Introdução
Na envolvente da antiga Companhia de Fiação e Tecidos de Guimarães - uma antiga fábrica têxtil no lugar de Campelos (freguesia de Ponte, Guimarães), na margem do rio Ave -, o trabalho e as migrações no setor têxtil marcam, desde a sua fundação em 1890, as trajetórias de vida e família no lugar.1 Para estas famílias operárias2 o trabalho na fábrica possibilitou, desde a instalação da Companhia no lugar, o acesso a dinheiro mediante um salário - algo inacessível para quem dependia do trabalho na agricultura. Apesar disso, a vida era difícil e os salários escassos, pelo que, na altura do encerramento da fábrica em 1968, e ainda antes, a emigração intensifica-se, surgindo extensivamente nos seus relatos como forma de “melhorar a vida”. Este movimento acompanha o fluxo migratório dos anos 1960-1970 no país (particularmente intensivo no Norte) em direção ao centro europeu, sobretudo França. Na envolvente da Companhia, Roubaix e Tourcoing, uma antiga zona industrial têxtil no Norte de França, foi um destino recorrente durante este período, enquadrando-se como uma emigração especializada.3
Neste artigo, procuro perceber o significado da expressão “melhorar a vida” nesta zona industrializada do Vale do Ave, à luz das condições de vida e mudanças dos anos 1960-1970 em Portugal e no tempo longo. Considero, particularmente, as expectativas de melhoria das condições de vida que esta expressão condensa, traduzindo ideias de futuro; face a um passado associado a uma vida que “não corria para a frente” e na qual se “trabalhou sempre” para “ir ganhando a vida”, “levar a vida”, “fazer a vida”. Argumenta-se que o “trabalho” implicado nesta expressão reflete uma tensão entre a necessidade de “ganhar a vida” no quotidiano, mediante o salário, e as aspirações a uma “vida boa”, no futuro, abarcando questões de valor e conceções em torno do tempo.
Mediante uma análise de memórias de (antigas e antigos) operários-migrantes na envolvente da Companhia e em Roubaix-Tourcoing, procuro analisar as “estruturas de sentimento” (Williams, 1977) ou “visões do mundo” (Pina Cabral, 1989a) de uma zona industrializada num meio longamente marcado pelo mundo rural. Ou seja, como é que as condições de vida e as transformações dos anos 1960-1970 são significadas pelos próprios sujeitos no contexto em estudo? Atenta-se à linguagem não tanto como discurso ou descrição, mas como constitutiva do próprio objeto de estudo e da problemática em análise, questão particularmente premente em trabalhos sobre memória e no estudo das classes subalternas (Godinho, 1998; J. W. Scott, 2018).
Não podendo ser exaustiva, tomo aqui como dispositivos de análise dois aspetos decorrentes das entrevistas a propósito da decisão de emigrar: a pobreza associada à escassez de dinheiro (experiência) e a aspiração a uma vida melhor, associada à vontade de ter casa própria (expectativa). Outras questões, embora pertinentes no contexto em análise, não podem ser aqui abordadas ou são apenas afloradas na relação com os objetivos do artigo; isto é, a articulação das dimensões de valor e tempo nos relatos de (antigas e antigos) operários-migrantes sobre as práticas económicas ou formas de “ganhar a vida”. Algumas dessas questões, aqui não abordadas, enquadram-se numa pesquisa mais ampla (Rei, 2022), enquanto outras foram aprofundadas numa pesquisa anterior sobre outra fábrica do Vale do Ave (Rei, 2016), ou por diferentes autores em diferentes zonas do Vale do Ave, alguns dos quais referenciados ao longo do texto.
Na definição desta abordagem, são centrais trabalhos que, sobretudo a partir da antropologia, olham para as práticas de “ganhar a vida” mediante uma conceção alargada da economia, designadamente em contextos de crise e acentuadas desigualdades e mudanças sociais, mote da apresentação que deu origem a este artigo (Rei, 2019b). Destacam-se os trabalhos em torno da economia moral (Thompson, 2008 [1971]; 2005; J. C. Scott, 1976; Fassin, 2009); de uma noção alargada de “trabalho” (Narotzky, 2018; Harvey e Krohn‐Hansen, 2018); da tensão entre as práticas de “ganhar a vida” e as conceções de “vida boa”, desde Redfield (1959 [1953]) até problematizações mais recentes ( Narotzky e Besnier, 2014; P. A. Matos, 2019); das noções de “bem-estar” e “boa vida”, ou por uma “antropologia do bom” (Fischer, 2014; Robbins, 2013; Ortner, 2016); e da articulação entre experiência e expectativa (Koselleck, 2006), a esperança e o futuro, designadamente em trabalhos sobre as migrações, a indústria têxtil e confeção e em contextos de crise (Contreras Román, 2019; Godinho, 2020; 2017; Pine, 2014; Louçã, 2021). Estes autores vinculam duas ideias centrais na análise que aqui se apresenta: a importância de considerar as práticas de “ganhar a vida” mediante um entendimento alargado da noção de economia, abarcando questões de valor e a dimensão do político, além do ganho estrito, e o “trabalho” implicado na busca por uma “vida digna”; e a ideia de que a economia tem a ver com a projeção para o futuro, na esperança de uma “vida melhor”.
Este artigo insere-se numa pesquisa de doutoramento em antropologia em curso (ver nota 1) iniciada em junho de 2017, onde me debruço sobre as transformações da indústria e das migrações na envolvente da antiga Companhia, e os modos de “fazer” e “melhorar a vida” dos seus habitantes, num mundo social em transformação durante os anos 1960-1970 em Portugal. Centro-me, particularmente, na vaga de emigração desse período em direção a Roubaix e Tourcoing, uma análise sustentada, contudo, no tempo longo, desde a instalação da fábrica no lugar em finais do século XIX até ao presente da rememoração.
Na secção seguinte, apresento a abordagem metodológica da pesquisa que informa este artigo, debruçando-me, no terceiro ponto, sobre a contextualização das condições de vida e mudanças dos anos 1960-1970 em Portugal e no Vale do Ave, a partir de alguns dados históricos e estatísticos. Seguem-se duas partes centradas no caso em estudo, onde analiso a forma como as mudanças provocadas pela indústria e a emigração no lugar são percecionadas por estas e estes (antigos) operários-migrantes, centrando-me em dois aspetos: a monetarização da vida e a casa do emigrante. Concluo com algumas notas finais, que sintetizam os principais argumentos apresentados.
