Knight e Barnett, 2008). Ou seja, à medida que retiramos mais benefícios do sofrimento de um animal (e. g., para fins de alimentação, entretenimento ou segurança), menor será também a nossa tendência para sentir empatia e vontade de o proteger (Knight e Barnett, 2008; Possidónio et al., 2019).
Denota-se, portanto, que a relação entre humanos e não humanos é pautada pela diversidade de práticas, contextos, dinâmicas e motivações. No presente trabalho, importa destacar o papel desempenhado por aqueles com quem os primeiros têm estabelecido relações mais próximas e a quem têm atribuído significados específicos, relacionados com a criação de laços emocionais e afetivos (Serpell e Paul, 1994). Nas sociedades ocidentais industrializadas, os animais de companhia têm sido investidos de um estatuto particular que os protege de processos de exploração mais óbvios (e. g., animais como alimento e como vestuário) (Amiot, Bastian e Martens, 2016; Knight, 2018), ainda que continuem a ser frequentemente instrumentalizados e sujeitos ao estatuto de subalternos (Tuan, 1984; Irvine, 2008). Assim, é o valor emocional e afetivo por vezes atribuído aos animais de companhia que pode marcar a distinção face a outros animais a quem os humanos atribuem outros sentidos e significados como, por exemplo, valor económico ou nutricional (Engster, 2006; Serpell e Paul, 1994).
A função social que os animais de companhia desempenham é particularmente visível quando os humanos os equiparam a membros da família e os associam a um menor ou maior grau de afetividade (Carlisle-Frank e Frank, 2006; Cohen, 2002). À semelhança de outros países da Europa, os dados mais recentes relativos a Portugal sugerem uma presença bastante expressiva de animais de companhia nos agregados familiares. Dados relativos a 2017 (GFK, 2017) estimavam que cerca de 55% de lares portugueses possuíam pelo menos um animal de estimação. Dos vários animais que os portugueses integraram no seio familiar, no mesmo ano, destacou-se o cão (41%), gato (22%), pássaro (19%) e peixe (11%). Relativamente ao tipo de relação que os donos estabelecem com os animais, em particular cães e gatos, as ligações de tipo emocional apresentam-se como sendo mais expressivas (e. g., o animal visto como um amigo ou como membro da família) em detrimento de ligações de tipo funcional (e. g., o animal visto como um “dispositivo” de proteção e vigilância) (GFK, 2017).
Ainda que seja possível encontrar interações entre humanos e animais em vários contextos socioculturais (Bayne, 2002), a forma como estas relações se regulam não apresenta um carácter transversal e não é pretensão deste texto ilustrar todas essas dinâmicas. As especificidades inerentes aos diferentes países e regiões têm vindo a promover diferentes tipos de relacionamento entre humanos e animais de companhia. Se, por um lado, em países como os EUA e outros pertencentes à Europa Ocidental os animais de companhia podem ser vistos como membros da família, por outro, em diversos países não ocidentais esta proximidade entre humano-animal de companhia não possui a mesma expressão, adotando-se outras cosmologias (Amiot, Bastian e Martens, 2016). Além disso, o valor que um determinado animal possui varia consoante a sociedade em que se insere, podendo alternar entre objeto de consumo e expressão de afetos (Gray e Young, 2011; Herwijnen et al., 2018). A literatura, em particular em torno dos animal studies, tem procurado perceber que implicações advêm da relação humano-animal de companhia, dando conta da existência de potenciais benefícios físicos e psicológicos para os humanos, mas também relações de indiferença, ou até possíveis consequências negativas para ambas ou uma das partes (e. g., humanos e/ou não humanos) (Amiot, Bastian e Martens, 2016; Brooks et al., 2018; Chen, 2018; Herwijnen et al., 2018).
