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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.246 Lisboa mar. 2023  Epub 31-Mar-2023

https://doi.org/10.31447/as00032573.2023246.05 

Artigos

Por uma transição das práticas sociais: de Bourdieu à COVID-19.

Towards a transition of social practices: from Bourdieu to COVID-19.

Rebeca Roysen1 
http://orcid.org/0000-0003-4368-9218

Rafael Carvalho Machado2 
http://orcid.org/0000-0002-1498-9222

Maycon Noremberg Schubert3 
http://orcid.org/0000-0003-3699-525X

1. Centro para Religião, Economia e Política, Universidade da Basileia. Nadelberg 10 - 4051 Basileia, Suíça. rebeca.roysen@unibas.ch.

2. Universidade Positivo. Rua Professor Pedro Viriato Parigot de Souza, 5300 - CEP 81280-330 Curitiba, PR, Brasil. rafael.machado@gmail.com

3. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), UFRGS - Campus do Vale. Av. Bento Gonçalves, 9500, Prédio 43311 - CEP 91509-900 Porto Alegre, RS, Brasil. maycon.schubert@gmail.com


Resumo

A pandemia de Covid-19 impôs uma mudança radical nas práticas quotidianas. Algumas dessas novas práticas destacaram-se, por reduzirem o impacto ambiental da atividade humana, e muitos teóricos viram-nas como uma oportunidade para a construção de “novas normalidades”, mais justas e sustentáveis. Percebeu-se a capacidade das sociedades contemporâneas de realizarem mudanças radicais nas práticas, quando os esforços e recursos são orquestrados nessa direção. No entanto, após três anos desde o início da pandemia vemos um gradual retorno à normalidade. Este artigo indica como as teorias das práticas sociais nos podem ajudar a entender a estabilidade das práticas sociais em trajetórias insustentáveis e as possibilidades de transformação na direção da sustentabilidade.

Palavras-chave: práticas sociais; Covid-19; transições para a sustentabilidade

Abstract

The Covid-19 pandemic imposed a radical change in daily practices. Some of these new practices attracted attention for reducing the environmental impact of human activity, and many theorists saw this as an opportunity to build “new normalities” that are more just and sustainable. Contemporary societies have the capacity to make radical changes in practices, when the efforts and resources are orchestrated in that direction. However, three years after the start of the pandemic we see a gradual return to normality. This article indicates how social practice theories can help us understand the stability of social practices on unsustainable trajectories and their possibilities for transformation towards sustainability.

Keywords: social practices; Covid-19; sustainability transitions

Introdução

Sociedades em todo o mundo viveram uma drástica mudança nas suas práticas sociais, causada pela necessidade de distanciamento social durante a pandemia de Covid-19. A forma como as pessoas fazem compras, higienizam os produtos, trabalham e se locomovem mudou. Pessoas ao redor do mundo precisaram de reorganizar as suas rotinas para participarem nessas novas práticas. Novos materiais entraram no quotidiano, da máscara às ferramentas de videoconferência. Novas competências foram desenvolvidas: as crianças tiveram de aprender a ter aulas de forma online, os adultos precisaram de adquirir os hábitos de usar máscaras e lavar as mãos com mais frequência, e muitos foram obrigados a modificar as suas atividades económicas para se adaptarem a esse novo contexto. Novos significados emergiram sobre os conceitos de saúde, bem-estar, interação social etc. Quais dessas mudanças são temporárias e quais persistirão, ainda é difícil dizer.

Essa crise convoca os cientistas sociais a refletirem sobre quais as práticas sociais que poderiam ser transformadas de forma permanente, para diminuirmos, enquanto sociedade, o nosso impacto negativo no clima, no meio ambiente e na saúde. Por mais que as políticas que visam a ecoeficiência e a modernização ecológica sejam importantes, as transformações causadas pela pandemia deixaram evidente o impacto das nossas práticas quotidianas no meio ambiente e a necessidade de efetuarmos mudanças duradouras na forma como vivemos e no que consideramos “normal”. A mudança cultural é indissociável da mudança tecnológica, e as crises tornam mais visível a possibilidade de mudanças radicais nas práticas quotidianas, além de abrirem uma grande janela de oportunidade para construirmos uma “nova normalidade”, mais sustentável e regenerativa.

