Introdução
Este artigo procura analisar a constituição e as dinâmicas sociais da classe trabalhadora nos casinos em Portugal, debruçando-se, na primeira secção capítulo, sobre as relações clientelistas presentes nas suas políticas de recrutamento e, na segunda, sobre a distribuição assimétrica das gratificações (gorjetas) entre os trabalhadores das várias categorias profissionais. Procura-se argumentar que estes dois elementos determinam, em grande medida, a experiência de classe, de dominação e de exploração dos trabalhadores dos casinos em Portugal, influenciando, decisivamente, não apenas as “relações de produção” - as relações entre capital e trabalho -, mas, igualmente, as “relações na produção” - as relações entre as várias categorias profissionais - (Burawoy, 1985). O clientelismo e as gratificações constituem dois eixos de “oclusão social” (Weber, 1968 [1921]) que contribuem para a reprodução do relativo privilégio ocupacional e familiar das categorias profissionais dos pagadores de banca (croupiers/dealers), fiscais de banca, fiscais-chefes e chefes de partida (ver figura 1), através da exclusão deliberada de outros grupos da classe trabalhadora dentro e fora dos casinos. Apesar do carácter endógeno destes elementos, dado que são instrumentalizados pelos próprios trabalhadores, representam menos uma opção do que um constrangimento, dado o contexto de subordinação social a que estão sujeitos no trabalho e na sociedade. Simultaneamente, esses elementos contribuem para a fragmentação da classe trabalhadora nos casinos e para a consequente assimetria na relação de forças entre capital e trabalho. Argumenta-se ainda, na terceira secção, que as práticas de “oclusão social”, assentes na proteção das competências e credenciais dos pagadores de banca, visando proteger o valor das suas gratificações, produzem uma experiência de classe eminentemente “contraditória” (Wright, 2013), onde uma condição de subordinação no processo de trabalho se conjuga com relativos privilégios ocupacionais e com uma aderência afetiva e material à classe média no universo do consumo.
Para analisar este contexto profissional, torna-se fundamental apreender a classe social como uma categoria relacional, definida em interdependência, em oposição e em luta (Ortner, 2006; Carrier e Kalb, 2015). As classes sociais definem, é certo, as posições dos indivíduos numa determinada estrutura social, mas apenas na medida em que essas posições expressam relações sociais, não o contrário (Carrier e Kalb, 2015). Como assinala Narotzky (1997), o conceito de classe descreve uma determinada relação com o capital. No entanto, a configuração social e cultural desta relação diverge consideravelmente de contexto para contexto (Narotzky, 1997; Antunes, 2013). Se, por um lado, a classe trabalhadora partilha uma mesma condição de subordinação social, estrutural e laboral na sua relação com o capital, por outro, fragmenta-se internamente, consoante a experiência social e cultural dessa subordinação (Naroztky, 1997; 2015; Antunes, 2013). Nesse sentido, a abordagem marxista, que define a classe segundo a posição ocupada pelos agentes sociais no processo produtivo (Marx, 1990 [1867]), ganha em ser conjugada com os contributos de Weber (1968), que priorizam a análise simbólico-representativa, na medida em que as distinções de classe ou frações de classe se exprimem nos habitus e estilos de vida (Bourdieu, 2010; Silva, 2009). Tal posicionamento sugere que a análise não se deve concentrar, meramente, no processo de trabalho, onde se materializa a exploração laboral das classes dominantes sobre as classes dominadas, mas focar, igualmente, nos contextos de reprodução social, na desigual repartição dos recursos, na construção social e cultural do estatuto profissional e nos universos simbólicos que medeiam a identidade e a pertença de classe (Silva, 2009). Esta identidade e pertença de classe variam, assim, consoante a experiência de dominação e exploração a que os trabalhadores estão sujeitos. Tal constatação não é indiferente aos grupos dominantes, que procuram fragmentar a classe trabalhadora através da produção de consentimento (Burawoy, 1979) e da mobilização de mecanismos de desorganização (Lembcke, 1991-1992). Se, por um lado, os trabalhadores são agentes ativos, utilizando os recursos à sua disposição para atenuar a sua situação de subordinação, por outro, dado que esses recursos são estrategicamente mobilizados pelos grupos dominantes, acabam por reproduzir a assimetria entre capital e trabalho. Assim, a fragmentação da classe trabalhadora ou a cooptação de alguns dos seus elementos não refletem a ausência de luta de classes, mas um determinado momento do conflito.
Este artigo é o resultado de uma investigação etnográfica que procurou diversificar as suas fontes de recolha de dados. Em primeiro lugar, durante quatro meses (entre junho e setembro de 2017), realizei observação participante, exercendo a função de auxiliar de banca (ou contínuo) num casino em Portugal;1 posteriormente, entre fevereiro e outubro de 2018, realizei 46 entrevistas semiestruturadas a 40 profissionais de dois casinos pertencentes à mesma concessionária; por fim, entre outubro de 2018 e março de 2019, frequentei o curso de pagador de banca de casino.