Metodologia e âmbito da pesquisa
A pesquisa que informa este artigo configura-se como uma “etnografia retrospetiva” (Almeida, 2007), na medida em que se debruça sobre a memória de um tempo passado continuamente reconfigurado a partir do presente, na esteira dos trabalhos pioneiros de Halbwachs (1994 [1925]; 1997 [1950]). Constitui-se, também, como uma “etnografia multisituada” (Marcus, 1995), ao decorrer entre contextos geográficos diferentes, situados em dois estados-nação interligados por processos de mobilidade; mas, sobretudo, porque, ao fazê-lo, procura abarcar diferentes dimensões e escalas de análise do real, construindo etnograficamente, conforme refere George Marcus, tanto aspetos da lifeworld dos sujeitos como do próprio sistema (1995, p. 96).
O terreno em França surge na continuidade do português, considerado como eixo central da pesquisa, o que se reflete na delimitação do universo de estudo e na abordagem metodológica, que segue uma “estratégia múltipla” (Burgess, 2002). A pesquisa assenta, mais especificamente, na articulação entre a estadia prolongada no terreno com a história oral e o arquivo, complementados com o levantamento de história local e de imprensa, e de alguns dados estatísticos. O trabalho de campo articula o método da história de vida com a recolha de entrevistas semiestruturadas (“entrevistas como conversas”, Burgess 2002), inquéritos de levantamento de vizinhos e em instituições locais, observação e observação participante, e conversas informais. O trabalho de campo foi iniciado em julho de 2017, e decorreu de forma consecutiva durante 14 meses entre setembro de 2017 e outubro de 2018, numa primeira fase na freguesia de Ponte e em freguesias limítrofes (Vila Nova de Sande e Taipas), e depois em Roubaix e Tourcoing. Durante 2019, realizei também estadias mais pontuais em França. A delimitação da pesquisa foi informada por uma visita exploratória a Roubaix em 2016, na fase de conceção do projeto.
O universo de estudo é composto por três grupos principais: i) (antigas e antigos) operários e migrantes da envolvente da Companhia e em Roubaix e Tourcoing, interlocutores principais do estudo; ii) demais moradores da envolvente da fábrica, incluindo outros grupos socioprofissionais dentro da indústria têxtil (áreas não produtivas e cargos intermédios e superiores)4 e trabalhadores de outros setores de atividade e/ou outras vagas migratórias; iii) e, finalmente, representantes de instituições locais (culturais, desportivas, religiosas, políticas, sindicais, etc.) e regionais ou nacionais (de âmbito empresarial ou representação consular) e famílias de industriais nos contextos português e francês. Trata-se, maioritariamente, de pessoas reformadas, com 56 a 92 anos de idade (média de 68 anos), que trabalharam no setor secundário5 (cerca de 4/5), frequentaram a terceira ou quarta classe6 (cerca de 2/3), sendo aproximadamente 2/3 do sexo feminino e residentes no lugar de Campelos (freguesia de Ponte), num total de 82 pessoas consideradas na pesquisa, nos diferentes métodos de abordagem.7
Note-se que a divisão das e dos interlocutores por categorias é apenas indicativa, dado que frequentemente estas se sobrepõem. Embora a pesquisa se centre em (antigas e antigos) operários têxteis e na emigração dos anos 1960-1970 para Roubaix e Tourcoing, outros destinos migratórios surgem no terreno em estudo, em diferentes momentos e escalas, bem como noutros setores económicos. Refiro-me, por exemplo, a migrações internas (na altura da instalação da fábrica, no final do século XIX), emigração internacional, para outros países europeus e outros destinos em França, durante os anos 1960-1970 e anteriormente (ver, por exemplo, Mota, 2002; 2007; Charbit, Hily e Poinard, 1997), para as antigas colónias ou para o Brasil (ver, por exemplo, Sarmento, 1997). Ou, no que concerne ao trabalho, à cutelaria, nas freguesias vizinhas de Vila Nova de Sande e Taipas (ver, por exemplo, Rocha-Trindade, 1981; Charbit, Hily, e Poinard, 1997), aos curtumes, na zona de Guimarães, ou à agricultura, particularmente a partir de outros lugares mais rurais na freguesia de Ponte, entre outros. Por vezes, estes diferentes trajetos cruzam-se na mesma história de vida ou de família, e vários interlocutores ligados a instituições locais foram também operários, pelo que em cada citação esta referência é apenas indicativa.
Os anos 1960-1970: “declínio de um tempo longo” em Portugal e no Vale do Ave
Até 1960 Portugal era ainda um país marcadamente rural, com uma sociedade maioritariamente agrícola e fortemente estratificada (Rosas, 1994, pp. 24, 41 e segs.). Encontramos, então, uma sociedade fortemente polarizada entre uma pequena elite ligada ao patronato rural latifundista e à burguesia industrial e comercial, e uma grande multidão de camponeses pobres com terra e jornaleiros sem terra, além do operariado industrial e dos funcionários e empregados do comércio (Rosas, 1994, parte 1). A industrialização, embora lenta, tem algum peso, sendo o setor têxtil predominante em termos de peso de mão-de-obra (Rosas 1994, pp. 63 e segs.). No Vale do Ave, sub-região historicamente marcada pelo desenvolvimento desta indústria, o setor secundário ocupava, em 1950, 51,9% do total da sua população ativa (com o concelho de Guimarães a apresentar a percentagem mais elevada, com 61,6%), contra 29,9% a nível nacional, contendo o subsetor do têxtil e vestuário 67% dos ativos da indústria transformadora ainda em 2001, contra 26,3% da média nacional (Silva, 2012, pp. 107, 109). A quase monoespecialização têxtil desta sub-região torna-a, contudo, particularmente vulnerável em situação de crise - o que se traduz em elevadas taxas de desemprego em determinados períodos, embora esta seja tendencialmente mais baixa do que a do país (V. B. Pereira et al., 2012, p. 39). Na compreensão desta vulnerabilidade, importa considerar que era comum haver famílias inteiras a trabalhar na mesma fábrica, ao longo de gerações,8 bem como a centralidade histórica do trabalho infantil e feminino no setor.