As teorias das práticas sociais (TPS) têm vindo a estudar as transformações e os processos de normalização de novas práticas. Essas teorias podem, portanto, oferecer insights importantes para essa reflexão sobre a transição intencional das práticas sociais. Mas o que são as práticas sociais? Empiricamente, as práticas são a forma como as pessoas cozinham, limpam, compram, se locomovem, armazenam os alimentos e regulam a temperatura dos espaços construídos. São comportamentos habituais e “invisíveis”, realizados de forma “automática” e conectados com as infraestruturas e tecnologias disponíveis. Analiticamente, as práticas sociais apresentam-se na forma de conjuntos de “dizeres” e “fazeres”, fundamentalmente relacionais e regularmente contínuos, imersos em sociomaterialidades contextuais nas quais diferentes atores se envolvem (Nicolini, 2012; Schatzki, 1996; Jonas e Littig, 2017).

O objetivo central deste artigo é apresentar as TPS de forma introdutória e histórica, indicando de que forma tais abordagens nos podem ajudar a vislumbrar e construir uma nova normalidade pós-Covid-19. Na secção seguinte, introduzimos as TPS no contexto da “virada praxiológica” nas ciências humanas. Apresentamos ao leitor as suas raízes teóricas, cujos autores fundadores são Bourdieu e Giddens, e a segunda geração de teóricos das práticas, especialmente a partir dos trabalhos de Schatzki, Reckwitz, Shove e Nicolini. Em seguida, discutimos sobre a inércia e a estabilidade na trajetória das práticas sociais. Posteriormente, analisamos como o surgimento do novo coronavírus quebra as rotinas estabilizadas, reconfigurando os arranjos materiais e levando à reconfiguração de práticas sociais e seus consequentes impactos ambientais. Tal análise conduz-nos à reflexão sobre as possibilidades concretas de transições nas práticas. Finalmente, na última secção, sugerimos de que forma os estudos futuros podem utilizar a perspetiva das TPS para iluminar possíveis caminhos para uma transição intencional para a sustentabilidade.

A virada praxiológica

As teorias das práticas sociais (TPS) apresentam-se dentro da chamada “virada praxiológica” das ciências humanas, especialmente a partir de meados do século XX, tendo como marco teórico as contribuições vindas a partir de Heidegger, com a sua analítica existencial, e de Wittgenstein, com a sua gramática pragmática (Peters, 2020). Reckwitz (2002) situa esse debate a partir do que ele classifica como “virada culturalista”. De todo o modo, autores como Schatzki (2001) e Warde (2013) argumentam que as primeiras contribuições teóricas foram levadas a termo por Pierre Bourdieu e por Anthony Giddens, sendo esses considerados os autores da primeira geração da Teoria das Práticas Sociais.

Raízes teóricas

Os dois conceitos centrais para as TPS, advindos das contribuições da chamada primeira geração, são: “sentido prático” e “consciência prática”. O primeiro advém dos estudos de Pierre Bourdieu, especialmente através do conceito de habitus. Segundo Bourdieu, desde a infância, as condições materiais de existência, os padrões de comportamento, as experiências subjetivas, a competência no uso de certos objetos e as demais características de uma condição de classe ou de uma cultura produzem habitus, ou seja, padrões e disposições incorporadas pelos indivíduos que são duráveis e que organizam as suas práticas e as representações (Bourdieu, 2013). Uma vez formado, o habitus tende a reproduzir as estruturas objetivas do qual é produto, garantindo, assim, a reprodução das práticas ao longo do tempo.

