Introdução: desigualdades sociais, capitalismo e antropologia
Este dossier foca a construção, a negociação e a vivência das desigualdades sociais no quotidiano em contexto capitalista. Pensando as relações de desigualdade como aquelas que constroem padrões de acesso diferencial aos recursos tidos como críticos num dado contexto, os vários artigos interrogam configurações e trajetórias em que tais relações se concretizam, idiomas mobilizados para lhes dar sentido, para as contestar ou legitimar, e processos - de exploração, constrangimento e coerção, mas também, crucialmente, de consentimento e pertença - inerentes à sua produção e reprodução.
A crise financeira de 2008, seguida pela reafirmação do paradigma da austeridade e pela pandemia de Covid-19, levou a um renovado interesse pelas desigualdades sociais por parte da antropologia e das ciências sociais em geral. Aquelas circunstâncias acentuaram os efeitos de mais de 30 anos de dominância neoliberal, que conduziu à crescente desregulação das relações laborais, ao enfraquecimento do Estado-providência, à intensificada financeirização da vida quotidiana e à (re)emergência de formas de extrativismo que colocam em causa os limites dos ecossistemas e das possibilidades da vida humana a nível planetário - tudo isto em interação estreita com a intensificação das desigualdades.
Pretendemos aqui sublinhar algumas contribuições antropológicas que julgamos especialmente pertinentes para pensar, concetualizar e explicar a inerente complexidade das desigualdades sociais. Tomando Marx como ponto de partida, a secção seguinte enfatiza os importantes contributos, para o estudo das desigualdades sociais, (a) da economia política antropológica desenvolvida sobretudo entre os anos 60 e 80 do século XX, (b) das abordagens fundadas na noção de economia moral, as quais informam também contributos mais recentes sobre a relação entre desigualdades globais e locais, com um foco nos processos (re)distributivos e em propostas alternativas para conjugar os limites do planeta e as esperanças e expectativas de uma vida digna e (c) da crítica feminista antropológica. De seguida, notamos na antropologia contemporânea uma variedade de abordagens (articuladas com os contributos acima) às dinâmicas, processos e experiências das desigualdades - abordagens que consideramos realçarem a importância de um foco teórico e etnográfico sobre as áreas e processos de intersecção, hibridismo, porosidade ou fronteira entre as esferas mercantis e não-mercantis, tal como propomos neste dossier. Após a apresentação dos textos que o integram, tomamos o exemplo do recente contexto pandémico, como revelador e intensificador da desigualdade social, para reforçar a centralidade do tema das desigualdades no entendimento dos mundos contemporâneos e assinalar a especificidade da contribuição que a antropologia pode trazer ao seu estudo.
Marx e a economia política antropológica
Partimos de Marx (1990 [1867]) e da sua observação de que o modo de produção capitalista está ancorado numa contradição endémica, que se associa, num primeiro momento, à desigualdade entre capital e trabalho e, num segundo momento, à tendência orgânica do capital para a acumulação sem limites, mesmo se em detrimento das possibilidades e projetos de reprodução social da grande maioria da população. De facto, aquela acumulação inevitavelmente limita a alocação de recursos a outros processos sociais (cf. Harvey, 2014, p. 98; Fraser, 2016).
Uma das primeiras aproximações relevantes a Marx, em antropologia, foi a economia política antropológica tal como se desenhou, sobretudo em França e nos Estados Unidos, a partir dos anos 1960 e, com especial incidência, nas duas décadas seguintes (Roseberry, 1988). Parte significativa deste trabalho, interligada com as teorias da dependência e do sistema-mundo, focou-se nas dinâmicas de produção e apropriação de mais-valias a uma escala simultaneamente local e global. Ao mesmo tempo, expandindo abordagens marxistas a contextos não-ocidentais, foram trabalhados conceitos como formação social e modo de produção pensando-se, designadamente, a articulação entre modos de produção (e reprodução) capitalista e não capitalista (Rey, 1976; Meillassoux, 1975), visando identificar como a sua coexistência numa mesma formação social contribuía para a produção e reprodução de processos de desenvolvimento desigual multiescalares.