Os animais de companhia e a saúde dos humanos
Diversos estudos sugerem que os animais de companhia, nomeadamente os cães, contribuem não só para a promoção de atividade física ao longo do percurso de vida, mas também para o aumento da participação social e, consequentemente, para uma maior satisfação com a vida em comunidade (Toohey et al., 2013). A relação que os humanos têm estabelecido com os cães é especialmente ilustrativa dos processos de interdependência entre humanos e animais de companhia. A capacidade de adaptação ao comportamento humano que estes têm vindo a apresentar (Hare e Tomasello, 2005; Kubinyi et al., 2003) permitiu que os mesmos fossem enquadrados num vasto leque de dinâmicas sociais. Também a possibilidade de interpretar e associar certas emoções a estes animais contribuiu para níveis de entendimento mais profundos ( Martens, Enders-Slegers e Walker, 2016). Os animais de companhia, em particular os cães, parecem proporcionar um aumento do capital social através do desenvolvimento de interações e contactos entre os próprios humanos que partilham, de certo modo, uma forma de vida (Wood, Giles-Corti e Bulsara, 2005).
Uma outra dimensão importante diz respeito ao fator protetor que os animais de companhia parecem ter sobre a solidão, em particular aquela que tende a ser experienciada pelos mais velhos (Stanley et al., 2014), mas também por indivíduos em situação de sem abrigo (Irvine, 2013). As histórias narradas por estes últimos focam-se particularmente no conceito de redenção propiciado pelos referidos animais, os quais estimulam um sentido de responsabilidade, ajudam na construção de uma identidade moral positiva e atuam como obstáculos a comportamentos de risco. Na base destas narrativas encontram-se características atribuídas aos animais que funcionam como facilitadoras deste processo, nomeadamente, a construção dos mesmos como inocentes e fornecedores de amor incondicional (Irvine, 2013).
O mesmo efeito amortecedor do estigma foi verificado, por exemplo, num estudo realizado com indivíduos diagnosticados com vírus da imunodeficiência humana (VIH) na Austrália (Hutton, 2014). Os benefícios inerentes à relação entre humanos e animais permitiu avançar a hipótese de que os últimos poderão ter o efeito de atenuação de atenuação das consequências negativas associadas ao isolamento e à rejeição social. Por não perceberem ou reconhecerem o estigma, por funcionarem como facilitadores de relações sociais e comunitárias entre humanos, mas sobretudo devido à natureza e à força do vínculo criado entre humanos e animais, as conclusões deste estudo parecem indicar que a presença de um animal e o tipo de relação estabelecida entre ambos poderão proteger estes indivíduos do impacto negativo resultante da falta de apoio fornecida por outros humanos após um diagnóstico positivo de VIH. Por outras palavras, o vínculo estabelecido confere a quem padece desta enfermidade uma sensação de segurança que se funda numa ideia de amor incondicional recíproco, tal como identificado em estudos anteriores (Irvine, 2013).
A noção de corporalidade assume também um papel de relevo, na medida em que a relação entre humanos e animais de companhia é pautada por uma forte proximidade física (Fox, 2006). Tendo por base uma pesquisa etnográfica com uma associação de resgate animal, Porter (2019) verificou que os voluntários treinam os seus corpos com o intuito não só de condicionar o comportamento dos cães, mas também de tentar perceber o seu grau de satisfação através das manifestações físicas que estes expressam. Esta projeção de noções de incorporação entre espécies permite perceber como tanto o interior como o exterior de cães e humanos são moldados mutuamente. Entre humanos e animais, a autora afirma que as interações existentes se afetam mutuamente tendo por base a corporalidade, permitindo o que Haraway apelidou de “tornar-se com” (2003; 2008), um laço remoto, mas presente, na relação de coconstituição entre humanos e não humanos. Deste modo, constroem-se mutuamente significados partilhados. Estes permitem explorar situações de descoberta mútua, as quais expõem também questões sobre como devemos utilizar os nossos corpos na presença de outras espécies com vista a promover relacionamentos com base no cuidado.