O conceito de habitus em Bourdieu enfatiza o poder de reprodução das práticas sociais. O habitus, adquirido por meio de determinadas condições de existência, torna-se a base da perceção e apreciação de toda a experiência subsequente, definindo o que é visto como possível ou impossível, como razoável ou escandaloso. Através do habitus, a ordem estabelecida naturaliza a sua arbitrariedade numa aderência entre as estruturas objetivas e as estruturas mentais. O mundo torna-se autoevidente e natural. A história torna-se natureza. Essa experiência é chamada de doxa: aquilo que é inquestionável. Nesse campo, a ordem cosmológica e política é percebida não como arbitrária - não como uma ordem possível entre outras -, mas como natural, contribuindo para a reprodução da ordem social (Bourdieu, 2013).

Mais de uma década depois de Bourdieu publicar a sua Esquisse d’une théorie de la pratique (1972), Giddens, na sua teoria da estruturação (1984), afirma que as ciências sociais não devem focar-se nem na experiência do ator individual nem em totalidades societárias, mas sim nas práticas sociais ordenadas pelo tempo e pelo espaço. Porque é por meio das suas atividades quotidianas, guiadas pela “consciência prática”, que os agentes reproduzem as condições que tornam essas atividades possíveis, gerando aquilo a que ele chamou “dualidade da estrutura” (Giddens, 2007).

Segundo Giddens, os agentes possuem reflexividade. Mas a ação proposital não é um agregado de intenções, razões e motivos separados. A reflexividade dá-se de uma forma mais fluida, como um contínuo monitoramento da ação que os indivíduos demonstram e esperam que os outros demonstrem. Todo esse conhecimento sobre como fluir na rotina da vida social é um conhecimento prático. Os indivíduos questionam as intenções e as razões, quando alguma conduta é particularmente confusa. Os motivos guiam a ação apenas em situações não usuais, em que há uma quebra da rotina. Fora isso, os motivos tendem a oferecer planos ou programas mais amplos, dentro dos quais um conjunto de condutas é representado. Muito da nossa conduta diária não é diretamente motivado (Giddens, 2007).

A durée da vida quotidiana ocorre como um fluxo de ações intencionais que têm consequências não intencionais, e que podem sistematicamente retroalimentar as condições para ações futuras (os chamados circuitos de reprodução). O resultado de uma série de ações racionais, realizadas separadamente por atores individuais, pode ser irracional para todos eles (Giddens, 2007). Grande parte dos impactos ambientais das sociedades contemporâneas encaixa-se nesse efeito. Quando um indivíduo pega no carro para ir trabalhar, fá-lo de forma intencional. Mas quando milhares de indivíduos fazem a mesma coisa, gerando poluição urbana, trata-se de um resultado não intencional. Circuitos de reprodução são essas “trilhas” de processos que retroalimentam a sua fonte. Dessa forma, o estudo da vida quotidiana é integral à análise da reprodução de práticas institucionalizadas. Ou seja, as práticas que geram impactos ambientais negativos reproduzem-se porque existem pessoas a contribuir para que elas continuem a existir.

As ideias produzidas pelos teóricos “profissionais” tendem a retroalimentar a vida social. Os agentes podem tentar, de forma reflexiva, controlar as condições de reprodução dos sistemas sociais, seja para manter as coisas como estão ou para mudá-las (Giddens, 2007). Esse é um fenómeno de grande importância no mundo contemporâneo e pode ser exemplificado pelos movimentos sociais (Crossley, 2003) e pelas inovações de base, nos quais os agentes procuram regular as suas práticas intencionalmente (Roysen e Mertens, 2019).

Essa possibilidade de que os agentes reflitam e controlem as condições de reprodução das práticas também pode ser encontrada em Bourdieu, especialmente naquilo a que ele chamou “efeito de histerese”, isto é, a ruptura na cumplicidade ontológica entre o habitus e as condições atuais das práticas. Segundo Bourdieu, o habitus tem limites de adaptação ao contexto em que a prática é desempenhada. Ou seja, existe a possibilidade de um habitus mal adaptado - especialmente quando a sua transformação não acompanha o campo em que opera. Esta situação é típica de crises e conflitos sincronizados num campo, o que leva à sensação de “viver num tempo diferente” (Graham, 2020). Particularmente, as crises capazes de fraturar o poder dos dominantes no campo tendem a colocar em suspenso a doxa e, assim, promover mudanças transformadoras lideradas por “profetas” responsáveis por defender uma visão do mundo heterodoxa. Este é o caso de guerras que precedem revoluções políticas que culminaram em revoluções simbólicas (Fowler, 2020). Bourdieu argumenta que a transformação material não é suficiente para provocar mudanças sociais amplas nas práticas sociais, sendo necessário o surgimento de uma ou mais figuras “proféticas” que promovam uma nova visão imaginativa do mundo (Fowler, 2020).