O mundo rural e a vida camponesa dominavam o discurso oficial do Estado Novo, associados a um bucolismo idílico, mas as condições de vida reais da população eram bem diferentes, marcadas pela miséria, pela subalimentação, habitação insalubre, analfabetismo e baixos rendimentos (Rosas, 1994, pp. 53 e segs.). Para quem trabalhava na indústria, as condições de vida eram também difíceis, com salários abaixo do nível mínimo de subsistência e duras condições de trabalho (Rosas, 1994, p. 96). Esta questão é particularmente premente numa zona como o Vale do Ave, onde a especialização no setor têxtil se traduziu longamente no recurso intensivo a mão-de-obra pouco qualificada e com baixos salários. Tal realidade reflete-se em baixas taxas de alfabetização (cerca de 90% da população empregada desta sub-região tem escolaridade igual ou inferior a 6 anos ainda em 1981, contra cerca de 78% no país) e num valor de remuneração médio inferior ao nacional nesta sub-região (V. B. Pereira et al., 2012, pp. 39-40, 49).
Os parcos salários e condições de trabalho e de vida na indústria têxtil algodoeira, designadamente no Norte do país - ou, de uma forma geral, a “questão social” no salazarismo -, resultam, conforme desenvolve Fátima Patriarca, de um “complexo jogo de forças” marcado pelos interesses conflituantes entre patrões e o Estado, uns procurando o lucro à custa de baixos salários, e o segundo nas suas contradições aparentes, onde repressão e medidas sociais se constituem como duas faces de uma mesma política de manutenção da “ordem social” (1987; 1995, pp. 631 e segs.). A gestão das tensões entre as classes dominantes é um dos aspetos centrais na compreensão da durabilidade do Estado Novo à frente do país, mediante o que Fernando Rosas designou de um “triplo equilíbrio económico-social” (1994, p. 245). Assim, conforme demonstram Alice Ingerson (1984), Elizabeth Leeds (1984) ou Victor Pereira (2014), o Estado Novo posicionou-se de forma ambivalente em relação à industrialização e à emigração, diferentemente das e dos (antigos) operários-migrantes, designadamente do Vale do Ave, que de uma forma geral veem a indústria (e a emigração) como positiva, ao favorecerem o acesso ao salário e uma mobilidade ascendente (Ingerson, 1984, p. 67).
A partir dos anos 1960 até ao 25 de Abril de 1974,9 assistimos a um grande crescimento económico em Portugal, ainda que limitado, por não corresponder a uma modernização da economia e da sociedade (Reis, 2019, p. 94). Além do crescimento industrial e da emigração (designadamente as remessas de dinheiro dos emigrantes), a abertura económica à Europa associada à adesão de Portugal à Associação Europeia de Comércio Livre (em inglês, EFTA), em 1960, e o desenvolvimento do turismo, são alguns dos fatores que sustentam estas mudanças (ver Reis, 2019; Lopes, 1996). Estas enquadram-se no crescimento económico generalizado que se registou na Europa Ocidental no segundo pós-Guerra, durante os designados “trinta gloriosos” (1945-1975). De uma forma geral, esta conjuntura foi favorável ao crescimento do setor têxtil (um dos principais exportadores, em particular no Vale do Ave), sendo necessário, contudo, considerar a diversidade da realidade intrarregional, designadamente do tecido empresarial, que configurou diferentes respostas a esta conjuntura (Lopes Cordeiro, 2020). É neste quadro que se poderá entender o encerramento da Companhia em 1968, fruto, entre outros fatores, de problemas estruturais no setor, agravados neste caso pela dispersão do seu capital por um elevado número de pequenos acionistas (Lopes Cordeiro, 2001, pp. 85 e segs.).
No plano cultural, adotam-se novos padrões de consumo, hábitos e mentalidades, nos quais influíram também o recuo (ainda que lento) do analfabetismo e a massificação dos meios de comunicação a partir de finais dos anos 1950 (Rosas, 1994, p. 498). De uma forma geral, os comportamentos e as expectativas mudam, contudo, mais rapidamente do que a sociedade, permanecendo no país as difíceis condições de vida e profundas desigualdades (Rosas 1994, pp. 498-499), situação que se altera apenas com o 25 de Abril de 1974 (ver também Reis, 2019). Por outro lado, a vaga migratória dos anos 1960-1970 coincide, não ocasionalmente, com um outro acontecimento central na vida do país neste período - a guerra colonial, e a constituição dos movimentos de libertação das colónias. Além das motivações económicas e políticas, também a guerra incita a emigrar clandestinamente durante este período, constituindo-se esta, como sublinha Villaverde Cabral, um “pano de fundo político crucial do país” nesta “longa década”, desde 1961, a par da intensificação da oposição à ditadura (2020, pp. 39, 41, 43).
Entre 1960 e 1974 cerca de 1 milhão e 400 mil pessoas terão emigrado em direção à Europa ocidental, dos quais cerca de 1 milhão para França, num total de cerca de 8 milhões e 900 mil habitantes recenseados em Portugal em 1960 (V. Pereira, 2007, p. 219). De uma forma geral, as zonas industrializadas do país foram menos afetadas por este fluxo migratório, mas ainda assim apresentam valores significativos (V. B. Pereira et al., 2012, p. 41). No Vale do Ave, as taxas de crescimento migratório apresentam mesmo, entre 1960 e 1970, valores superiores à média nacional (respetivamente -17,89% e -14,80%), tendo Guimarães a taxa mais elevada entre os concelhos industrializados da sub-região (-22,82%) (V. B. Pereira et al., 2012, pp. 41-42, 66-67).