Superando aspetos destas abordagens que limitavam o seu potencial heurístico em antropologia (Roseberry, 1988), Wolf (2001) inspira-se em Marx para desenhar uma antropologia “alicerçada na evidência empírica” concreta e localizada, mas pensando-a por relação aos “processos subjacentes operando no tempo histórico” e no espaço das redes de relações que limitam e modulam a autonomia e a circunscrição de cada contexto particular (Wolf, 2001, pp. 337-338; 1982). Wolf sublinha outras configurações de desigualdade interatuando com aquela, estrutural, identificada por Marx e relativa à posição de cada um face ao capital. Às dinâmicas competitivas de acumulação associam-se relações de desigualdade também entre os detentores de capital, assim como entre os restantes (maioritários); o processo de acumulação inerente ao capitalismo alimenta, assim, uma incessante construção de desigualdade a vários níveis e escalas temporais e espaciais (Wolf, 2001, pp. 345; ver, também, Roseberry, 1984; Mintz, 1986; Nash, 1979).
Economias morais: merecimento, dependência e dignidade
Paralelamente a estes desenvolvimentos, no final dos anos 70 do século XX, a partir do trabalho de James Scott (1976) sobre a ética de subsistência entre o campesinato do sudeste asiático, a antropologia recupera a noção de economia moral desenvolvida pelo historiador E. P. Thompson (1971). No seu ensaio “The moral economy of the English crowd in the eighteenth century”, o autor analisa as motivações dos protestos campesinos contra o aumento dos preços dos cereais e consequente escassez de comida. Observando que as reações da multidão eram atravessadas por uma “força legitimadora assente na convicção que estavam a defender direitos e costumes tradicionais suportados por um amplo consenso comunitário” (Thompson, 1971, p. 78; tradução livre), Thompson argumentou que os protestos dos camponeses estavam fundados numa economia moral, mobilizada para contestar a demolição de um quadro de direitos e obrigações recíprocas no contexto de um modelo paternalista pré-industrial de relações de produção. Desde então, a noção de economia moral foi revisitada por vários autores e com distintos focos de análise (e.g. Edelman, 2005; Fassin, 2009).
A perspetiva da economia moral foi, e permanece particularmente útil, para a análise das desigualdades sociais, por três razões principais: 1) permite entender o modo como determinadas relações sociais e instituições embebidas em valores morais geram, sustentam ou desafiam padrões de desigualdades económicas, politicas e ambientais, 2) permite identificar “a partir de baixo” o modo como as pessoas podem ou não, em determinadas circunstâncias históricas, mobilizar ideias e conceções de justiça e do que é o bem público, as quais podem subverter lógicas dominantes de naturalização das desigualdades e, por último, 3) permitiu à antropologia contrariar a ideia da existência de uma economia amoral, enfatizando, pelo contrário, que todos os sistemas económicos, capitalistas ou não, são sustentados por gramáticas e ideologias morais de justificação e legitimação. Falar de desigualdades é, também, falar de diferenciações, classificações e categorizações, institucionalizadas e sustentadas por economias morais, que as coproduzem e correproduzem a várias escalas.
Esta linha de análise (entre outras) tem a sua marca em dois desenvolvimentos paralelos que, sobretudo a partir da crise financeira de 2008, se podem notar na antropologia, com relevância para o estudo das desigualdades: um renovado interesse pelas dinâmicas (re)distributivas, dentro e fora das modalidades dos Estados-providência, que colocam em evidência importantes reflexões sobre as relações entre dependência, valor e pessoa, e a reemergência de moralidades de merecimento divisivas (Ferguson, 2013; Martin, Wig e Yanagisako, 2021; Tosic e Streinzer (eds.), 2022); e um foco de análise sobre os limites ou os mecanismos facilitadores da articulação, individual e coletiva, de projetos e modelos económicos alternativos ao paradigma do crescimento económico contínuo, englobando as aspirações, desejos e esperanças das pessoas de prosseguir uma vida digna. A noção de dignidade, aliás, reemerge como um idioma central de crítica e antagonismo às formas de desigualdade sistémicas produzidas pelo modelo económico capitalista, informando lutas em torno de distintos regimes de valor e valoração das pessoas, de recursos e de territórios (Narotzky, 2016; Franquesa, 2018).
