A pandemia da Covid-19 e o futuro: desafios para as ciências sociais
Existe um debate nas ciências sociais sobre se a verdade e a qualidade das instituições de uma dada sociedade se conhecem melhor em situações de normalidade, de funcionamento corrente, ou em situações excepcionais, de crise. Talvez os dois tipos de situação sejam igualmente indutores de conhecimento, mas certamente que nos permitem conhecer ou relevar coisas diferentes. Que potenciais conhecimentos decorrem da pandemia do coronavírus?
[Boaventura de Sousa Santos, 2020].
Em 2021, um ano depois do eclodir da pandemia Covid-19, o conselho de redação da Análise Social decidiu promover a submissão de artigos que, provenientes das diferentes áreas disciplinares da revista, explorassem criticamente os efeitos da pandemia nas múltiplas esferas da vida social. Interessava-nos, sobretudo, fomentar e acolher textos de reflexão crítica sobre os desafios que a pandemia do coronavírus colocou às ciências sociais e aos seus processos de produção de conhecimento. Num cenário em que a interdependência social das vidas humanas estava no cerne da questão, a Análise Social não poderia ficar alheia a este debate. Mais do que nunca, as ciências sociais têm também um papel central a desempenhar e múltiplos desafios a enfrentar. Que lições retiramos da pandemia Covid-19 em relação ao papel das ciências sociais e dos cientistas sociais na compreensão, prevenção e mitigação dos impactos da pandemia? Para respondermos a esta questão necessitávamos de refletir sobre os instrumentos de que dispomos para conhecer o mundo e atuar sobre o seu futuro.
Muitas foram as pistas que, à época, lançámos para abrir diferentes caminhos de reflexão e trilhos de investigação: de que instrumentos dispomos que nos permita olhar o passado histórico, compreender o “aqui e agora” da pandemia, mas também atuar sobre o futuro? Como é que devemos teorizar sobre esta pandemia? Bastará revisitarmos os saberes clássicos ou necessitamos de imaginar também novos conceitos? Será suficiente adaptar as ferramentas que já possuímos ou precisamos de reinventar as metodologias? Que questões éticas emergem quando investigamos em contextos de crise e vulnerabilidade?
Quisemos que este número temático se constituísse como um espaço de discussão e reflexão científica sobre a forma como a pandemia e as restrições associadas às políticas de contenção do vírus, tal como o recolhimento domiciliário, o distanciamento social e as restrições à mobilidade, afetaram os modos de fazer investigação, obrigando a uma readaptação de teorias, modelos, hipóteses, conceitos, instrumentos, metodologias, desenhos de pesquisa, técnicas de recolha de informação, estratégias analíticas e questões éticas. Em face destes desafios, que tantas vezes transformaram constrangimentos em verdadeiros exercícios de imaginação científico-social, encorajámos a publicação de artigos teóricos, metodológicos, de análise empírica ou mistos, que se propusessem refletir sobre estas e outras questões e que contribuíssem para pensar o mundo e o futuro pós-pandémico.
Investigar e atuar sobre a pandemia requereu, desde o início, a combinação de três vértices analíticos - a saúde, a economia e o bem-estar e coesão social (Gouveia e Almeida, 2022). Parecia, portanto, intuitivo o papel central das ciências sociais na apreensão da complexidade da pandemia e das suas consequências a curto, médio e longo prazo nas múltiplas áreas da vida social e nas diferentes franjas da sociedade. Contudo, este reconhecimento esteve longe de ser imediato, privilegiando-se numa fase inicial o conhecimento das ciências médicas e de saúde pública. Tal é confirmado por estudos bibliométricos que mapearam as principais tendências de produção científica, nomeadamente os temas mais abordados e os campos disciplinares mobilizados em artigos publicados em revistas de arbitragem científica (Aristovnik, Ravšelj e Umek, 2020; Ruiz-Real, Nievas-Soriano e Uribe-Toril, 2020). Na primeira metade de 2020, assistiu-se a um predomínio de artigos e citações na área das ciências da saúde e um lugar mais marginal das ciências sociais e humanas (Aristovnik, Ravšelj e Umek, 2020; Ruiz-Real, Nievas-Soriano e Uribe-Toril, 2020). Só na segunda metade de 2020, após esta explosão de artigos no domínio das ciências biomédicas, disparou o número de publicações nas ciências sociais. Dentro deste campo, também os temas de investigação foram variando consoante a evolução da pandemia. Se, numa fase mais inicial da pandemia, se destacaram as publicações sobre os impactos na saúde pública e capacidade dos serviços de saúde; higiene e segurança nos locais de trabalho; questões de governabilidade e gestão da pandemia; éticas da investigação; e alterações demográficas (Singh e Verma, 2022), com o decorrer da pandemia e a emergência de novas questões sociais, os tópicos de pesquisa deslocaram-se para questões de saúde mental, os problemas psicossociais, o desemprego, a crise económica e modelos de previsão, as medidas de distanciamento social e a qualidade de vida, mas também as consequências na área do ambiente (Roychowdhury, Bhanja, e Biswas, 2022).