Clientelismo, nepotismo e casinos
A sala de jogo está animada. Eu estou ainda em formação, mas já vou exercendo, com relativa autonomia, a minha função. Ajeito as cadeiras que se encontram desalinhadas nas bancas, compro tabaco a pedido dos jogadores e procedo, quando solicitado, à entrega de fichas nas mesas de jogo. O meu colega/formador acompanha-me sempre, corrigindo os meus procedimentos. As tarefas requeridas aos contínuos exigem intensa mobilidade e, tendo entrado às 21:00, encontro-me já exausto. Aproveitando um breve interlúdio, coloco as mãos atrás das costas, imitando os fiscais chefes e os seguranças que deambulam pela sala, e posiciono-me junto à divisória da sala VIP. O meu colega/formador, mais familiarizado comigo nos últimos dias, pergunta-me de súbito: “Vens de onde?”. Eu respondo: “Como assim?”. Ele hesita e reformula: “de vez em quando aparecem por cá uns paraquedistas, como nós vos chamamos, ninguém sabe de onde é que vêm e quem vos pôs cá dentro. Tu não precisas de dizer, mas tanta gente lá fora que quer trabalhar no casino e vocês aparecem aqui de paraquedas.” De facto, desde os meus primeiros dias, esta havia sido uma questão recorrente. Alguns dias antes, quando me encaminhava para os balneários, um pagador de banca, que se encontrava a conversar descontraidamente com outros colegas seus, perguntou-me direta e surpreendentemente: “quem é o teu pai?”. Como não percebi o objetivo da pergunta, respondi na minha maior ingenuidade: “É o Manuel, porquê? Não o deves conhecer”. Depois de um silêncio incómodo, o pagador retificou a pergunta: “Não é isso. Quem é a tua cunha?”. Eu respondi: “ninguém”. Ele olhou-me com alguma seriedade e concluiu jocosamente: “então estás fodido! Não vais a lado nenhum assim”. Este escrutínio acerca das minhas origens repetiu-se por diversas vezes e em diversos contextos e só gradualmente me fui apercebendo que o seu princípio fundamental era o de que ninguém caía “de paraquedas no casino” e de que ninguém entrava sem uma “cunha”.
O clientelismo é, por isso, o primeiro eixo de estruturação da experiência de classe dos trabalhadores dos casinos em Portugal e favorece a reprodução do seu relativo privilégio ocupacional e familiar. Isto significa que a “estrutura informal” (Wolf, 2001) do clientelismo é operacionalizada através da linguagem real ou fictícia do nepotismo. As relações patrono-cliente são, efetivamente, relações personalizadas, assimétricas e recíprocas (Powell, 1970; Scott, 1972; Auyero, 1999). Relações de troca entre, por um lado, um patrono, que providencia bens “instrumentais” ou “tangíveis”, isto é, recursos materiais, sociais, políticos ou económicos e, por outro, um cliente, destituído desses mesmos recursos e que oferece, em troca, bens “sociais” ou “expressivos”, como apoio político, trabalho, votos, etc. (Auyero, 1999; Powell, 1970). A importância das redes clientelistas nos casinos, já observada em diversos contextos sociais, aparenta ser uma constante que desafia os limites espácio-temporais. Sallaz (2009), na sua etnografia sobre o trabalho nos casinos em Las Vegas e na África do Sul, assinalava que a colocação profissional de novos recrutas dependia, quase exclusivamente, dos contactos e do patrocínio dos formadores da escola onde deveriam concluir, com sucesso, o curso de dealer. Os gestores dos casinos, ou patronos, contactavam os formadores destas escolas, ou intermediários, com o objetivo de reunir um conjunto de novos recrutas, ou clientes, para a realização de entrevistas (Sallaz, 2009). Os formadores, por sua vez, selecionavam e patrocinavam os seus alunos com base nas suas personalidades e competências técnicas (Sallaz, 2009). Selecionavam, claro, aqueles que consideravam reunir as melhores condições de empregabilidade, dado que a manutenção desta relação clientelista e da confiança dos casinos num determinado grupo de intermediários dependia, em grande medida, da qualidade dos dealers que eram por eles patrocinados. Em Portugal, o clientelismo nos casinos assume formatos bastante diferentes, embora permaneça uma relação absolutamente estrutural. Tal como noutros contextos, o universo laboral dos casinos em Portugal é caracterizado por um “habitus clientelista” (Auyero e Benzecry, 2017) que estrutura as disposições individuais e coletivas dos trabalhadores e que contribui para a legitimação e naturalização destas relações assimétricas. Belchior, fiscal de banca com mais de 30 anos de experiência profissional, confirma a prática generalizada do clientelismo, considerando-a natural e vantajosa:
A grande maioria das pessoas que entram aqui, entram porque pedem a alguém. Depois esse “alguém” deve falar com alguém da empresa… O meu caso, por exemplo, foi por intermédio de alguém, eu até nem conhecia a pessoa, mas essa pessoa, por intermédio de outra pessoa, falou com alguém do casino e eu entrei. Mas a grande maioria das pessoas entra assim. O processo de recrutamento é esse… através de familiares, que é o exemplo da minha filha… Já trazem alguma referência que é normal, passa-se o mesmo em muitas empresas… Quando a minha filha quis, eu dei um “toque” cá dentro.
Qual é então o “favor fundacional” (Auyero, 2000) que estabelece esta relação de ajuda mútua nos casinos em Portugal? Dado o enquadramento institucional dos casinos, não surpreende que este “favor fundacional” seja representado pelo posto de trabalho. Inicialmente, um recruta (cliente), normalmente familiar, amigo ou conhecido de um trabalhador do casino, solicita que este interceda, em seu favor, junto dos órgãos de gestão e direção da empresa. Assim, o clientelismo nos casinos é um “clientelismo de baixo” (Auyero, 1999), o que não significa que “de cima” não exista necessidade ou interesse em reforçar estas práticas. Os clientes, em virtude da condição semiperiférica (Santos, 1985) do mercado de trabalho português, caracterizado pelos baixos salários, precariedade e informalidade contratual e remuneratória, asseguram, através de contactos familiares, a inserção num contexto profissional que garante alguma estabilidade laboral e rendimentos em média superiores à restante classe trabalhadora fora dos casinos. O clientelismo, para estes recrutas, funciona como um “redutor de ansiedade” (Powell, 1970), dado que confere alguma segurança e mitiga as dificuldades económicas deste grupo social mais vulnerável. No entanto, ao solicitar o favor fundacional, o cliente fica duplamente endividado: em primeiro lugar, junto da empresa que autorizou, em última instância, a sua contratação e, em segundo lugar, junto do trabalhador que intercedeu, em seu favor, junto dos representantes do casino. Se, por um lado, o cliente não pretende prejudicar a empresa pelo favor que lhe foi concedido, por outro, não pretende prejudicar a reputação interna do trabalhador que se responsabilizou pela sua performance laboral e pela sua idoneidade profissional. Alexandre, fiscal de banca com cerca de 30 anos de casa, assinala: “se o profissional tem boas referências tem necessidade de as manter”. Assim, o cliente troca, nesta relação clientelista, o posto de trabalho pela dedicação e idoneidade profissional. Esta dinâmica sugere que o clientelismo nos casinos é caracterizado, em grande medida, pela noção de patrocínio. Normalmente, o profissional que se responsabiliza pelo recruta possui já largos anos de experiência laboral e merece, pelo seu desempenho e idoneidade profissional, a confiança dos órgãos de gestão e direção dos casinos. Assim, este trabalhador funciona como intermediário e assume o duplo papel de cliente, quando interage com os representantes do casino, e de patrono, quando interage com o novo recruta. Fica endividado para com a empresa, que autorizou a contratação de um familiar seu, e endivida o cliente, exigindo deste uma performance laboral correspondente à sua reputação interna.