As mudanças dos anos 1960-1970 marcam, então, uma nova temporalidade no país, caracterizada pela desarticulação da sociedade camponesa. Essa temporalidade resulta, segundo Koselleck, do desfasamento progressivo entre experiência e expectativa (isto é, entre “passado presente” e “futuro presente”) que caracteriza a modernidade, apreendido pela noção de progresso (2006, pp. 309-10, 314, 320). Das mudanças deste período decorre uma nova forma de viver o tempo, que no mundo camponês era indissociável dos ciclos da natureza e da experiência vivida, e agora se projeta para um “futuro novo”, acelerado e incerto (Koselleck 2006, pp. 36, 314-316, 319, 321). Falamos do “declínio de um tempo longo”, expressão emblematizada por Fernando Oliveira Baptista em O Voo do Arado, uma perda que os próprios não lamentam, fugindo massivamente do país, numa rejeição clara das “condições de miséria em que viviam” e da “função moral e cultural de suporte da Pátria” das sociedades camponesas e do “elogio da vida rural” veiculados pelo Estado Novo; em suma, “os que fugiram sabem, embora muitas vezes tragicamente, que deixaram atrás um mundo sem esperança” (1996, pp. 44, 73). É neste quadro que se poderá entender a recorrência da expressão “melhorar a vida” e de ideias em torno do tempo futuro na motivação para emigrar destas antigas e antigos operários. Isto é, as expectativas em relação a uma vida melhor constroem-se face a um passado onde o futuro se encontrava bloqueado e a vida “não corria para a frente”, assunto que desenvolverei nos dois pontos seguintes.
Resumindo, até aos anos 1960 Portugal era um país profundamente rural, com fortes assimetrias sociais. A indústria tinha algum peso em determinadas regiões, mas as condições de trabalho do setor refletem-se em duras condições de vida. Neste contexto, a emigração, o acentuar da industrialização e da urbanização, a abertura à Europa e o aumento do turismo, entre outros, introduzem nos anos 1960-1970 profundas mudanças. Embora a emigração seja particularmente forte entre a população rural do Norte e do interior do país, ela surge também em zonas industriais como o Vale do Ave, onde a realidade do tecido industrial apresenta situações muito diversas, decorrentes das particularidades do processo de industrialização da sub-região e do país. Contrariamente à ambiguidade veiculada pelo Estado Novo em relação à sua política industrial e migratória, marcada por uma perspetiva conservadora e visando a manutenção do regime, as operárias e operários-migrantes veem, de uma forma geral, estas transformações como positivas, ao favorecerem a melhoria social. As transformações deste período traduzem-se na desarticulação desse “tempo longo” do mundo rural e numa nova forma de viver o tempo, perante um desfasamento progressivo entre experiência e expectativa, entre “passado presente” e “futuro presente”, nos termos de Koselleck (2006). É sobre estas duas temporalidades, e a forma como elas são vividas e percecionadas no contexto em estudo, que me debruçarei nos dois pontos seguintes.
Passado presente: “era uma zona de muito trabalho, mas de muito pouquinho dinheiro”
A instalação da Companhia no lugar de Campelos em 1890 provocou profundas transformações a nível local, desde logo ao nível demográfico e urbanístico, levando a que uma população nova em busca de trabalho, oriunda de Fafe e de outros concelhos vizinhos (Felgueiras, Celorico de Basto, Mondim de Basto, etc.), se instalasse na sua envolvente. Até então o lugar era “deserto”, conforme refere, desde logo, um antigo pároco da freguesia (Torres, 1988, p. 120), uma ideia bastante referida pelos seus moradores ao longo do trabalho de campo.10 De Fafe veio ainda o engenheiro inglês responsável pela instalação técnica da Companhia, James Lickfold, que anteriormente tinha instalado também a Fábrica de Fiação de Algodão do Bugio, naquele concelho. Para acomodar esta nova mão-de-obra, constroem-se bairros operários, a escola da fábrica e outras estruturas. O surgimento de novas formas de subsistência e ritmos de vida, distantes dos ciclos da natureza no trabalho agrícola, levam a alterações nos comportamentos familiares (ver Salgado, 1998). Cresce também a dinâmica socioeconómica, surgindo várias coletividades e “vendas”, que se constituem como importantes espaços de sociabilidade, e pequenas indústrias domésticas. Este movimento favoreceu a diferenciação entre o lugar e o centro da freguesia, caracterizados, respetivamente, a nível local como meios fabril e rural (distando cerca de 2 km).
De uma forma geral, estas mudanças são vistas pelas moradoras e moradores do lugar (maioritariamente operárias e operários)11 como positivas, sendo referido recorrentemente que Campelos era mais conhecido do que a freguesia, o que denota a existência de clivagens a nível local. Estas traduzem-se, ainda hoje, numa forte rivalidade e bairrismo entre o lugar e a freguesia, e na duplicação dos seus centros social, cultural, político, desportivo ou religioso; bem como na indefinição dos limites da freguesia com Vila Nova de Sande - uma freguesia vizinha situada na proximidade da fábrica, onde muitas operárias e operários se instalaram.