Da acumulação à reprodução: a crítica feminista e a “desnaturalização” das desigualdades
Torna-se particularmente estimulante considerar articuladamente questões como a busca quotidiana, coletiva e subjetiva, de dignidade e de valor e os processos sistémicos de expansão e acumulação de capital. Nesta perspetiva, Harvey (1982; 2003), cuja influência se faz sentir em muitos trabalhos de antropologia, propôs, a partir de Rosa Luxemburgo (2003 [1913]) - e redefinindo a noção de acumulação primitiva, ou original, trabalhada por Marx -, um novo entendimento das dinâmicas de acumulação. Sublinha, especificamente, a tendência orgânica do capital para a continuada (e não apenas primitiva) expansão (geográfica e outra) apropriando-se de novos contextos e esferas de extração de valor. Em particular, o autor sugere que o neoliberalismo, enquanto projeto económico, ideológico e político, intensificou estratégias de acumulação por despossessão (accumulation by dispossession), incluindo a privatização e mercadorização de bens públicos, a financeirização do sistema económico e o enfraquecimento dos mecanismos de redistribuição do Estado social (Harvey, 2003).
A observação de que a continuidade do capitalismo requer a constante captura de novas esferas de relação e vivência humanas é também fundamental em trabalhos de inspiração feminista, como o de Federici (2004), que aponta, em especial, o papel da acumulação primitiva, com o fortíssimo impacto que teve na reprodução social, na produção de novos eixos de desigualdade. O trabalho de Silvia Federici insere-se numa longa genealogia de crítica feminista, iniciada nos anos 70 do século XX, no seguimento da segunda onda do movimento feminista, com expressão no seio da antropologia, em particular no modo como deslocou o foco de análise da produção para a reprodução. Ao fazê-lo, a crítica antropológica feminista, mobilizando a noção de género, pretendeu “desnaturalizar” um amplo conjunto de desigualdades geradas pela subordinação feminina no contexto doméstico e embebidas nas esferas do parentesco, da classe ou da geração. De particular relevância, foram os trabalhos iniciais de Edholm, Harris e Young (1978). As autoras analisaram o modo contextualmente diferenciado e historicamente determinado como diferentes formas de reprodução (biológica, social, ideológica) produzem distintas formas de articulação entre trabalho produtivo e reprodutivo que medeiam o modo como as relações de género nos agregados domésticos podem desenvolver mecanismos de cooperação ou hierarquia. Fundamentalmente, este texto pioneiro contestou a ideia de um destino feminizado transcultural subordinado e a presunção da relegação feminina para o contexto doméstico ser devida às capacidades “naturais” das mulheres para cuidar dos outros (Young, Wolkowitz e McCullagh, 1981).
Trabalhos muito diversos se seguiram, incluindo o importante “debate sobre o trabalho doméstico” (Molyneux, 1979), que fizeram emergir ferramentas conceptuais e analíticas relevantes para pensar e repensar as noções de pessoa, trabalho e valor. Destacam-se o renovar da crítica ao paradigma universal do homo oeconomicus (Strathern, 1990); a articulação entre a reprodução ao nível dos agregados domésticos e os amplos processos de diferenciação de classe (Yanagisako, 2002); ou o modo como a recente “crise dos cuidados”, fomentada por processos de reestruturação dos Estados-providência, altera padrões de obrigações e responsabilidades morais intergeracionais, e entre cidadãos e o Estado, colocando em causa as estratégias reprodutivas das classes sociais mais empobrecidas (Muehlebach, 2012). A literatura feminista foi particularmente eficaz na sua crítica de categorias ideológicas e morais, mediadas pelos idiomas de género, parentesco e geração, que podem conduzir à replicação de mecanismos de hierarquia, relações de poder e à invisibilidade de múltiplas formas de desigualdade (Yanagisako e Delaney, eds., 1995).