Mas o que pede a empresa em troca nesta relação clientelista? Como referido anteriormente, a empresa tem interesse na reprodução destas relações clientelistas. O casino consente e facilita a efetivação destas práticas concebendo-as como “generosidades calculadas” (Sahlins, 1963). Atentemos nas palavras de Ivo, pagador de banca com mais de 10 anos de casa:
Não conseguimos fazer greves porque estão todos ligados à empresa. É sobrinho, é primo […]. Uma pessoa que entrou com cunha, que está lá de favor, vai fazer uma greve? Não há hipótese nenhuma…
Guilherme, pagador com mais de 10 anos de experiência profissional, partilha da mesma opinião: “[…] como há gente que entrou ali porque é amigo de alguém, ele não vai agora morder a mão que lhe deu o pão. Há muita gente ali que tem o rabo preso. ‘O que é que o meu pai ou tio vão dizer?’”. Ao conceder o posto de trabalho ao cliente e a manutenção do privilégio familiar ao intermediário, a empresa garante uma “reserva de valor” (Scott, 1972) que legitima a cobrança futura de favores e a constituição de uma força de trabalho confiável. O que a empresa procura não é, como tal, reproduzir as práticas clientelistas ou de nepotismo per se, mas criar um grupo de trabalhadores confiáveis, dóceis (Waterbury, 1977) e deferentes (Scott, 1977). O clientelismo, pelos mecanismos de reciprocidade, de obrigação e de dívida que inculca nos agentes sociais, e o nepotismo, pela intensidade e proximidade relacional que implica, fornecem as estruturas mais estáveis para assegurar o intercâmbio seguro desse recurso de elevado valor de troca: a confiança. Assim, a relação clientelista permite minar as coalizações horizontais, que possuem, normalmente, objetivos de longo-prazo, ao substituí-las por coalizações verticais que garantem, normalmente, benefícios imediatos (Scott, 1972; Flynn, 1974; Eisenstadt e Roniger, 1984; Mouzelis, 1985). As coalizações com a elite, em detrimento das solidariedades de classe, são muitas vezes necessárias para mitigar vulnerabilidades económicas, sociais e simbólicas. Ao servir de ponte ou ligação intermitente, parcial e incompleta dos menos poderosos ao sistema de privilégio dos grupos dominantes, o clientelismo permite desorganizar os potenciais movimentos de classe, pela cooptação dos agentes desses grupos mais vulneráveis através da atribuição de recursos escassos (Waterbury, 1977). Assim, a relação patrono-cliente converte a oposição ao sistema em aderência ao mesmo (Blok, 1969), funcionando como um mecanismo de controlo e dominação de classe (Flynn, 1974). Desta forma, o clientelismo é parte constituinte das dinâmicas internas da classe trabalhadora nos casinos, representando uma prática de oclusão social realizada contra outros grupos da classe trabalhadora, mas contribuindo, igualmente, para a manutenção das relações de poder assimétricas entre capital e trabalho.
A distribuição assimétrica das gratificações
Está um dia calmo, com pouco movimento e escasso jogo. Apesar disso, na sala de jogo, os pagadores encontram-se cativos nas suas respetivas bancas. Com as mãos sempre visíveis em cima do pano, vão conversando com os colegas ou com os fiscais de banca mais próximos. Na roleta, os pratos vão girando, mas a bola está ainda posicionada na casa do último golpe. A sala está quase destituída de jogadores e o silêncio é apenas interrompido pelos ruídos eletrónicos das slot machines. As barmaids repousam, de bandeja na mão, encostadas a um canto da sala, aguardando que os seus serviços sejam solicitados. Os seguranças juntam-se-lhes prontamente. Dirijo-me a uma mesa de blackjack com o objetivo de ajeitar as cadeiras desarrumadas. Na mesa está apenas um jogador. O pagador vai virando as cartas e colocando-as com precisão nas casas de aposta do jogador. O jogador olha para mim e pergunta-me: “Quanto é que te pagam para andares a fazer isso?”. Não respondo, apenas esboço um sorriso e continuo a arrumar as cadeiras, mas o jogador insiste: “1000 euritos para aí? Nada mau”. Depois de gracejar, o pagador, observando o meu descontentamento, adverte o jogador: “olha aí, deixa o rapaz em paz”. Pela familiaridade no trato, suponho que se conhecem. “Ganda tacho”, insiste o jogador. Eu finalizo a minha tarefa e dirijo-me ao cofre. Depois de explicar a situação ao caixa atrás do balcão, afirmo: “o gajo não falhou por muito”. O caixa sugere: “foi o pagador que lhe disse, de certeza”. Questiono com alguma perplexidade: “então, mas isso é normal, estar a dizer quanto ganham os colegas?”. O caixa prossegue: “eles ficam muito chateados porque nós de salário ganhamos tanto ou mais que eles, esquecem-se é que eu ganho um terço das gratificações que eles ganham, isto do grupo 1 e do grupo 2 é uma vergonha”.