Segunda geração de teóricos das práticas

No avançar dos estudos, há pelo menos quatro abordagens mais contemporâneas das TPS, sendo que todas consideram as “práticas” como a unidade de análise. Além disso, é importante ressaltar que as práticas não podem ser reduzidas aos indivíduos, atomisticamente, pois são propriedades emergentes. Ou seja, os indivíduos atuam sobre as práticas, influenciando-as, mas tais práticas não podem ser reduzidas a estas ações.

Destacam-se aqui duas dimensões importantes que estavam ausentes, ou pelo menos aparentavam pouca relevância, nas abordagens de Giddens e Bourdieu: 1) as sociomaterialidades contextuais, nas quais diferentes atores se envolvem e as práticas sociais se conectam; e 2) as corporalidades envolvidas no decorrer da performatividade da ação. Essas duas dimensões são elementares para compreender as práticas sociais na contemporaneidade.

De todo o modo, dentro da Teoria das Prática Sociais, na sua segunda geração, há diferentes abordagens. A primeira abordagem que apresentamos aqui é a de Schatzki, considerado como o precursor da segunda geração de teóricos das práticas sociais (Warde, 2005). Schatzki (2013) define as estruturas elementares do que vem a ser uma prática social a partir de três mecanismos que conectam os “dizeres” e os “fazeres”: 1) entendimentos práticos e gerais (saber que ações corporais realizar em cada situação), 2) regras e 3) “estrutura teleoafetiva” (leque de projetos e fins prescritos ou aceitáveis).

Para Schatzki (2002), os três elementos caracterizam-se da seguinte forma:

  1. O “entendimento prático” é no que se encontra o sentido mais elementar da inteligibilidade prática, ou seja, é o “saber-fazer” alguma coisa, envolvendo performances apropriadas em contextos sob os quais determinados atos são reconhecíveis e explicáveis. De forma mais complexa, os “entendimentos gerais” possuem uma maior tenacidade, apresentando-se de forma ancorada a determinados valores que influenciam outras ações e práticas sociais.

  2. As “regras” são formulações interpostas dentro da vida social de forma propositada, orientando um determinado curso de atividades, tipicamente por aqueles com autoridade para impô-las.1

  3. Por fim, as “estruturas teleoafetivas” manifestam-se nas práticas sociais por meio dos fins e das motivações que orientam os “dizeres” e os “fazeres” das ações.

Esse último elemento é o mais importante para a fundamentação das práticas sociais, pois define quais os projetos que são levados adiante e os fins a que se destinam, selecionando as tarefas que os compõem, ou seja, é um conjunto ordenado, hierarquizado e normatizado de fins, projetos e tarefas.2

Ademais, Schatzki (2002) destaca a formação de ordens sociais, ou seja, arranjos de pessoas, artefactos, organismos e coisas que se relacionam, ocupam posições e possuem significados. As práticas estão conectadas a esses arranjos. Ao fim e ao cabo, a dinâmica entre os arranjos e as práticas estabelece o que o autor define como sendo um “conjunto arranjado de práticas”, a partir do qual os fenómenos sociais fluem. A mudança social consiste, para Schatzki, em mudanças nesses conjuntos de elementos ligados entre si (Schatzki, 2015).