Embora o trabalho fabril seja visto positivamente pelas antigas e antigos operários,12 sendo preferido ao trabalho agrícola, as suas condições de vida eram difíceis, dependendo dos parcos salários para o acesso a bens essenciais: “Faltava quase tudo. […] Era uma zona de muito trabalho, mas de muito pouquinho dinheiro” (emigrante em Roubaix e antigo operário),13 “Não ganhávamos para comer, tivemos que ir para França” (antigo operário, antigo emigrante em Tourcoing).14 A alimentação e vestuário eram comprados às prestações na venda, à medida que recebiam o salário à semana, ou aos lavradores,15 à porta da fábrica. A habitação era arrendada, e no antigo bairro operário as casas, com chão de “terreiro”, eram por vezes partilhadas entre diferentes agregados familiares. A educação corresponde ao ensino primário: “Depois daí para cima era preciso ter dinheiro. […] Não chegava para o tacho, que fará…” (antigo operário, antigo emigrante em Tourcoing)16. Para as restantes necessidades pouco sobrava, como os transportes, higiene, saúde, ou perante a morte, “Quando ele morreu, nem tínhamos um lençol para ele levar no caixãozinho” (antiga operária).17
As carências entre as famílias operárias agravam-se pelo facto de estas serem, à época, muito numerosas, com muitos filhos: “o Vale do Ave era industrial como tudo, mas era muito pobre. É muito pobre porque é muito ‘populacionado’ ” (emigrante em Roubaix e antigo operário),18 “as famílias eram muito grandes, os salários eram pequenos” (emigrante em Roubaix e antiga operária).19 Arranjar emprego era, por isso, difícil, devido à mão-de-obra excedente, e várias pessoas trabalhavam noutras fábricas do concelho, para onde se deslocavam a pé. Para as mulheres as dificuldades seriam acrescidas, tal como verifica também Ingerson no Vale do Ave, e tendiam a ser despedidas mais frequentemente (1997, pp. 163 e segs.). Os homens tinham mais possibilidades de ascender profissionalmente, podendo trabalhar, por exemplo, como ajudantes de afinador, afinadores ou encarregados, o que podia adiar ou mesmo evitar a emigração. Até à realização do serviço militar, tal podia, contudo, não corresponder a melhores salários, dado que a entidade patronal era obrigada a readmitir o operário no mesmo lugar, depois da prestação do serviço militar (cf. Patriarca, 1994, p. 811), “Fui tecelão, e depois, quando vim da tropa, Moçambique, é que passei para ajudante de afinador” (antigo operário, antigo emigrante na Alemanha).20 Quem não tinha trabalho, vivia pior: “À minha beira éramos nós que vivíamos mal. Que de resto o povo por ali vivia melhor que nós, porque toda a gente trabalhava na fábrica”, relata uma interlocutora, adiantando ainda, “a gente nem dinheiro para caldo tinha” (antiga operária, antiga emigrante em Tourcoing).21
As mudanças provocadas pela fábrica não afetaram todos de forma igual, conforme sublinham Alice Ingerson (1981, p. 877) e Virgílio Borges Pereira (1999, p. 79) nos seus estudos sobre a sub-região. No lugar quem vivia melhor eram as famílias de encarregados, empregados superiores e mestres da fábrica (ver nota 4) e de comerciantes, entre outras figuras de relevo a nível local, como a professora primária. Além de possuírem habitação própria ou da fábrica, podiam ter outras, alugadas a operários: “Quem tinha casa própria eram já as famílias de classe média, já alta. E depois era de passagem, de pais para filhos. E aqui havia 3 ou 4 famílias que os bairros eram deles, não é… E então, poucos tinham casa própria” (antigo presidente da Junta, antigo operário têxtil).22 Podiam ter ainda uma pequena venda e/ou indústria no domicílio, ou empregar jornaleiros (como era o caso da própria fábrica). Tinham, por isso, mais dinheiro e acesso a outro tipo de alimentação: “o meu avô já era encarregado aqui na fábrica, já tinha acesso ao milho. O meu avô chegou a mandar vir arroz do Brasil numa saquinha de pano na [altura da] fome” (comerciante, antiga operária têxtil).23 Tinham também mais possibilidade de educar os filhos, que assim acediam a profissões melhores (como professores, enfermeiros, ou seguindo a via eclesiástica, por exemplo), e por norma não emigravam ou emigravam menos.24 Em condição oposta estavam os pobres, referidos também nalguns relatos, frequentemente “em trânsito” para a “sopa dos pobres”.
Num quadro de duras condições de vida e fortes assimetrias, as redes familiares, de vizinhança e compadrio são centrais, nelas assentando um conjunto de “arranjos” como as relações clientelares, a caridade ou a emigração, enquadrados numa “ética de subsistência”, comum à maioria das sociedades camponesas e à ordem agrária pré-capitalista (J. C. Scott, 1976; Silva, 1998). Ou seja, as relações com as diferentes “famílias de classe” locais - clientelares, de caridade, reciprocidade ou outras - integram uma mesma lógica moral, visando a subsistência (cf. Fassin, 2009, p. 1249). A economia moral não se desvanece necessariamente com a monetarização (Parry e Bloch, 1989, pp. 8, 12). Pelo contrário, os modos de “fazer a vida” abarcam diferentes “regimes de valor” (Appadurai, 1986), além dos estritamente económicos, nomeadamente em contextos de fortes assimetrias e crise, gerando relações de interdependência e de valor emocional (Narotzky e Besnier, 2014, p. S7). No caso em estudo é, por isso, frequente o uso de expressões como “pedir”, “meter”, “arranjar”, “escovar”, “empenhar”, para conseguir trabalho, subir ou mudar de cargo, resolver carências, emigrar, etc.25
Os modos de “fazer a vida” têm também um caráter temporal, visando a reprodução social. No caso em estudo, este é marcado, até aos anos 1960-1970, pela incerteza face ao futuro, perante uma vida que “não corria para a frente” ou em que “[eu] não via futuro”:
Mas eu não estava bem, achava que ganhava pouco, a vida não corria para a frente, e de maneira que emigrei, pronto. Estive lá 16 anos, em França. E foi aí onde melhorei a minha vida. Ai, melhorei… (antigo operário têxtil, antigo emigrante em Tourcoing,26 ênfase minha).
- Nunca foi assim uma ambição por ambição, foi… Ambição sim, era, não via futuro em Portugal. Na altura, no Salazarismo, não via… […]
- Quer-se dizer, viemos para procurar uma vida melhor. Como toda a gente. Foi o que toda a gente também veio fazer, foi tentar uma vida melhor (casal de emigrantes em Roubaix, antigos operários,27 ênfase minha).