A distribuição das gratificações é, efetivamente, o segundo eixo e, sem dúvida, o mais central na determinação da experiência de classe dos trabalhadores dos casinos em Portugal. São as gratificações e, mais concretamente, a instrumentalização que delas faz a empresa e a luta simbólica entre as diferentes categorias profissionais pela sua perceção, que empurram os pagadores de banca para o entrincheiramento profissional e para o clientelismo nepotista.
O salário representou sempre, nos casinos, uma componente remuneratória periférica, englobada numa totalidade composta, maioritariamente, pelas gratificações.2 Por esse motivo, os trabalhadores mais velhos afirmam, com frequência, que “antigamente, ninguém queria saber dos salários”. No entanto, até à década de 1960, os trabalhadores do setor do jogo não descontavam sobre as suas gratificações. Por essa razão e dada a desproporção de valores entre o salário e as gratificações, os trabalhadores dos casinos sujeitavam-se, na reforma, a uma desvalorização social e económica significativa. Assim, em 1960, o Sindicato Nacional dos Empregados de Banca nos Casinos (SNEBC) propôs a criação de um fundo, baseado nos descontos sobre as gratificações dos trabalhadores, com o objetivo de complementar a reforma dos seus associados (Decreto-lei n.º 43044, de 2 de julho de 1960). A criação deste fundo veio a dar origem à formalização e institucionalização das regras de distribuição das gratificações entre os trabalhadores das diversas categorias profissionais dos casinos.
Nos contextos laborais onde é assídua a prática da gratificação, as formas da sua apropriação e distribuição variam consideravelmente. Na sua investigação sobre o trabalho em hotéis de luxo nos EUA, Sherman (2007) observava como diferentes critérios se articulavam e se modificavam consoante o contexto para estabelecer uma justa distribuição das gorjetas. Existem, essencialmente, três formas comuns de proceder à distribuição das gratificações: a alocação individual, isto é, cada um faz a sua; a repartição igualitária; e, por fim, a distribuição assimétrica consoante a categoria profissional ou o departamento/setor de atividade. No entanto, estas categorias não se encontram segregadas por fronteiras fixas e intransponíveis. Os casos observados por Sherman (2007) demonstram, precisamente, como os trabalhadores conjugam e articulam estas diferentes formas de repartição das gratificações nos seus locais de trabalho. Assim, nos casinos em Portugal, podemos observar como os trabalhadores do setor das máquinas automáticas (slot machines) dividem as suas gratificações de forma igualitária, mas, as gratificações do setor de jogos tradicionais (jogos de banca), são distribuídas de forma assimétrica, consoante a categoria profissional e a antiguidade. Ao mesmo tempo, as regras para a repartição das gratificações podem ser estabelecidas pela empresa, pelo Estado, ou pelos trabalhadores. Neste último caso, os procedimentos para a alocação das gratificações tendem a ser informais. Contrariamente, no primeiro caso, o sistema de distribuição das gorjetas é definido pela empresa, através da formalização e implementação de procedimentos internos e, no segundo caso, é o Estado e o seu aparelho legal que sanciona as disposições regulamentares para a repartição das gratificações. Os casos analisados por Sherman (2007) assinalam não apenas a articulação das diferentes formas de distribuição das gorjetas, como também o seu enquadramento institucional. Algumas categorias profissionais devem observar as regras definidas pela empresa na alocação das suas gratificações, enquanto outras não possuem qualquer tipo de enquadramento institucional (Sherman, 2007). Nos casinos em Portugal, as regras para a distribuição das gratificações dos profissionais do setor do jogo são definidas pelo Estado, ao contrário dos casos analisados por Sherman (2007), enquanto os procedimentos para a repartição das gorjetas obtidas, por exemplo, pelas empregadas de mesa são estabelecidos pelas empresas que subconcessionam o espaço da restauração aos casinos. Por outro lado, não existe qualquer prática formal ou informal que permita a retenção individual das gorjetas.
As gratificações do setor de jogos tradicionais são bastante mais elevadas do que as de outros departamentos. Por esse motivo, a luta simbólica entre as diferentes categorias profissionais decorre, fundamentalmente, sobre estas gratificações e sobre a sua distribuição assimétrica. Enquanto os pagadores de banca, fiscais de banca, fiscais-chefes e chefes de partida, auferem a proporção máxima do valor das gratificações, as restantes categorias profissionais recebem apenas parte deste valor. Atualmente, o salário base de um pagador de banca está fixado, por Acordo de Empresa, nos 917€ mensais. Os fiscais de banca, fiscais-chefes e chefes de partida auferem, por sua vez, 947€, 1636€ e 1777,5€ respetivamente. As gratificações, por outro lado, embora variáveis, rondam os 900€-1200€ por mês. Existem categorias profissionais que possuem ordenados superiores aos dos pagadores de banca. É o caso dos caixas (1205,5€) e dos fiscais das máquinas automáticas (1235,5€). Mas, em contrapartida, auferem proporções menores das gorjetas. De tal forma que os pagadores, embora possuam um ordenado idêntico ao de um contínuo (905,5€), acabam por ser a categoria profissional, em conjunto com os fiscais de banca, fiscais-chefes e chefes de partida, que recebe rendimentos globais mais elevados. Por essa razão, a distribuição assimétrica das gratificações concentra, em grande medida, as atenções dos agentes sociais envolvidos. Esta escala de privilégio interna, referente à distribuição assimétrica das gorjetas, é motivo de forte descontentamento e resulta na fragmentação da classe trabalhadora dos casinos. Os profissionais das diversas categorias profissionais, em detrimento de uma luta sindical potencialmente unitária, segmentam-se internamente numa luta simbólica (Bourdieu, 2010; 2018) pelo privilégio e não contra o privilégio.