A segunda abordagem em destaque é a de Reckwitz, para quem as práticas são socialmente estruturadas pelo processo de rotinização, através de uma temporalidade que ocorre sequencial e repetidamente. As práticas são, portanto, a forma rotinizada como os corpos se movem, os objetos são manuseados, as coisas são descritas e o mundo é compreendido (Reckwitz, 2002). Basicamente, para o autor, ordem social é “reprodução social”. Além disso, o autor apresenta uma hierarquia entre práticas sociais de dois tipos: 1) práticas como entidades, que são práticas consolidadas, reconhecidas e dotadas de um padrão de reprodução amplo, como, por exemplo, a prática de conduzir automóveis; e 2) práticas como performances, que são práticas mais elementares - a base para a formação das “práticas como entidades” -, cujos elementos de reprodutibilidade não são constantes ou consolidados, tais como pensar, descrever coisas, imaginar etc.; são práticas cujos sentidos se vão constituindo no decorrer das performances em si, ou seja, são flexíveis e efémeras. Schatzki (1996) classifica-as como sendo “práticas integrativas” e “práticas dispersas”, respectivamente. Todavia, a classificação dada por Schatzki parte das estruturas elementares que constituem uma prática social, diferentemente da de Reckwitz (2002), que baseia a sua análise na rotinização temporal e espacial das práticas.

A terceira abordagem que aqui ressaltamos é a de Shove, Pantzar e Watson (2012), que definem as práticas sociais a partir de três tipos de elementos: 1) materiais, incluindo coisas, tecnologias, entidades físicas tangíveis e objetos; 2) competências, que englobam habilidades, saber-fazer e técnicas; e 3) significados, o que inclui significados simbólicos, ideias e aspirações. As práticas seriam, então, conexões entre elementos desses três tipos. Os autores argumentam que a inovação na prática é um processo de ligar elementos novos a elementos existentes. Materiais e formas de competências tendem a “migrar” de práticas existentes para constituir novas práticas, e novas estratégias e soluções no desenvolvimento de produtos ou serviços só se sustentam quando são integradas no fluxo da vida quotidiana (Shove, Pantzar e Watson, 2012). Shove também distingue as práticas entre “práticas como entidade”, sobre as quais podemos falar (conduzir, tomar banho, lavar roupa), e “práticas como performances” (momentos de ação). Práticas como performance são necessariamente localizadas: instantes situados de integração dos elementos. As práticas como entidades só existem e persistem por causa das inúmeras performances realizadas pelos indivíduos (Shove, Pantzar e Watson, 2012).

Nicolini (2012) apresenta a quarta abordagem que se destaca neste debate. O autor parte das mesmas premissas que Schatzki (2002), porém caracteriza as práticas sociais, além de integrativas e dispersas, como sendo de duas modalidades, a saber: “zoom in” e “zoom out”. A primeira corresponderia às práticas que se constituem de forma complementar. Por exemplo, a prática alimentar é composta pelas seguintes práticas: comprar, preparar, comer e descartar os restos/sobras da comida. Já a segunda corresponderia às práticas que se conectam em torno de uma prática já composta. Por exemplo, a prática alimentar relaciona-se com a prática de trabalhar ou de exercitar-se. Tais definições também podem ser percebidas noutros autores. Warde (2013) classifica a prática de comer como uma “prática composta”, constituída por diferentes práticas integrativas (plantar, comprar, preparar, comer, desperdiçar etc.). Shove, Pantzar e Watson (2012) analisam as diferentes conexões entre as práticas sociais, classificando-as como “co-dependentes”, quando há dependência entre elas, ou “co-existentes”, quando há relação entre as práticas, sem que haja dependência direta. Schatzki (2002) menciona a inter-relação entre os conjuntos arranjados de práticas, naquilo a que chama “constelações de conjuntos arranjados de práticas sociais” (Schatzki, 2015). Essas conexões entre práticas sociais contribuem para a inércia e a estabilidade nas suas trajetórias, como veremos na próxima secção.