A relevância das fronteiras da desmercadorização
A centralidade das complexas interações entre as esferas produtiva e reprodutiva como pontos de extração de valor indicia, de modo mais geral, a importância crucial que as dinâmicas de fronteira, hibridismo ou incorporação (embeddedness) (Polanyi, 2001 [1944]) entre o mercantil e o não mercantil revestem para a continuidade da acumulação capitalista e a inerente produção de múltiplas relações de desigualdade.1 Isto é corroborado por trabalhos oriundos de áreas disciplinares e perspetivas teóricas diversas. Por exemplo, a história global do trabalho demonstra a mobilização e interligação de diferentes regimes laborais (trabalho pago, não pago, doméstico, familiar, formal, informal, forçado…), todos eles igualmente centrais àquela acumulação (Kocka e van der Linden, eds., 2016). O estudo exaustivo de Piketty (2014), comprovando histórica e empiricamente que o sistema capitalista favorece a acumulação e a concentração de riqueza mais do que favorece o crescimento económico, evidencia2 a importância fundamental, nesses processos de acumulação e desigualdade, de práticas sociais e culturais institucionalizadas (de herança, casamento, parentesco).
Ora, é justamente pelo estudo das dinâmicas de fronteira, hibridismo e incorporação mútua entre esferas mercantis e não mercantis - os múltiplos modos como os processos de acumulação de capital interatuam quotidianamente com as várias dimensões da vida e da reprodução social - que a antropologia tem vindo a contribuir decisivamente para o conhecimento das desigualdades. Isto tem sido feito analisando etnograficamente aqueles fenómenos na sua localização, contexto e concretização, in vivo e com detalhe, mas percebendo, ao mesmo tempo, cada local e cada contexto na sua inserção em processos históricos que os ultrapassam, abrangem e moldam parcialmente. Ao realçar, por meio desta abordagem, que a eficácia das relações de exploração e desigualdade depende, em grande parte, da sua capacidade de parasitar relações, moralidades e sociabilidades embebidas em contextos local e historicamente constituídos (Ong, 1987; Freeman, 2000; Yanagisako, 2002; Narotzky e Smith 2006; Kasmir e Carbonella 2008; Hart, Laville e Cattany, eds., 2010; Han, 2012; Kalb, 2013; Carrier e Kalb, eds., 2015; Kjaerulff, ed., 2015), a antropologia oferece um contributo de enorme importância para uma compreensão mais ampla de como a produção e reprodução das desigualdades é sustentada, negociada ou resistida através, por exemplo, de “estruturas de sentimento” (Williams, 1977) como a família, classe, género ou etnicidade. Esta abordagem tem igualmente incidido sobre a capacidade subordinada de criar, preservar, negociar ou recuperar (Salemink e Rasmussen, 2016) esferas não mercantis, ou percebidas como tal, no âmbito das próprias relações económicas - processos centrais à construção de consentimento (Burawoy, 1979), alicerçado em práticas que permitem aumentar o valor que cada um considera extrair das relações de produção e reprodução social em que se insere.
Atenta aos modos complexos e contraditórios de viver, significar e (re)produzir as desigualdades - e com uma atenção particular à relação entre a desigualdade primordial da sociedade capitalista, que se constrói pela posição de cada um face ao capital, e outras formas de categorização das pessoas (Narotzky e Besnier, 2014) -, a antropologia oferece, assim, instrumentos teóricos e analíticos para uma compreensão e explanação mais amplas da constituição, sustentação, acomodação e negociação, concretas e diárias, da desigualdade social e, nessa medida, da continuidade e constante reinvenção do capitalismo.