Esta escala de privilégio interna, tal como se constitui no universo laboral dos casinos, desenha-se em torno das seguintes segmentações:
Trabalhadores centrais vs trabalhadores periféricos. Os primeiros, ligados diretamente ao casino e ao setor do jogo, possuem contratos de trabalho que garantem alguma estabilidade laboral, rendimentos superiores e estruturas sindicais com relativo poder negocial. Auferem, além disso, as gratificações do setor do jogo. Os segundos, subcontratados, precários e auferindo rendimentos bastante inferiores, não estão autorizados a receber gratificações. Algumas categorias profissionais deste segundo grupo, como as empregadas de mesa, estão habilitadas a receber gorjetas. No entanto, estas não são partilhadas com as provenientes do setor do jogo e, por essa razão, não ultrapassam os 100-200€ mensais.
Máquinas automáticas vs jogos tradicionais. Esta segunda segmentação formula-se no interior da categoria dos trabalhadores centrais mencionada atrás. Os trabalhadores ligados ao departamento das slot machines estão autorizados a receber gorjetas, mas, tal como as empregadas de mesa, apenas auferem as gratificações realizadas no âmbito do seu setor de atividade. As gratificações do departamento dos jogos tradicionais, bastante mais elevadas dada a proximidade e intensidade relacional com o cliente, não são partilhadas com as do setor das máquinas automáticas. Assim, o valor das suas gratificações ronda os 100-200€ por mês. Ao mesmo tempo, fazem parte do setor mais relevante para o volume global de negócios dos casinos em Portugal.3 Os ressentimentos causados pela constatação de que os seus rendimentos não refletem a importância do seu setor nas receitas operacionais dos casinos, conduziu, inclusivamente, a diversas ações que propunham a integração destes profissionais na distribuição das gratificações do departamento dos jogos tradicionais. Tentativas que esbarraram sempre na resistência dos seus colegas.
Grupo 1 vs grupo 2. Esta terceira segmentação é definida no interior do setor dos jogos tradicionais e diz respeito à divisão entre o grupo 2, constituído por caixas, contínuos e respetivos chefes, e o grupo 1, que integra pagadores de banca, fiscais de banca, fiscais-chefes e chefes de partida. Enquanto o grupo 1 aufere a proporção máxima do valor das gratificações (900-1200€ mensais), o grupo 2 recebe 1/3 deste valor (300-400€ por mês). Apesar de não contestarem o princípio da distribuição assimétrica das gratificações, os profissionais do grupo 2 ressentem o grau dessa assimetria. Os caixas, por exemplo, referem que são o “coração da sala de jogo”, dado que todos os valores monetários que circulam no casino passam pelo seu departamento. Esta noção de valor profissional funciona como instrumento de contestação contra a posição subordinada que os caixas ocupam nesta escala de privilégio interna.
Letras A, B e C. A última segmentação, presente no interior do grupo 1, isto é, na própria categoria profissional dos pagadores de banca, reflete uma assimetria geracional. A letra C, constituída por pagadores de banca com uma experiência profissional não superior a 1 ano, aufere a mesma proporção das gratificações que os profissionais integrados no grupo 2 (300-400€ por mês). A letra B, por sua vez, é composta por pagadores de banca com uma experiência profissional entre os 2 e os 5 anos e recebe 2/3 da proporção máxima do valor das gratificações (rondando os 600€ mensais). Por fim, a letra C, que integra pagadores de banca, fiscais de banca, fiscais-chefes e chefes de partida, com uma experiência profissional superior a 5 anos, aufere a proporção máxima do valor das gorjetas (900-1200€ mensais). Esta última segmentação origina um conflito geracional entre os diversos profissionais mais velhos, que defendem o seu privilégio interno referindo que os principiantes não têm a mesma capacidade de realizar gratificações, e os mais jovens, que contestam este argumento, afirmando que as gratificações nos casinos não dependem da prestação de um bom atendimento, mas da circunstância fortuita representada pela sorte do jogador, ou seja, o jogador gratifica quando ganha.
Esta luta simbólica entre as diferentes categorias profissionais pela apropriação de uma maior parte das gratificações assenta, como tal, em noções de valor profissional que permitem legitimar ou contestar esta escala de privilégio interna. Este valor profissional, por sua vez, baseia-se em considerações relacionadas, por um lado, com as qualificações/competências requeridas para o exercício da respetiva função e, por outro, com as dificuldades inerentes à sua ocupação profissional. No entanto, os pagadores de banca, ao contrário das restantes categorias profissionais, vêm os seus argumentos legitimados pelo Estado, que promulga os diplomas legais, pela empresa, que procura a cooptação das equipas de trabalho mais centrais e de maior dimensão,4 e pelos sindicatos, que têm o objetivo de filiar a categoria profissional que lhes emprestaria maior poder negocial e capacidade de representação laboral. É através do reconhecimento destas instituições que os pagadores de banca legitimam a apropriação da maior parte das gratificações em relação a outras categorias profissionais.
Naturalmente, esta luta simbólica pelas gratificações resulta na fragmentação interna da classe trabalhadora, dado que “a comparação” ou o “conflito lateral substitui as potenciais tensões hierárquicas” (Sherman, 2007, p. 151). As gratificações, ao monopolizarem os interesses de classe destes profissionais, prejudicam duplamente a possibilidade de um movimento sindical unitário: por um lado, segmentam os trabalhadores dos casinos, por outro, apaziguam os conflitos laborais entre capital e trabalho, dado que conduzem à negligência na luta pelo salário e tornam a pressão associativa e sindical sobre o mesmo quase inexistente. Intimamente relacionada com esta última consequência para o movimento sindical, as gratificações oferecem uma outra vantagem para a empresa: o achatamento dos salários. Aliás, esta circunstância é amplamente admitida pelo Diretor de Recursos Humanos dos dois casinos analisados: “se não houvesse gratificações, teríamos que fazer uma revisão das grelhas salariais”.