Não obstante, nem todos os contributos para a saúde dos humanos provêm de animais de companhia ou domesticados. Wells, Rossen e Walshaw (1997) exploraram como a presença pontual de gatos assilvestrados no interior de consultas de psicoterapia numa clínica rural nos EUA promoveram resultados positivos nos pacientes. Ao contrário dos animais domesticados, cujas características os tornam aptos a funcionar como auxiliares terapêuticos (são civilizados, bem treinados, desejosos de agradar), os gatos selvagens, pela miríade de comportamentos inesperados e potencialmente considerados problemáticos, permitiram que estes pacientes se vissem neles refletidos, se projetassem e se sentissem valorizados na partilha de comportamentos, acelerando processos terapêuticos que noutros casos se poderiam arrastar indefinidamente. De salientar que no referido estudo não são apresentados os benefícios para os animais selvagens, para além da possibilidade de oferta de água, comida e abrigo por um curto espaço de tempo. Tal poderá eventualmente desafiar a suposta relação mutualista entre animais e humanos, recaindo numa visão antropocêntrica e levando os animais selvagens a experienciarem a perda do seu habitat e da presença dos seus pares, embora de modo temporário. Recentemente, e no decorrer da pandemia provocada pelo vírus SARS-CoV-2, estes processos terapêuticos foram estendidos a animais considerados como comestíveis.1
Por outro lado, o vínculo estabelecido entre humanos e pássaros (Anderson, 2014), em particular, papagaios, centra-se nas semelhanças que estes partilham e que os distinguem de outros animais de estimação mais populares em meio doméstico, como a longevidade e o reconhecimento de uma linguagem comum. A autora explica que uma elevada percentagem de proprietários de aves considera os seus animais “fids” (“feathered children”, ou crianças com asas) (Anderson, 2014, p. 372), um tipo especial de familiares com os quais partilham fortes laços emocionais. Não é também incomum encontrar entre estes indivíduos a ideia de que os seus pássaros de estimação funcionam como terapeutas, especialmente em pacientes diagnosticados com doenças mentais e/ou crónicas. Anderson baseia-se em Serpell quando este defende que
os estudos existentes sobre os benefícios para a saúde dos donos ignoraram ou desvalorizaram a natureza social da relação e afirma que “claramente estas relações deveriam ser estudadas enquanto interações diádicas em que ambos os participantes - humano e animal - representam papéis importantes” [Andersen, 2014, p. 381].
Os animais são assim entendidos não como substitutos, mas como reforços que podem também usufruir dos cuidados humanos. Esta última ideia está bem patente quando os segundos têm de cuidar dos primeiros com quem coabitam quando estes são afetados por determinada enfermedidade. Tal é ainda mais evidente quando os animais de companhia sofrem de uma doença crónica, uma vez que os humanos na maioria das vezes têm de prestar cuidados diários ao longo de um significativo período de tempo, o que motiva alterações na sua vida quotidiana (Christiansen et al., 2013). Este exemplo encontra-se ilustrado no trabalho de Rock e Babinec (2008) sobre a diabetes mellitus, uma doença crónica cujo diagnóstico e gestão se assemelha e distancia em humanos, gatos e cães, permitindo assim ilustrar a continuidade e fluidez entre saúde e doença entre diferentes espécies. As autoras mostram como o ato de tratar os animais domésticos para este tipo de problema assenta no reconhecimento de que estes são seres sencientes, questionando a crença de que existem simultaneamente continuidades físicas e descontinuidades em termos de interioridade entre humanos e animais, um tópico também abordado por Porter (2019).
O reconhecimento das suas capacidades para sentir dor e a importância atribuída a uma vida que deve ser experienciada com qualidade, permite que o cuidado com estes animais se estenda após o diagnóstico, recorrendo ao conhecimento especialista de veterinários e às tecnologias disponíveis tanto para animais como para humanos. Ao encarar-se a relação entre ambos como recíproca, é possível assumir que não só os humanos podem desempenhar um importante papel quando os animais são afetados por uma doença crónica, mas também que os animais de companhia podem ter um lugar de relevo na experiência da doença crónica dos primeiros.