Ainda assim, projeta-se o futuro possível, o que podia passar por dados “arranjos técnicos” (J. C. Scott, 1976): “Havia uma rapariga que ia casar, e não queria levar um cântaro de barro [no enxoval]”, pelo que troca o dinheiro do pão entregue pela mãe à padeira, pelo dinheiro para a “ajuda de um cântaro de folha”, refere uma anciã do lugar (doméstica, antiga dirigente associativa/paroquial).28
Ou seja, os modos de “fazer” e reproduzir a vida destas famílias operárias assentam no salário da fábrica, mas também num “trabalho” relacional, emocional, moral permanente e em adaptações no espaço e no tempo, abarcando diferentes “regimes” de valor e as suas temporalidades, designadamente em contextos de fortes assimetrias e de crise (Narotzky e Besnier, 2014). No contexto em estudo, longamente marcado pelos baixos salários e crises cíclicas do setor têxtil, a indústria e as mobilidades e/ou migrações integram desde finais do século XIX o reportório de “fazer a vida” destas famílias operárias. Nos anos 1960, a crise que a Companhia atravessa desde meados da década de 1950 (cf. Salgado, 1998, p. 47 e segs.) e o seu encerramento em 1968 levam muitas operárias e operários a procurar trabalho noutras fábricas do concelho ou fora do país, sendo Roubaix e Tourcoing um destino recorrente. Esta vaga migratória ter-se-á iniciado de forma legal, por contrato de trabalho, em 1962-1963, intensificando-se no fim da década, de forma clandestina ou por carta de chamada.29 Efetivamente, em dezembro de 1962 e janeiro de 1963 dão entrada na Peignage Alfred Motte, em Roubaix, 32 homens oriundos maioritariamente do concelho de Guimarães, de diversas freguesias (pelo menos 26 são naturais do concelho de Guimarães, sendo os restantes de concelhos limítrofes ou de origem impercetível, caso, respetivamente, de 2 e 4 trabalhadores).30
Para muitos jovens a emigração (clandestina) é motivada também pelo espoletar da guerra colonial no início da década de 1960: “[O meu irmão] Deixou a fábrica e foi, porque estavam a ir muitos rapazes para Angola e ele não queria ir, e então foi para França. E depois ele é que nos chamou a todos” (antiga operária, antigo emigrante em Tourcoing).31 Para outros, que não quiseram ou puderam emigrar clandestinamente, a guerra ou o serviço militar adiou o percurso migratório: “Eu digo assim, vou fazer o meu serviço porque depois encontro-me livre, para não ser obrigado a fugir e estar aqui completamente impedido de ir a Portugal” (emigrante em Roubaix, antigo operário).32
Em suma, a instalação da fábrica em Campelos no final do século XIX leva a que uma nova população se instale no lugar, até então despovoado, introduzindo profundas mudanças a nível local, que se traduzem em clivagens entre a parte rural e industrial da freguesia. Embora estas transformações sejam vistas positivamente pelos seus moradores, maioritariamente operários, as suas condições de vida eram difíceis, dependendo de baixos salários para o acesso a bens essenciais. Neste contexto, se, por um lado, quem não tinha trabalho, passava fome, já as famílias de mestres e empregados superiores da fábrica, de comerciantes e outras figuras de relevo a nível local, encontram-se entre quem vivia melhor. Num quadro de difíceis condições de vida e fortes assimetrias, “fazer a vida” passa, para estes operários-migrantes, não apenas pelo salário, mas também por um “trabalho” relacional, moral, emocional, permanente, visando a subsistência e a reprodução social, abarcando questões de valor e tempo. Nestes “arranjos” insere-se também a emigração, visando o acesso a um futuro “melhor”, particularmente em períodos de crise. Na década de 1960, com a crise e encerramento da Companhia e o espoletar da guerra colonial, inicia-se uma nova vaga migratória que provoca novas transformações no lugar, reconfigurando estas dinâmicas e intensificando a monetarização da vida. Estas mudanças traduzem-se, entre outros aspetos, nas conceções locais de “vida boa”, questão que tratarei no ponto seguinte.
Futuro presente: “fazer a vida, fazer a casa”
Uma das expressões mais referidas nos relatos a propósito da principal motivação para emigrar é “melhorar a vida”. Esta expressão é articulada como fruto da necessidade de “ganhar a vida” pelo acesso a um melhor salário, associada a aspirações a uma “vida melhor” para si e para os filhos, particularmente por comparação com a experiência passada, onde esta é caracterizada como “má” ou “fraca”: “Foi meio mundo por aí fora à procura de uma vida melhor. A vida aqui era fraquinha” (antiga operária, antiga emigrante em Tourcoing),33 “Toda a gente ia porque a vida era má, não havia dinheiro, eles não ganhavam para sustentar os filhos” (comerciante).34 Conforme referem Narotzky e Besnier, em muitas sociedades o futuro coincide com a mobilidade geográfica, na expectativa que esta se traduza também em mobilidade social (2014, pp. S4, S11).
A emigração como forma de “melhorar a vida” está associada, entre outros aspetos, à vontade de ter casa própria35 para si e para os filhos: “Uma pessoa pôde fazer a nossa vida, pôde fazer uma casinha em Portugal. Muitos, os que puderam, porque não foi para toda a gente. E a vida foi-se ‘amelhorando’ ” (emigrante em Tourcoing, rececionista e antiga operária,36 ênfase minha); “O objetivo de poupar era ter uma casinha para viver, como agora tenho. Tenho uma para viver aqui, tenho outra em Brito para o resto dos filhos, e os outros estão para lá” (antigo operário, antigo emigrante em Tourcoing)37. Faz-se a vida como quem constrói uma casa, numa imagem que traduz a interrelação entre ideias e matéria nas práticas quotidianas das classes populares (Godinho, 2020, p. 20). Assim, em Campelos a vida “monta-se”, “organiza-se”, “arranja-se”, “faz-se”, “orienta-se”, “leva-se”, “desenrasca-se”, “olha-se por ela”, para que ela “ande” ou “comece a correr”. Além disso, a casa sobrepõe-se por vezes ao espaço de trabalho e é nela que se reforçam alianças (Godinho, 2020, pp. 25-27; Contreras Román, 2019, p. 75). Corresponde, então, ao que Maurice Godelier (2001, p. 17) designou, a partir de Annette Weiner, como bens inalienáveis, que não podem ser dados nem vendidos, constituindo a base da sociedade. Conforme defendem Narotzky e Besnier, as práticas de “fazer pela vida” não são meramente económicas, tendo como objetivo sustentar a vida ao longo de gerações, visando a reprodução social e tendo implícitas noções de futuro (2014, p. S4).
De uma forma geral, os relatos apontam a melhoria de condições de vida, por comparação com as dificuldades em Portugal: “Não, se estivéssemos em Portugal não tínhamos conseguido ter a vida que tivemos aqui, não é. Embora trabalhássemos muito. Mas bom, a vida foi outra, vá” (emigrante em Roubaix, antiga operária);38 “Mas eu nunca senti assim muito lá a crise [em França], como lhe acabei de dizer eu trabalhei sempre. Eu trabalhei sempre até me vir embora. Sempre!” (antiga operária, antiga emigrante em Tourcoing,39 ênfase minha). Conforme refere Ingerson, “a maioria dos trabalhadores entrevistados atribuiu melhorias nas suas próprias vidas ao trabalho árduo e à unidade da família, contra o background da industrialização e mobilidade ascendente” (1984, pp. 249-250, tradução minha). Esta perceção surge também entre os habitantes de El Boxo (México), que atribuem a mudança não ao Estado ou às agências indigenistas, mas a um esforço permanente na construção de um futuro, especialmente dos que tiveram de sair da comunidade para trabalhar (Contreras Román, 2019, pp. 6-7).