Um ponto de destaque sobre a segunda geração de teóricos da Teoria das Práticas Sociais é a ausência de análises específicas sobre as relações de poder. A primeira geração de teóricos propôs perspetivas analíticas sobre essa questão. Giddens (2013) interpreta o poder como um recurso, que pode ser tanto alocativo (distribuição de bens materiais), quanto autoritário (comando sobre outras pessoas). Já Bourdieu (2011) relaciona o poder com os diferentes capitais de que os indivíduos podem dispor dependendo do seu habitus, como o cultural, o económico, o social e o simbólico. Para Barnes (2001), falar das práticas é falar de poder, e cada performance que compõe as práticas é moldada por relações de poder, que estão dispersas pelo contexto social. Ademais, as relações de poder nunca resultam somente de um distinto e específico momento da prática, mas são efeitos de ordenação e combinação de inúmeros momentos da prática. Isso explicaria, segundo Watson (2016), o fato de os teóricos da segunda geração nunca se preocuparam em dar ênfase às relações de poder enquanto uma entidade à parte. Porém, o próprio Watson (2016) alega que o poder é uma dimensão analítica importante de ser tratada, e que a Teoria das Práticas Sociais, na sua segunda geração, deveria ser capaz de oferecer algo. Como proposições, o autor destaca o conceito de governamentalidade de Foucault (2017), que expressaria a capacidade de controlo das populações, por meio de técnicas, procedimentos e cálculos, e o conceito de redes em Latour (1984), que possibilitaria demonstrar como determinadas práticas sociais se reproduzem, modificam e conectam a outras. Tais conceitos, segundo Watson (2016), apresentam afinidades com a teoria das práticas sociais - excetuando algumas diferenças epistemológicas -, e dariam condições de analisar as relações de poder, especialmente em fenómenos sociais de larga escala, como as políticas públicas, por exemplo.

Trajetória e estabilidade das práticas

As práticas sociais, ao mesmo tempo que permitem reconfigurações por meio de novos elos entre os seus elementos e pela criação de novos conjuntos de práticas, também apresentam inércia na sua trajetória, como enfatizado pelo conceito de habitus de Bourdieu. Nas sociedades ocidentais, os adultos de hoje, que nasceram após o final da Segunda Guerra Mundial, são um produto da sociedade de consumo: uma sociedade de corpos formados e acostumados à conveniência e às facilidades trazidas pelas novidades eletrodomésticas e eletroeletrónicas. Corpos que se afastam cada vez mais da vida comunitária e se tornam cada vez mais individualizados, procurando a felicidade por meio da aquisição e fruição de bens materiais e formas de evasão reais e imaginárias (Friedmann, 2001). As trajetórias das práticas tendem para a inércia de um habitus individualizado e consumidor. Mesmo a criação de produtos mais eficientes em termos de uso de energia é compensada pelo aumento no número de equipamentos utilizados, mantendo um crescimento no padrão de uso de recursos. A mudança intencional nas formas de vida na direção de um menor uso de recursos, visionada pelo movimento da simplicidade voluntária ou por movimentos comunitaristas, encontra fortes barreiras em habitus produzidos por uma sociedade capitalista em expansão (Roysen, 2018a, 2018b).

A prática é, na maior parte das vezes, invisível para o praticante. Estar envolvido numa prática é estar imerso num contexto, no qual coisas, pessoas, ações e opções já importam de maneiras específicas. Essa imersão no engajamento com o mundo é o nosso modo primário de ação (Sandberg e Tsoukas, 2011). Os nexos de práticas, complexos formados pelas condições materiais que suportam as práticas, pelas lógicas práticas de ação subjetiva, e as inter-relações entre as práticas (Hui, Schatzki e Shove, 2017) abrigam a força de estabilidade das práticas sociais. A dependência das sociedades de hoje na automobilidade, por exemplo, pode ser compreendida como um arranjo em que infraestruturas (ruas, estradas, estruturas urbanas), competências (saber conduzir um automóvel e não considerar outros meios de locomoção), valores simbólicos relacionados com o uso do automóvel (liberdade, status social) e a co-dependência entre práticas diversas (como fazer compras, ir ao trabalho ou à escola) geram uma estabilidade na prática, difícil de ser quebrada (Shove, Watson e Spurling, 2015).