Por outro lado, a necessidade de produzir e fazer circular conhecimento baseado nos dados empíricos, de forma mais democrática e célere, levou a que várias instituições e organizações científicas se mobilizassem para permitir o acesso livre a publicações outrora pagas, se organizassem chamadas temáticas sobre o Covid-19 nas diversas áreas, se eliminassem as taxas de pagamento para submissão de artigos sobre o tema, ou fosse dada prioridade à revisão de artigos sobre a pandemia (Maia, Justi e Santos, 2021). Além de desafiar tradições teóricas e metodológicas, a pandemia veio alterar as práticas académicas e editoriais, acelerando os protocolos da publicação científica e comunicação de ciência. Estas mudanças rápidas convidam-nos a exercitar um olhar crítico face à investigação em contextos de crise. A ciência feita “a quente” pode produzir (des)equilíbrios e desafiar o balanço entre a urgência em produzir resultados e a garantia da robustez científica e do rigor ético desse conhecimento.
Finalmente, gostaríamos de destacar a relevância de promover a literacia científica, refletindo sobre a forma como contribuímos para uma maior ligação entre a comunidade científica e a comunidade leiga (Maia et al., 2021). Num contexto de incerteza, insegurança e desconhecimento, os cientistas e a ciência estiveram nos holofotes mediáticos. Tiveram especial e imediato destaque os especialistas médicos da virologia, epidemiologia e saúde pública. Mais tarde, de forma mais marginal, os cientistas sociais foram igualmente chamados a intervir. Mas a ciência sofreu revezes e contestações. Na era da explosão das tecnologias de informação e da comunicação digital, assistimos a um bombardeamento de informação nos media e nas redes sociais, com narrativas e contra narrativas, falta de informação e desinformação, mensagens paradoxais, fake news, teorias da conspiração e movimentos anti ciência. Apesar destes fenómenos já serem conhecidos e proliferarem na esfera pública, encontraram um momentum no cenário pandémico, alimentando-se de novos temas, protagonistas e antagonistas, agendas, alvos e audiências (Butter e Knight, 2023). Tais desafios convocam-nos ao exercício de uma responsabilidade acrescida. Enquanto cientistas somos desafiados a promover uma maior consciência do valor da ciência e uma maior familiaridade com os procedimentos através dos quais o conhecimento científico é produzido, comunicado, mobilizado e aplicado, segundo standards de qualidade baseados no rigor e na ética. É esta uma responsabilidade que a Análise Social abraça e promove, com a consciência dos desafios que enfrentamos num cenário contemporâneo de múltiplas crises e profundos abalos. Este número temático emerge deste sentido de responsabilidade.
Breve apresentação dos artigos
Este número temático congrega oito artigos de autores provenientes de diferentes campos disciplinares das ciências sociais, mas também de diversas instituições e países, oferecendo uma grande riqueza científica com contributos que intersetam diferentes paradigmas, teorias, metodologias, dimensões analíticas e preocupações sociais face à crise pandémica.
Inaugura-se com o artigo “Sob o espectro da crise. A história na era planetária”. Marcos Cardão discute em que medida a pandemia e a ideia de crise a ela associada colocam vários desafios às formas de pensar e escrever a história, obrigando a uma problematização dos pressupostos, metodologias e práticas no interior da disciplina, questionamentos que voltaram a ganhar visibilidade com os debates sobre o Antropoceno.
No artigo de Marta Fischer, Caroline Rosaneli, Gerson Martins sobre a perceção da população mais velha face ao futuro e aos impactos da pandemia, analisam-se as dinâmicas de inclusão e exclusão das pessoas idosas durante a crise pandémica, bem como as potencialidades de novas ferramentas metodológicas com recurso às plataformas digitais.
A partir de uma leitura das teorias críticas decoloniais, Rogério Medeiros e Bruno Lira demonstram as potencialidades heurísticas da adoção de uma metodologia decolonial enquanto ferramenta teórica-analítica para compreender a realidade pandémica brasileira pautada por fortes desigualdades intersecionais que foram agravadas com a Covid-19.
Com base nas Teorias das Práticas Sociais (TPS), Rebeca Roysen, Rafael Machado e Maycon Noremberg Schubert elaboram um ensaio sobre as dinâmicas de mudança, persistência e normalização das práticas quotidianas em contexto pandémico, nomeadamente as linhas de continuidade e mudança face a práticas mais sustentáveis.
Adotando uma perspetiva crítica face às teorias da comunicação estratégica e de marketing digital, em geral, Pedro Costa discute a forma como a pandemia Covid-19 evidenciou a urgência de pensar e propor uma sociologia da captura da atenção, a partir de uma reflexão epistémica e metodológica sobre o estudo da atenção capturada.
Situado na interseção das ciências sociais e das ciências humanas, o artigo de Liana Castro e Rafaela Truguilho debruça-se sobre as potencialidades metodológicas da realização de entrevistas com recurso a plataformas digitais durante o confinamento pandémico, refletindo sobre a construção da relação dialógica entre os investigadores e os entrevistados, mediada por aparatos tecnológicos.
Mobilizando a perspectiva teórica da Análise Institucional incidindo nos efeitos das bio-tanato-necropolíticas, Rafaella Cesario e Lúcia Pulino mostram como a pandemia veio pôr a nu as profundas desigualdades sociais a partir de três recortes na sociedade brasileira: a distribuição desigual de morte e vida; a distribuição desigual do abandono; e a distribuição desigual da imunização.
Encerramos o número temático com uma leitura antropológica de Chiara Pussetti no âmbito da sua investigação etnográfica sobre os impactos da pandemia na relação das pessoas com a estética e com o corpo, explorando a influência dos discursos mediáticos nas práticas de autocuidado e de aprimoramento estético e discutindo o modo como esta gestão da relação com a aparência física permitiu lidar com a inevitabilidade e a falta de controlo em relação à pandemia.