O papel dos animais de companhia na experiência da doença crónica dos humanos
Partindo do olhar das Ciências Sociais sobre a vivência da doença crónica por parte dos humanos, pretende-se dar a conhecer o papel que os animais desempenham na vida dos primeiros quando são afetados por este problema. Não descurando o envolvimento dos animal studies - enquanto campo interdisciplinar autónomo que integra contribuições de diferentes disciplinas (DeMello, 2010) -, procuramos nesta secção considerar a experiência de doença crónica à luz das relações entre humanos e não humanos, as quais, embora recíprocas, não se apresentam necessariamente como igualitárias nem potenciam o mesmo tipo de vantagens e desvantagens para todos os envolvidos.
Mesmo que não haja uma definição consensual e definitiva de doença crónica no âmbito das Ciências Sociais, várias aproximações foram avançadas com o intuito de melhor compreender e definir o conceito. Um dos principais obstáculos prende-se com o carácter social destas definições estabelecidas no campo dos saberes biomédicos, o qual não capta a vivência das mesmas ao longo do tempo e em contextos socioculturais diferentes (Manderson e Smith-Morris, 2010). Estas categorizações negam ainda a fluidez, ou paradoxalmente a rigidez, dos estatutos em que estas patologias são vividas (Garcia, 2008; Jackson, 2005), simultaneamente biológicas e sociais, liminares e penalizadoras.
No caso particular das doenças crónicas, a literatura aponta para a importância de refletir na influência do contexto cultural em que se desenvolvem. Este permite promover situações de sofrimento social, afetando não apenas quem diretamente padece deste problema, mas de todos os que acolhem e que se relacionam com estes indivíduos (Kleinman e Hall-Clifford, 2010). Permanece também no seu discurso uma dificuldade em conciliar as rotinas impostas pela enfermidade com vidas moralmente valorizadas e socialmente produtivas (Hay, 2010).
A reestruturação do tempo e a maneira como as doenças crónicas se interligam com todos os aspetos das vivências diárias e mundanas dos indivíduos - e que são características fundamentais deste tipo de doenças - levam a que estes sofram do que Estroff (cit. por Kleinman e Hall-Clifford, 2010, p. 248) chamou de “alteração do sentido do eu”, acabando os doentes por percecionar a sua vida como estando limitada e condicionada. Embora a doença crónica possa ser entendida de diversas formas, nomeadamente como uma disrupção biográfica (Bury, 1982), uma continuidade biográfica (Williams, 2000), um seguimento (Faircloth et al., 2004) ou um reforço biográfico (Carricaburu e Pierret, 1995), os estudos remetem-nos para a ideia de que para compreendermos a experiência da mesma, é essencial olharmos para a história de vida do indivíduo.
Os animais, ao serem considerados por alguns humanos como membros da família (Charles, 2016; Mason e Tipper, 2015), desempenham um papel central na construção da biografia dos indivíduos diagnosticados com doença crónica (Brooks et al., 2013). Tendo como exemplo os animais terapêuticos, Eason (2019) demonstra como humanos e não humanos se tornam aliados partilhando práticas de cuidados e rotinas de gestão diária. Refere também os vários aspetos em que os cães oferecem apoio, não só identificando biomarcadores, como ajudando na restruturação do “eu fraturado” pela doença (Charmaz cit. por Eason, 2019, p. 7) e potenciando encontros sociais que combatem o isolamento. Porém, os cães nestes exemplos apontados também atuam enquanto guardiães e protetores dos seus donos, permitindo a reintegração dos segundos em ambientes sociais dos quais se encontravam excluídos.
Os animais de estimação também contribuem para o que Brooks et al. (2013) caracterizaram de “trabalho emocional de gestão de uma doença crónica”, como são os casos da diabetes e da doença cardíaca. Neste caso, os autores focaram-se no papel positivo que os animais de estimação podem desempenhar como membros das comunidades e redes sociais dos humanos enquanto fator determinante para a gestão das mesmas. Os animais são considerados facilitadores deste tipo de sociabilidade e não apenas agentes passivos, resultando daí potenciais benefícios em termos da saúde para as pessoas. De igual modo, os animais parecem poder contribuir para o reforço do sentido de vida e de valor próprio por parte dos humanos doentes.