As gratificações, ao libertarem a empresa de potenciais custos operacionais, terceirizando parte dos rendimentos destes trabalhadores para os clientes, responsabilizam os trabalhadores pelos seus próprios rendimentos. Assim, a existência das gratificações, qual “mecanismo informal compensatório” (Santos, 1985), contribui para a sobreexploração laboral, dado que permite à empresa pagar salários mais baixos, conservar uma força de trabalho fragmentada e dócil e um movimento sindical pouco reivindicativo. As gratificações - representando, nas palavras de Erik Olin Wright (1983, pp. 89-90), um “interesse imediato de classe”, isto é, um interesse que toma “o modo de produção como um dado”, não pondo em causa esse mesmo modo de produção - favorecem uma luta interna pelo privilégio entre as diferentes equipas de trabalho, mais do que um movimento sindical unitário capaz de antagonizar classes dominantes e classes dominadas.
A classe social nos casinos
Já decorre o ano de 2018 e encontro-me na sala de formação do casino onde, no ano anterior, havia exercido a função de contínuo. A sala do curso de pagador não é grande, mas, de alguma forma, consegue acomodar três roletas, três mesas de blackjack, uma de póquer, uma de baccarat e outra de banca francesa. Os formandos dividem-se em grupos pelas mesas, treinando os diversos movimentos, técnicas e procedimentos que foram aprendendo ao longo do último mês. Eu estou a fazer de pagador e, depois de observar as diversas fichas distribuídas pelo pano, “dou à bola”. Esta, inadvertidamente, sai disparada a grande velocidade, salta da roleta e golpeia um colega meu. Os meus colegas não perdoam e regozijam perante o meu infortúnio. Eu não consigo evitar e acompanho a gargalhada geral. De súbito, um dos formadores eleva a voz perante o alvoroço: “venham cá todos se fazem favor”. O silêncio foi imediato na perspetiva da presumível advertência. Aproximamo-nos com relutância. Para nossa surpresa, o formador anuncia:
Oiçam com atenção, quando um cliente vos dá dinheiro para trocar por fichas, vocês colocam o dinheiro na caixa à vossa direita. Quando um cliente vos gratifica, vocês colocam as fichas na caixa que se encontra à vossa esquerda. Se tiverem alguma dificuldade em recordar este procedimento pensem: a gratificação é à esquerda porque é do lado do coração.
Qual é, portanto, a natureza da relação entre salários e gratificações? Boaventura de Sousa Santos define Portugal como uma sociedade semiperiférica, marcada “por uma descoincidência articulada entre as relações de produção capitalista e as relações de reprodução social […], ou seja, as relações sociais que presidem aos modelos e às práticas dominantes do consumo” (1985, p. 872). A classe trabalhadora, nas sociedades semiperiféricas, depende, em grande medida, de diversos “mecanismos informais compensatórios”, que complementem os baixos salários da produção capitalista (Santos, 1985). A descoincidência entre as relações sociais de produção capitalista e as relações sociais de reprodução nos casinos é representada pela figura das gratificações. A menor dependência em relação ao salário, pela existência destes outros pagamentos, produz um “habitus de classe” bastante diferenciado daquele que caracteriza grande parte da classe trabalhadora fora do casino. Produz uma aproximação e uma aderência afetiva, material e simbólica à classe média, ao seu estilo de vida e às suas práticas de consumo. A posição de subordinação, ocupada por estes trabalhadores na relação entre capital e trabalho, contradiz o nível de reprodução social que lhes é consagrado em virtude da perceção das gratificações. Elas são um “mecanismo informal compensatório” (Santos, 1985) que garantem a estes profissionais um nível de vida superior ao que lhes estaria reservado caso os seus rendimentos fossem constituídos, exclusivamente, pelo salário. Desta forma, as gratificações permitem, a estes trabalhadores, invocar um imaginário de pertença à classe média sem que a sua condição de subalternidade no processo laboral conduza a projetos de emancipação social. Esta circunstância não é reflexo de uma presumível falsa consciência, expressão de uma contradição entre realidade objetiva e consciência de classe. É a própria realidade objetiva que permanentemente se contradiz a si própria. Se, por um lado, os profissionais do setor do jogo e, particularmente, os pagadores de banca, se encontram numa posição de subordinação no processo de trabalho e na hierarquia organizacional, onde a assimetria inerente à relação entre capital e trabalho se manifesta de forma mais evidente, por outro e através das gratificações, estes profissionais aproximam-se, fora do casino, de um nível de vida, normalmente, associado às práticas de consumo de classes sociais mais abastadas. É sintomático que os trabalhadores dos casinos afirmem pertencer à classe baixa no seu processo laboral e à classe média fora do casino. José, ex-pagador de banca, afirma:
Na classe baixa a achar que és alta. Estás na baixa com os olhos virados para cima, porque o dinheiro passa-te pela frente […]. Na minha opinião, encontras-te na classe baixa, mas a olhar para cima. Além de receberes mais do que os outros, também queres viver como uma classe mais alta. Não consegues perceber em que classe estás […].