Surgem, contudo, trajetórias diferentes. Um interlocutor recorda que foi levado “quase ao colo”, e que, em França, “O quarto parecia um convento. Aqui num quarto dormíamos quatro putos, lá era um quarto que podíamos estar para aí quarenta!” (emigrante em Wattrelos, antigo operário).40 Já para outra interlocutora, emigrar foi “uma ilusão”, pelo menos numa fase inicial, contrastando a vida nas “courées”,41 onde morou nos primeiros anos, de quem vivia nas “casas dos patrões”, pelo que “Eu vivi muito tempo [em França] aqui como em Portugal” (antiga emigrante em Roubaix, empregada doméstica/lavoura).42 Se o primeiro emigrou legalmente, em criança, com o pai, que era operário têxtil, já a segunda, que em Portugal era doméstica trabalhando com os pais na lavoura, emigrou clandestinamente com seis filhos, juntando-se ao marido, que foi curtidor cá, operário têxtil lá. Estas experiências opostas de emigração denotam como diferentes fatores poderiam condicionar o percurso e a experiência migratória, entre eles a forma de emigração (legal ou clandestina), a idade ou fase da vida no momento da emigração, o género, estado civil, número de filhos, escolaridade, ou origem socioeconómica, e atividade profissional das famílias. Além disso, as redes familiares, de vizinhança e compadrio têm um papel central na escolha do destino migratório, na forma de emigração e nas várias fases do percurso, que nem sempre foi fácil, sobretudo inicialmente.
O “convento” de um e a “ilusão” de outra traduzem, ainda, as mudanças nos comportamentos e estilos de vida provocadas pela emigração, ligadas a novas aspirações e conceções de “vida boa” possibilitadas pela aceleração da monetarização na freguesia, inclusivamente entre aqueles para quem emigrar foi, pelo menos inicialmente, uma “ilusão”, ou entre os que ficaram. Conforme refere Appadurai, “as aspirações não são puramente individuais […] formam-se em interação com o mais intenso da vida social” (2015, cit. em Contreras Román, 2019, p. 175, tradução minha). Estas mudanças refletem-se, desde logo, em alterações nas formas de habitar e nos padrões construtivos das casas, que se multiplicam na envolvente da fábrica, sobretudo em Vila Nova de Sande onde havia mais espaço disponível.
Se a instalação da fábrica em Campelos provocou a diferenciação entre o meio rural e fabril da freguesia, a emigração dos anos 1960-1970 terá introduzido outras formas de distinção, desde logo entre quem emigrava ou não, visível, por exemplo, na construção de casas com materiais exógenos ( Contreras Román, 2019, p. 153). Conforme adianta Pina Cabral para o contexto do Alto Minho, a casa é um importante indicador de riqueza e prestígio a nível local, mantendo-se mesmo quando a agricultura deixa de ser a fonte principal de rendimento (1989b, pp. 44, 51). Assim, as e os emigrantes passam a ser os novos “fidalgos”. Quem não emigrou também podia melhorar a sua situação, ainda que sejam notadas diferenças, por exemplo na habitação e na reforma, conforme relata o antigo presidente da Junta citado, que não emigrou: “E eu, mesmo ficando cá, consegui. Comprei uma [casa] velha a um ex-emigrante e restaurei. Mas eles [emigrantes] é tudo quase de novo. […] E hoje, sim senhor, são compensados porque têm uma reforma boa. À nossa beira, têm uma reforma muito boa”. Surgem diferenciações também entre os próprios migrantes, por exemplo em relação à poupança. Assim, se para um interlocutor “a vida começou a correr” (antigo operário, antigo emigrante em Tourcoing,43 ênfase minha), outra nota, como vimos, que o projeto de construir casa “não foi para toda a gente”. Uns “melhoraram a vida, porque olharam pela vida como deve ser. Há outros que foram para França e que não têm nada” (antigo operário, antigo emigrante na Alemanha).44 Para estes emigrantes isto poderia traduzir-se na vergonha do regresso.45
O objetivo da emigração era “Ir e depois voltar. Melhorar a vida e vir embora” (antiga operária, antiga emigrante em Tourcoing)46, mas se alguns interlocutores regressaram logo, outros fizeram-no após o 25 de Abril ou a partir dos anos 1980 (com a desindustrialização em França ou a reforma), enquanto outros foram ficando. Este “tempo suspenso” do presente migratório permite perceber como estas mudanças não se deram sem contradições, configurando-se, entre outros, como um conflito de caráter temporal, derivado da descontinuidade entre experiência e expectativa, adianta Contreras Román (2019, pp. 177-179, 183-184). O regresso adiado, ou não cumprido, implicou uma aprendizagem para quem emigrou e para quem ficou, marcada por um conjunto de “arranjos sociais e temporais”, mantidos implicitamente entre ambos, que o antropólogo designa de “gestão da ausência” (Contreras Román 2019, pp. 3, 9-13). Conforme lembra o antigo presidente da Junta citado, residente em Campelos: “Aqui nós sentimos uma tristeza, porque estávamos habituados ao convívio de muita gente, e em pouco tempo isto parecia um deserto”.
A casa do emigrante desempenha um papel central nesta administração da espera, ante a possibilidade de um futuro regresso, permitindo a coparticipação das e dos migrantes e de quem fica no projeto migratório (Contreras Román, 2019, p. 4). Esta questão é sublinhada pelo mesmo interlocutor, em Campelos:
E mesmo os familiares de cá também eram ajudados, às vezes, por aqueles que estavam por lá. Ajudados indiretamente, porque também lhes tinham que olhar aqui pelas coisas, não é… Ah, pois, eles têm cá as casas, e elas não estão totalmente ao abandono. Tem sempre alguém que vai lá.
Ou seja, o projeto migratório, cujo objetivo imediato era a melhoria de salário e das condições de vida, traduz-se também na abertura do horizonte de expectativas visando a ascensão social e a reprodução da vida entre gerações, pelo que para muitos a mobilidade geográfica é sinónimo de futuro. Estas melhorias são entendidas pelos próprios como fruto de um esforço continuado ao longo da vida, em detrimento de outras entidades externas como o Estado. A emigração traduz-se, por outro lado, como um conflito de caráter temporal entre o presente migratório e o regresso muitas vezes adiado, implicando um conjunto de “arranjos” ligados à gestão da ausência, que envolvem quem partiu e quem fica.