Dito isto, uma outra dimensão de relevo diz respeito ao facto de não existir por parte dos humanos uma sensação de peso ou de fardo para o animal, ao contrário do que sucede com as relações com outros humanos, devido ao seu estado de saúde debilitante e deteriorante (Brooks et al., 2013). Na verdade, este receio é um sentimento comummente descrito por quem sofre de algum tipo de doença crónica (McPherson, Wilson e Murray, 2007). A isto acresce ainda a questão do estigma e da culpa associada a este estatuto (Scambler, 2009). A interação com os animais, ao ser pautada por um apoio considerado como incondicional ao longo de todas as fases da doença, tende a ser valorizada por parte desses indivíduos. Para além disso, o animal de companhia parece não só oferecer um sentido à vida, como anteriormente foi descrito, mas também uma continuidade entre a vida passada (sem doença) e a vida presente marcada pela doença (Brooks et al., 2013), reforçando assim a perspetiva de outros autores que destacam o instrumentalismo das relações entre animais e seus donos no âmbito da vivência da doença crónica.
Tais benefícios são ainda mais evidentes quando nos debruçamos sobre a vivência da doença crónica por parte de crianças e jovens (Spence e Kaiser, 2002). As suas narrativas revelam que os animais de companhia são uma fonte de aceitação, distração e identificação que os ajudam a lidar melhor com este problema (Walker et al., 2015). Estes, pelas suas ações e características, tendem a ser encarados por crianças e jovens como uma importante fonte de apoio e conforto emocional no decorrer do processo de vivência de uma doença crónica (Spence e Kaiser, 2002). A aceitação incondicional e a falta de crítica por parte dos animais de companhia (Beck e Katcher, 1996) permite que não se sintam discriminados por padecerem de doença crónica (Monaghan e Gabe, 2015), contribuindo para a sua autoestima (Walker et al., 2015) e reforçando assim os pressupostos já avançados anteriormente também com outros grupos etários.
Neste âmbito, é ainda de salientar o papel que os animais podem desempenhar ao nível da promoção do bem-estar tanto físico como emocional de crianças e jovens hospitalizados (Kaminski, Pellino e Wish, 2002). A hospitalização é na maioria das vezes uma experiência bastante angustiante e associada a uma mudança no estilo de vida das crianças e dos jovens, bem como a uma separação da sua família (Hopia et al., 2005). Todavia, existem evidências de que a presença de animais pode diminuir substancialmente o desconforto e a ansiedade associados a essa situação (Tsai, Friedmann e Thomas, 2010). Para além disso, a imagem dos animais representados e presentes através de peluches parece ser também um mecanismo importante de conforto para estes pacientes (Ångström-Brännstrom e Norberg, 2014), ilustrando o lugar que os animais ocupam na vida real e imaginária das crianças e dos jovens (Cole e Stewart, 2014).
De forma semelhante, estudos com doentes adultos em contexto de fim de vida indicam que a interação com os animais de companhia pode melhorar a qualidade de vida destes doentes (Engelman, 2013; Geisler, 2004; Macdonald e Barrett, 2015; Turnbach, 2014). Além disso, a interação com os animais parece ser potencialmente benéfica tanto para doentes neurológicos como para alguns doentes psiquiátricos, quer em termos da melhoria de comportamentos de agressividade e ansiedade, quer ao nível da melhoria da sua autoestima (Peluso et al., 2018; Yakimicki et al., 2019).
Reunindo os contributos de diferentes disciplinas sociais nesta temática, apercebemo-nos de que os animais, embora exerçam uma influência positiva ao nível das motivações, afetos, mas também das práticas e significados, desempenham outras funções nas famílias em que se incluem. Embora a literatura apresentada indique que a maioria das vantagens são recolhidas pelos humanos, o cultivar de um entendimento mútuo, bem como da empatia, têm vindo a ser apontados como fatores fundamentais para que efetivas relações de benefícios recíprocos sejam estabelecidas (Eason, 2019).