Hugo, pagador de banca com cerca de 15 anos de experiência profissional, afirma: “dentro do casino somos da ‘plebe’, a ‘realeza’ é outra. Em termos ‘sociais’, ‘cá fora’, claramente média, média-alta”. Este testemunho encontra correspondência junto da grande generalidade dos entrevistados e é expressão, não só de uma fragmentação interna da classe trabalhadora, que se costuma segmentar internamente em classe média e classe baixa, consoante os valores e os estilos de vida a que os indivíduos aderem (Ortner, 2006), mas, mais especificamente, é reflexo de uma experiência contraditória de classe: classe baixa no trabalho e na relação imediata com o capital, classe média na reprodução social e nas práticas dominantes de consumo. Grupos sociais fragmentados produzem agentes sociais fragmentados (Narotzky, 2015). Subalternos no trabalho, estes profissionais orientam os seus desejos de mobilidade social para fora do universo laboral, procurando alcançar o estatuto de classe média através do consumo (Narotzky, 2015). Desta forma, as gratificações produzem, nas palavras de Narotzky (2015), uma espécie de trabalhadores “desclasados”, isto é, um conjunto de profissionais deslocados da sua posição de classe. Em concreto, produzem um “efeito de classe média” (Estanque, 2005, p. 127), ou seja, “um efeito de atracção que exprime o facto de a identificação subjectiva com a classe média tender a ampliar-se para lá dos limites (objectivos) dessa camada”. A diferença, neste caso, é que as gratificações possibilitam uma aproximação à classe média não meramente simbólica e afetiva mas, igualmente, material. É sintomático que os pagadores de banca empreguem uma “economia moral” (Thompson, 2008), diferenciada em relação aos salários e às gratificações. Segundo os entrevistados, o salário é sempre “curto”, “ridículo”, “baixo” e “injusto”, enquanto as gratificações são sempre “elevadas” e de valor “significativo”. No entanto, rapidamente percebemos que a diferença quantitativa do salário e das gratificações não justifica estas conceções. Mas as quantidades transformam-se em qualidades (Marx, 1990 [1867]). O dinheiro, na forma das gratificações, “assume novos significados” (Sherman, 2007, p. 151). O salário é sempre mobilizado para fazer referência às dificuldades quotidianas e às assimetrias sociais presentes na empresa e na sociedade. Ele é sempre associado ao “custo de vida” e “à renda”, ele não chega “até ao fim do mês” e “em comparação com outras profissões é injusto”. As gratificações, por outro lado, são instrumentalizadas para justificar os “pequenos luxos” e os esporádicos atos de “consumo conspícuo”. Elas “permitem-me ter uma vida melhor”, “mobilar a casa”, “pagá-la em três anos”, “fazer uma viagem a Itália”, “uma tatuagem”, “comprar uma mota” e “viver numa zona melhor”. Observamos como a “economia moral” do salário se distingue da que está associada às gratificações. Se o salário cinge estes profissionais à classe trabalhadora, ao contexto da relação assimétrica entre capital e trabalho, ao “reino da necessidade” (Marx, 1990 [1867]), as gratificações libertam estes profissionais para o “reino da liberdade” (Marx, 1990 [1867]), para a adesão afetiva à classe média, para o universo do consumo, onde podem usufruir de um estilo e nível de vida que, pelo seu salário, não lhes estaria reservado. A experiência de classe dos trabalhadores nos casinos em Portugal é, como tal, eminentemente contraditória, dado que a classe extravasa o processo de produção, invadindo, igualmente, os contextos de reprodução social (Naroztky, 1997).
Mas esta experiência contraditória de classe, que tende a contrapor o universo do trabalho ao universo do consumo, não se dissocia de uma “localização contraditória de classe” (Wright, 2013, p. 58) no próprio processo de trabalho. De facto, as práticas de oclusão social operacionalizadas pelos pagadores de banca, garantem o seu relativo privilégio ocupacional no interior da empresa em relação a outras categorias profissionais ao mesmo tempo que não desmentem a sua condição de subordinação estrutural nas relações assimétricas entre capital e trabalho. Assim, os pagadores de banca possuem um “carácter múltiplo de classe” (Wright, 2013, p. 58). Tal constatação não é sinónimo de ausência de consciência de classe. Como observámos pelos testemunhos transcritos acima, os trabalhadores conhecem bem a sua posição de subordinação no processo de trabalho. Este fenómeno sugere, ao invés, que estes profissionais estão situados, como refere Wright (2013), em mais do que uma classe em simultâneo, possuindo interesses característicos de duas classes distintas. Se, por um lado, são trabalhadores de base, enquadrados na relação assimétrica e tipicamente capitalista entre capital e trabalho, por outro, estão inseridos em determinadas “relações de apropriação” (Wright, 2013, p. 65) que reconfiguram as suas representações, mundividências, interesses e relações laborais. Não se trata, portanto, da mera contradição entre lugar de classe, isto é, relações estruturais de produção, e posição de classe, ou seja, relações conjunturais e ideológico-políticas (Poulantzas, 1975). É o próprio lugar que é contraditório. Se, por um lado, os pagadores de banca pertencem a uma classe de explorados, no âmbito das relações de propriedade capitalista assinaladas pela teoria marxista, por outro, caracterizam-se como exploradores (Estanque, 2009) em relação a outras categorias ocupacionais, dadas as práticas de oclusão social assinaladas por Weber (1968) e representadas, nos casinos, pelo clientelismo organizacional e pela apropriação da maior parte das gratificações. Estas formas de exploração, empregadas pelos pagadores de banca, não são, apesar de tudo, tipicamente capitalistas, mas, mais essencialmente, modelos de exploração baseados no status (Roemer, 1982a; 1982b; Costa, 1987). Ou seja, são formas de exploração que decorrem na “ausência de propriedade privada dos meios de produção” (Roemer, 1982b, p. 254) e na “ausência de apropriação de mais-valia no ponto da produção” (Roemer, 1982a, p. 40), assentando, fundamentalmente, na desigual e arbitrária repartição dos recursos (Parkin, 1979). São tipos de “desigualdade decorrente[s] da ocupação de determinados cargos e posições” (Costa, 1987, p. 651) e formas de exploração baseadas na posse de credenciais, qualificações e competências (Estanque, 2009; Wright, 2003).