Em suma, o encerramento da fábrica e a emigração introduziram profundas mudanças no lugar, caracterizado como “deserto” e envelhecido face ao movimento anterior. De uma forma geral, a emigração é percecionada como positiva, associada à melhoria das condições de vida e a um futuro melhor, embora surjam dificuldades, sobretudo inicialmente, e trajetórias diferenciadas, e a nível local poderiam surgir clivagens. Essa melhoria traduz mudanças nos estilos de vida, impulsionadas pela intensificação da monetarização da vida, que alarga os horizontes de expectativa até então marcados pela escassez. Estas melhorias estão associadas a um esforço continuado ao longo da vida, implicando adaptações e aprendizagens no espaço e no tempo (tais como a emigração e a gestão da ausência), onde a casa do emigrante e as redes familiares, de vizinhança e compadrio se revelam centrais, nas várias fases do percurso migratório. Economia, valor e tempo articulam-se, assim, de forma estreita, no projeto migratório.
Notas finais
No presente artigo procurei analisar o significado da expressão “melhorar a vida” entre (antigas e antigos) operários-migrantes na envolvente de uma antiga fábrica têxtil no Vale do Ave, à luz das profundas mudanças dos anos 1960-1970 em Portugal. Centrei-me, para tal, em dois aspetos decorrentes das entrevistas a propósito da decisão de emigrar, que traduzem estas mudanças: a pobreza associada à escassez de dinheiro (experiência); e a aspiração a uma vida melhor, associada à vontade de ter casa própria (expectativa). Os anos 1960-1970 marcam uma nova temporalidade no país ligada à desarticulação da sociedade camponesa, que se traduz em novos hábitos e comportamentos e noutras formas de experimentar o tempo, aberto ao futuro (ainda que acelerado e incerto). A centralidade destas mudanças pode ser compreendida face às difíceis condições de vida e profundas assimetrias que assolavam o país até então, inclusivamente no Vale do Ave, onde a monoespecialização têxtil e as particularidades do processo de industrialização da sub-região se traduzem, entre outros, numa mão-de-obra barata e pouco qualificada, e na centralidade histórica do trabalho infantil e feminino no setor.
Se no passado a vida “não corria para a frente” porque o dinheiro era “pouquinho”, já a emigração possibilitou, para muitos, “organizar melhor a vida” para si e para os filhos. Estas melhorias são associadas pelas e pelos interlocutores não apenas ao fator económico, mas a um esforço continuado ao longo da vida, na qual se “trabalhou sempre”. Trajetórias de vida que se foram construindo, mediante um “trabalho” relacional, moral, emocional continuado e aprendizagens e adaptações no tempo e no espaço, que nem sempre foram bem-sucedidas ou fáceis para todas e todos, visando a subsistência e a reprodução social. As melhorias traduzem-se, por outro lado, num conflito de caráter temporal derivado da descontinuidade entre experiência e expectativa, expresso, entre outros, na “gestão da ausência” implicada no período migratório, entre o futuro adiado do regresso e o presente “suspenso” da emigração.
Nestas melhorias, o acesso a um melhor salário e a construção de casa própria desempenham um papel central, constituindo-se como o objetivo principal do percurso migratório com vista à ascensão e reprodução social, ao abarcar as gerações futuras e perante a intenção do regresso. Nela se refletem estas mudanças nas noções de “vida boa”, por exemplo nas novas formas de habitar (tornando visível, também, aqueles que não o conseguiram, ou não regressaram). Enquanto projeto a longo prazo, a casa traduz também o esforço e as contradições implicadas nessa melhoria. Construída ao longo do tempo, é nela que se reproduz a vida familiar e que se tecem também alianças, centrais, entre outros, na gestão da ausência entre o presente migratório e o futuro regresso.
Concluindo, a recorrência da expressão “melhorar a vida” traduz uma tensão entre a necessidade de ganhar a vida, no presente, mediante o salário, e as aspirações a uma “vida boa”, no futuro. Uma tensão que assenta num “trabalho” que vai além da esfera estritamente económica, articulando questões de valor e tempo, e que sublinha a importância de considerar uma visão alargada da economia na análise das práticas económicas dos sujeitos, particularmente em contextos marcados pela incerteza e crise.47
Referências bibliográficas
FONTES
Entrevistas
Entrevista 1, 27-7-2017, Braga.
Entrevista 3, 14-8-2017, Vila Nova de Sande.
Entrevista 5, 5-9-2017, Vila Nova de Sande.
Entrevista 8, 13-9-2017, Campelos (Ponte).
Entrevista 12, 9 e 20-10-2017, Campelos (Ponte).
Entrevista 16, 24 e 30-10-2017 e 6-11-2017, Campelos (Ponte).
Entrevista 17, 24-10-2017, Campelos (Ponte).
Entrevista 19, 26-10-2017, Campelos (Ponte).
Entrevista 21, 26-10-2017, Campelos (Ponte).
Entrevista 22, 7-11-2017, Campelos (Ponte).
Entrevista 24, 8-11-2017, Campelos (Ponte).
Entrevista 32, 27-12-2017, Ponte.
Entrevista 41, 24-4-2018, Roubaix.
Entrevista 44, 30-4-2018, Roubaix.
Entrevista 50, 17-10-2017, Tourcoing.
Inquéritos
Inquérito 14, 5-1-2018, Ponte, levantamento de utentes no Centro de Dia do Centro Social, Recreativo e Cultural de Campelos.
Inquérito 54, 31-01-2018, Campelos (Ponte), levantamento de vizinhos no antigo bairro operário.
Fontes arquivísticas
Archives Nationales du Monde du Travail (ANMT), Roubaix:
Fundo 1997 014, cota 212, Peignage Amédée Prouvost: Livro de registo de entradas e saídas de trabalhadores, 1947-66, Peignage Alfred Motte;
Fundo 1997 014, cotas 485-489, 491-492, 505 e 511, Peignage Amédée Prouvost: fichas de trabalhadores, Peignage Alfred Motte.