Ainda assim, no contexto português (um dos mais desiguais da UE) a prática antropológica não tem sido particularmente assídua no estudo destes processos. Mesmo o acentuar das desigualdades na sequência da crise financeira de 2008 e da concomitante resposta austeritária não teve impacto sensível nos rumos empíricos e teóricos da disciplina em Portugal. Poucos trabalhos foram dirigidos diretamente àquelas circunstâncias (casos de Cunha, 2013; Lima, 2016; AAVV, 2009;3 Matos, 2021) - ao contrário do que aconteceu na sociologia ou na economia política, que abordaram o contexto de crise e austeridade de forma mais direta, notória e diversificada.4
Mas se as desigualdades sociais em contexto pós-crise 2008 raramente têm sido tomadas como foco analítico per se na antropologia em Portugal, acabam, todavia, por se fazer presentes (de modo mais ou menos constitutivo) em muitas análises, pelo seu inescapável entrelaçamento com as dinâmicas de diferenciação, interação e poder que estruturam uma variedade de objetos de estudo. É o caso (tomando, sem pretensão de exaustividade, alguns exemplos mais nítidos) da construção e vivência quotidianas da precariedade laboral (Magalhães e Lopes, 2011; Matos, 2014), do (des)encontro entre migrantes e serviços de saúde (Pussetti, 2010; Challinor, 2012), ou do modo como aqueles em posição subordinada se relacionam com as políticas estatais de provisão de habitação (Cachado, 2013) ou de enquadramento dos grupos e atividades juvenis (Raposo e Aderaldo, 2019).
Neste volume
Com foco nos contextos português e brasileiro, os artigos seguintes privilegiam o método etnográfico como ferramenta de investigação empírica e analítica. Fundado na observação participante, situada e ao longo do tempo, das práticas, investimentos e relações através das quais os agentes sociais vivenciam e negoceiam as desigualdades, o método etnográfico permite aos autores capturar a expressão quotidiana da dialética entre mercadorização e desmercadorização. Permite, ainda, correlacionar a praxis vivida das desigualdades sociais com várias escalas de governação (e. g. regimes de acumulação dominantes), regulação (e. g. enquadramentos institucionais e estatais) e temporalidade (e. g. histórias nacionais e individuais; trajetórias de desenvolvimento local). Deste modo, o método etnográfico é uma ferramenta de investigação analítica particularmente apropriada para teorizar os processos coconstitutivos, nas suas dimensões locais e estruturais, que produzem e reproduzem desigualdades sociais.
Neste dossier, são elaborados e problematizados três eixos fundamentais e estreitamente interrelacionados da especificidade da abordagem antropológica ao estudo das desigualdades. Nomeadamente: a expressão embedded, contingente e localizada dos processos, práticas e relações que são condição primeira para a operacionalização, gestão e manutenção de eixos de desigualdade; o modo como a produção e reprodução de dinâmicas de classificação, hierarquização e diferenciação é marcada por uma tensão, ou dialética estruturante, entre esferas porosas, como seja entre embedded/disembedded, alienável/inalienável, mercantil/não mercantil, e como os agentes sociais atuam perante esta tensão; e, finalmente, o modo como as desigualdades são vividas, negociadas ou contestadas através de regimes de valor e processos de valoração que excedem amplamente a valorização capitalista stricto sensu.
“Bem-estar social de mercado: a política dos seguros privados e o governo das desigualdades no Brasil”, de Deborah Fromm, problematiza um processo de clara apropriação por despossessão - neste caso, através da financeirização crescente das economias e dos quotidianos (Hann e Kalb, eds., 2020): o forte recuo estatal na provisão de proteção social no Brasil, com a correspondente expansão do mercado, sob a forma de seguros privados. A análise da autora revela como o governo neoliberal das desigualdades sociais no Brasil contemporâneo é fortemente ancorado num processo de expansão da mercadorização à custa da perda de direitos sociais. Elaborado num registo studying up, a partir de trabalho de terreno (2017-2019) no setor segurador, o artigo é também particularmente ilustrativo a respeito dos modos de relacionamento entre negócios privados e Estado, inerentes às múltiplas facetas da financeirização. Importantes credoras de dívida pública, as seguradoras brasileiras capturam e constroem diversificados processos de influência sobre a decisão política, incluindo a construção e difusão de uma retórica eminentemente política (e moral) em torno da desigualdade, da proteção social, e do papel e das (in)capacidades de atuação do próprio Estado.