Conclusão
A renovada atenção às relações entre humanos e não humanos encontra-se na base do surgimento de novas disciplinas multiespécie e no abatimento das fronteiras entre as já existentes para responder aos desafios ambientais do Antropoceno (Kirksey e Helmreich, 2010; Ogden, Hall e Tanita, 2013). Subjacente a estas investigações e ao interesse na relação estabelecida com outras formas de vida (Archambault, 2016; Lorimer, 2018) encontra-se a ideia de que nos tornamos humanos em relação (muitas vezes de forma assimétrica e desigual) e em contacto com o não humano, diluindo as supostas linhas entre natureza e cultura com o intuito de gerar ecologias mútuas (Baynes-Rock, 2013; Kohn, 2018), mas também na procura de equilíbrios entre espécies com fronteiras - aparentemente - cada vez mais ténues. O cuidado entre humanos e não humanos deve considerar as suas mutualidades e continuidades numa relação fluida e bidirecional, precisamente com vista a esbater algumas das consequências ambientais com que já nos debatemos.
Considerou-se neste artigo não só potenciais benefícios para o bem-estar e para a saúde decorrentes da proximidade de humanos com cães e gatos, sem prejuízo da análise do papel de outros animais não humanos, tais como aves (Anderson, 2014). Assim, a atenção demonstrada ao nosso envolvimento com o mundo material e ao processo de nos tornarmos com (Haraway, 2003; 2008) permite que não nos centremos apenas nas relações positivas que celebramos com humanos, mas também com animais não humanos (Archambault, 2016; Baynes-Rock, 2013; Lorimer, 2018). Tal tem repercussões potenciais no domínio da saúde humana, em particular, em situações críticas e de maior fragilidade, como é o caso das doenças crónicas, tanto em adultos como em crianças e jovens. Demonstrámos brevemente como os próprios animais que sofrem de uma doença crónica podem beneficiar potencialmente da sua relação com os humanos, podendo ambos vir a retirar benefícios das relações que estabelecem.
Todavia, apesar da já reconhecida centralidade dos animais na vida dos humanos, poucos estudos de natureza socioantropológica se têm debruçado sobre o lugar dos animais de companhia na vivência da doença crónica dos segundos (Ryan e Ziebland, 2015). Também no contexto português se denota esta lacuna. Ainda que dados relativos a 2015 apontem para uma prevalência da doença crónica junto de 3,9 milhões de portugueses (INSEF, 2015), as estratégias adotadas para combater/minimizar os seus efeitos e, particularmente, o papel que os animais de companhia possam desempenhar encontra-se ainda por explorar. Neste sentido, reforça-se a importância de nos debruçarmos sobre esta realidade através da adoção de estudos interdisciplinares que adotem estratégias metodológicas adaptadas ao contexto de pesquisa e às suas necessidades. Sugere-se em futuros estudos explorar, por exemplo, o papel terapêutico dos animais de companhia tendo em consideração as diferenças entre contextos institucionais (Michalon, 2013; Vicart, 2015) e domésticos (Albert e Anderson, 1997; Leow, 2018; Tannen, 2004; Walsh, 2009). O presente artigo procurou dar resposta a um vazio de pesquisa, abrindo o mote para uma discussão mais vasta sobre a temática. Torna-se assim premente delinear e estabelecer metas de investigação direcionadas para a compreensão de dinâmicas relacionais entre espécies em torno de problemas complexos, como a vivência e a gestão da doença crónica.
Destacou-se em particular o lugar que os animais podem ocupar neste momento crítico da vida dos humanos. Embora o propósito deste artigo se tenha prendido com a identificação de potenciais vantagens retiradas pelos não humanos, não existem estudos que ilustrem de forma clara a suposta mutualidade desta relação. A visão antropocêntrica, ilustrada na escassez de observações sobre este assunto, compromete indubitavelmente a construção de uma visão plural sobre as questões da saúde e da doença dos humanos (Franklin et al., 2007), que contemple as relações estabelecidas entre espécies. A importância do reconhecimento do mutualismo em relações entre humanos e não humanos é central para que exista um efetivo reconhecimento da existência de empatia e compaixão entre espécies (Eason, 2019; Porter, 2019), sendo que tal poderá contribuir efetivamente para um mundo mais justo e sustentável.