Se, é certo, que estes profissionais não se envolvem em práticas de dominação direta contra outros trabalhadores do casino, elemento fundamental para a conceção de “lugar contraditório de classe”, tal como formulada por Wright (2003), por outro, a raridade das suas competências e credenciais, garante-lhes um relativo poder e controlo sobre o seu mercado de trabalho (Wright, 2003). O clientelismo permite-lhes combater a vulgarização do segredo da arte e a democratização do acesso à sua categoria profissional. Como refere Sallaz (2009, p. 3), “dealing remains a craft”. Ou, como assinala H. Lee Barnes (2002, p. 3), “each dealer has his own signature”. A diferença mais significativa, neste caso, é que os casinos não garantem a “lealdade” (Wright, 2003) dos seus trabalhadores centrais através de uma retribuição salarial mais elevada, mas através da legitimação das reivindicações dos pagadores de banca em relação às gratificações. São as gratificações e não os salários que funcionam, nos casinos, como “rendas de skills” ou “de lealdade” (Wright, 2003: 19). Desta forma, a empresa garante, em simultâneo, a sobreexploração e o consentimento dos pagadores de banca. Mas legitima, igualmente, as relações de exploração que estes estabelecem com os seus respetivos colegas. A exploração capitalista, tal como definida pela teoria marxista, é apenas uma forma de exploração (Costa, 1987; Roemer, 1982a). Como refere Parkin (1979), o fenómeno da exploração deve abranger práticas de apropriação de vantagens especiais pelo exercício de estratégias de exclusão e oclusão legalmente sancionadas e garantidas pelo Estado (Costa, 1987). Desta forma, a exploração ocorre tanto dentro das classes subordinadas quanto contra elas, desde que se observe a realização de práticas de oclusão social que visam monopolizar determinados recursos, posições e bens materiais e que permitam ganhar vantagem social e económica sobre um grupo de inferiores (Parkin, 1979). Não é a localização inicial da ação coletiva que determina se essa ação é exploradora, mas a localização dos agentes contra os quais essa ação é dirigida (Parkin, 1979).
A aderência ética, material e simbólica à classe média, provocada pela preponderância das gratificações nos rendimentos destes profissionais, tem como consequência natural a adoção, por parte dos pagadores de banca, de um “habitus de classe” assente no imaginário de classe média. Em particular, no permanente receio de desvalorização social e económica (Ortner, 2006). Este universo simbólico, permeado pelo “medo da queda”, é reforçado pelo facto de as gratificações, elementos que permitem a aderência destes profissionais à classe média, constituírem uma componente remuneratória imprevisível (variável), limitada (serão tanto menores quanto a mais pessoas distribuir), contingente (dependem da “generosidade” dos clientes) e precária (baseiam-se numa prática social informal). Assim, os “habitus de classe” destes profissionais são determinados, em grande medida, pela ameaça sempre latente de privação deste recurso escasso. Ameaça de tributação por parte do Estado, de ingerência por parte da empresa, de apropriação por parte de outras categorias profissionais, ou mesmo de extinção da prática de gratificar por parte dos jogadores. É este constante receio que caracteriza o habitus profissional do pagador de banca e que favorece o seu entrincheiramento profissional. É ele que empurra estes profissionais para a defesa do seu privilégio ocupacional e familiar. Assim, a classe baixa no universo laboral receia cair na classe baixa no universo do consumo.
Conclusão
O clientelismo e a distribuição assimétrica das gratificações influenciam, decisivamente, a experiência de classe dos trabalhadores dos casinos em Portugal. Os profissionais, posicionados de forma diferencial e, por vezes, antagónica nestes dois campos, agem de acordo com os seus próprios “interesses imediatos”. Por um lado, as “relações de produção” providenciam o enquadramento estrutural no trabalho e na sociedade, empurrando estes profissionais para as práticas de oclusão social analisadas neste artigo, fragmentando e desorganizando a classe trabalhadora. As “relações na produção”, por outro, reforçam estes efeitos, em consequência do poder estrutural (Wolf, 1999) que organiza os contextos onde decorre a agência dos grupos dominados. Estes, mobilizando os recursos colocados à sua disposição, manipulam as condições da sua própria subordinação, mas não a subvertem. Desta forma, tanto o clientelismo, quanto a apropriação das gratificações, apesar de operacionalizados pelos próprios trabalhadores, contribuem para a fragmentação interna da classe trabalhadora e, em consequência, para a reprodução das relações assimétricas entre capital e trabalho. Se, por um lado, são as relações e assimetrias sociais entre capital e trabalho que compelem estes profissionais para as práticas de oclusão social, por outro, estas práticas de oclusão social favorecem as relações e assimetrias sociais entre capital e trabalho que lhes deram origem. Simultaneamente, estas práticas, assentes na proteção das competências e credenciais dos pagadores de banca, asseguram relativos privilégios ocupacionais ao mesmo tempo que não desmentem a sua condição de subordinação estrutural, produzindo uma experiência e localização contraditória de classe. Ao elevar os rendimentos globais destes profissionais, as gratificações reforçam esta experiência e localização contraditória. Se os trabalhadores admitem a sua condição subordinada no campo laboral, em conjunto com as restantes categorias profissionais, reivindicam a sua adesão material e simbólica à classe média no universo do consumo. Se, para os trabalhadores, o clientelismo e as gratificações são recursos mobilizados para atenuar a sua situação de subordinação, para os grupos dominantes, são formas de assegurar uma vantagem decisiva na luta de classes, dado que permitem “controlar”, “cooptar”, “fragmentar” e “desorganizar” alguns dos seus elementos.