Justamente, a provisão pública, extramercado, de um recurso essencial (a habitação) informa o contexto do artigo seguinte, “A mobilidade social nas classes trabalhadores: vidas em fuga da pobreza”, de José Cavaleiro Rodrigues. Este artigo foca os investimentos e processos de superação da condição de pobreza entre famílias residentes em dois bairros de realojamento da área metropolitana de Lisboa, Portugal. O autor nota a mão visível do Estado naqueles processos de mobilidade social, pela provisão não apenas de habitação, mas também de outros recursos (desde a proteção social à educação, ou à regulação das relações laborais) - notando também, por outro lado, como o potencial igualitário desta ação estatal é poderosamente subvertido pela agência persistente e estratégica (Inwood, 2015) da discriminação racial no contexto português. Analisando os idiomas morais e relacionais convocados pelos seus interlocutores para ler as suas e outras trajetórias de superação da pobreza, encontra representações abrangentes e analíticas sobre estruturas de desigualdade e hierarquia, que se articulam, por vezes, com ideias de (des)merecimento e, de modo generalizado, com um acentuado realismo sobre os limites da mobilidade social.
Também Mariana Rei, em “Emigrar para ‘melhorar a vida’ no Vale do Ave (anos 1960-1970): economia, valor e tempo”, parte das avaliações e valorizações dos seus interlocutores a respeito dos respetivos percursos na estrutura das desigualdades. Rei foca o modo como os projetos migratórios dos operários do Norte de Portugal para a França durante os anos 60 e 70 do século XX são marcados pela tensão entre o imperativo de “ganhar a vida” no quotidiano e as aspirações a uma “vida boa” projetada no futuro. Esta tensão serve à autora de mote para refletir sobre as relações constitutivas entre economia, valor e tempo, com um foco nas dimensões embedded no tempo e no espaço das diferentes escalas de valor que orientam e informam os projetos e investimentos dos migrantes. Estes projetos e investimentos - entre os quais a casa e, no plano instrumental, o trabalho incessante e esforçado, assumem um lugar central - são informados pelo imperativo de assegurar um salário, mas, também, pela vontade e expectativa de superar, para si próprio e para as próximas gerações, um passado de necessidade, desigualdade e miséria vivido no Portugal da ditadura.
João Gomes lida também com o trabalho e os modos contraditórios da sua valorização, em “A constituição e as dinâmicas da classe trabalhadora nos casinos: o clientelismo e as gorjetas”. Num contexto marcado pela captura sistemática de valores não mercantis no processo de acumulação, o autor examina a experiência de classe dos trabalhadores dos casinos em Portugal, em particular as redes clientelistas que moldam as práticas de recrutamento e a prática, a instrumentalização e o simbolismo que governam a distribuição assimétrica de gorjetas. Gomes demonstra como a obtenção de posições profissionais privilegiadas no contexto dos casinos depende em grande medida de redes pessoais, de parentesco e amizade, assim capturadas para a construção de lealdade e consentimento em contexto laboral. Ao mesmo tempo, as gorjetas, além de reduzirem a massa salarial, permitem a manutenção de um regime de remuneração desigual que hierarquiza o valor de diferentes categorias profissionais, ao parasitar esferas pessoais de aspirações de status e expectativas de melhoria de condições de vida e reprodutivas dos trabalhadores e das suas famílias.
O dossier encerra com um comentário crítico de Manuel Carlos Silva, autor com uma extensa obra no âmbito das desigualdades, as suas configurações, trajetos e impactos no contexto português numa perspetiva comparativa (e. g. Silva, 1998, 2009; 2016).
Epílogo: a violência (desigual) da pandemia
As configurações, idiomas e processos da desigualdade marcam, com evidência crescente, os mundos interrogados pela antropologia. Nos últimos dois anos, a pandemia de Covid-19 e, crucialmente, os diferentes modos como os governos e instituições a ela reagiram, desnudaram e intensificaram padrões e mecanismos fundamentais de desigualdade - a qual, ao mesmo tempo, contribuiu para a dimensão e duração da crise pandémica (Ennis-McMilan e Hedges, 2020; Fassin e Fourcade (eds.), 2021). Observaram-se, entre classes e contextos sociais, níveis extraordinariamente diversos de proteção face ao contágio, de resistência à doença e de acesso aos cuidados de saúde. Para muitos, a pandemia foi (e é ainda, em muitos locais) apenas mais uma circunstância entre tantas que quotidianamente fazem perigar a sua vida e a sua dignidade (Fabre Uribe, 2020; Peutz, 2021; Neiburg e Joseph, 2021). Na ausência ou insuficiência de proteção social, ou de outros recursos compensatórios, muitas pessoas não puderam interromper as suas práticas habituais de trabalho e interação, mesmo se potenciadoras de contágio - tendo, por outro lado, as restrições à circulação e ao contacto impostas pelos estados sido, em muitos contextos, mais incompatíveis com a sobrevivência do que a própria pandemia (Guérin et al., 2021). A impossibilidade de cessar rotinas potencialmente promotoras da exposição à doença, como o trabalho presencial, foi ainda determinada, muitas vezes, pelo carácter (subitamente reconhecido como) “essencial” desse trabalho.
O modo irregular e transitório como a ideia de “trabalho essencial” (não) conduziu à ideia, que se lhe afiguraria inseparável, de “trabalhadores essenciais”, evidenciou também relevantes eixos e processos estruturais e articulados de desigualdade. Por exemplo, no caso dos trabalhadores agrícolas migrantes (e, muitas vezes, racializados), a configuração da relação laboral - que os institui como descartáveis - prevaleceu sobre o valor social do seu trabalho, desqualificando-os enquanto sujeitos de direitos também no plano da saúde: “dependentes de empregos precários, foram considerados simultaneamente essenciais e desprovidos de valor, o que exemplifica um traço central das práticas de acumulação capitalista” (Narotzky, 2021, p. 248, itálicos no original; cf. também Genova, 2020).
Tais práticas de acumulação tiveram outro exemplo eloquente na privatização do conhecimento necessário à produção de vacinas contra SARS-COV2, que originou uma desigualdade extrema (entre quem vive e quem morre) no acesso a estes produtos à escala global - desigualdade extrema indissociável de uma não menos extrema acumulação de capital por parte do negócio farmacêutico.
Mais do que a desigualdade, o sobressalto pandémico iluminou a violência que ela constitui, incluindo as dinâmicas de despossessão associadas à acumulação de capital e concentração de riqueza. A desvalorização de quem assegura trabalho “essencial”, ou a privatização de conhecimento vital, evidenciam claramente a ligação constitutiva entre a desigualdade no acesso a recursos críticos e a captura e mercadorização capitalistas do valor do trabalho e da utilidade social dos bens, serviços e conhecimento que produz, bem como dos imperativos da vida humana, biológica e social, e dos seus significados.
Imunes ao sobressalto pandémico, as lógicas estruturais e quotidianas de produção e reprodução de desigualdade coconfiguraram a (violência da) pandemia e continuam salientes no “novo normal” (Kanbur, 2021). Para compreender esta continuidade, cabe à antropologia, como tentámos fazer no presente dossier, interrogar as desigualdades sociais e os processos que lhes subjazem - perscrutando-os de perto, na sua expressão vivida e refletida, diária e concreta (e, ao mesmo tempo, instituída) e, crucialmente, na articulação deste plano de análise com outras escalas de ação, regulação e significado.