Esses dois processos descritos acima - de incorporação das práticas pelos praticantes e de conexões e co-dependências entre os conjuntos arranjados de práticas - geram processos de estabilização das práticas em trajetórias que são, muitas vezes, insustentáveis. Estudos que usam as TPS têm explorado os processos de estabilização das práticas sociais e o modo como certas convenções sobre cozinhar, limpar, viajar etc. se tornam “normais”. Shove (2003) explorou a “normalização” do ar condicionado e os seus impactos na arquitetura (casas construídas para o ar condicionado) e na moda (o fato a tornar-se a roupa padrão para a temperatura ambiente controlada). Para Shove (2003), os verdadeiros riscos ambientais são a convergência no que as pessoas aceitam como formas normais de vida e uma demanda insustentável pelos recursos dos quais esses estilos de vida dependem. Também nesse sentido, Allen et al. (2017) investigam como a normalização do uso de energia de origem fóssil constituiu uma espécie de “linguagem” que impõe barreiras para a transição para energias de origem renovável: desde as unidades para medir a energia de uma fonte (joules, quilowatt-hora) até aos próprios conceitos de fonte de energia (óleo, gás, vento) e portador de energia (gasolina, baterias ou calor), reifica-se uma forma de uso de energia para os mais variados casos numa sociedade (para veículos, aquecimento doméstico ou alimentação). Também no setor da energia, Labanca e Bertoldi (2018) identificam, por meio das TPS, a forma como os modelos de causa e efeito assumidos na adoção de tecnologias (como a redução do preço em painéis solares ou a difusão de informação acerca da microgeração de energia) têm impacto reduzido no comportamento individual, que segue uma racionalidade prática constituída pelo arranjo material e pelos entendimentos do sujeito. Os autores argumentam sobre a necessidade de complementar as políticas públicas de redução de consumo e desperdício de energia com abordagens qualitativas, ou seja, que compreendam como usar melhor a energia, ao invés de políticas para usar menos.

Com a pandemia de Covid-19, passámos a viver um momento de crise, em que condutas que antes eram “normais”, reproduzidas de forma habitual e rotineira, passaram a ser questionadas. A interrupção da mobilidade causada pelo distanciamento social, por exemplo, evidenciou o impacto que as práticas dominantes de mobilidade geram no meio ambiente. Diversas práticas nas quais os indivíduos participavam de forma rotineira precisaram de ser subitamente reconfiguradas e tornaram-se alvo de reflexão, suspendendo, assim, a doxa. Esta crise abriu, portanto, uma oportunidade para que práticas antes reproduzidas de forma automática, na esfera da consciência prática, fossem trazidas para a esfera do discurso crítico, abrindo espaço para que práticas ambientalmente negativas fossem intencionalmente reconfiguradas. No entanto, três anos após o início da pandemia, o que vemos é um gradual retorno à normalidade. A possibilidade de uma transformação das práticas apenas como resposta à crise não implicou a revolução simbólica característica de momentos de histerese, embora as transformações em resposta à crise sejam uma condição para a revolução simbólica. Os efeitos da pandemia nas práticas sociais e as suas implicações para uma transição intencional para a sustentabilidade serão discutidas nas secções seguintes.

A pandemia e as reconfigurações das práticas

Se havia dúvida de que não há como escapar às reações da natureza frente à nossa presença e interferência sobre ela, após esta pandemia acreditamos já não haver espaço para tal questionamento. As entidades não humanas ganham destaque nas ciências sociais, especialmente através do pensamento latouriano de que jamais fomos modernos e de que as entidades que importam ao mundo e à vida social não são apenas humanas (Latour, 2012). As entidades não humanas, e dentre elas os vírus, possuem agência sobre o mundo social, tão impactante quanto a própria agência humana. Como se percebe, o novo coronavírus passa a fazer parte da composição dos conjuntos e constelações de práticas arranjadas. Essa “nova” entidade altera a composição desses conjuntos, o que leva a novas formas de conexão entre as práticas e os arranjos.

Os protocolos de contenção do vírus, como o distanciamento social, por exemplo, são novas práticas sociais que emergem decorrentes dessa nova entidade. Na crise causada pela pandemia de Covid-19, vimos novas práticas emergirem a partir da conexão entre elementos materiais (máscaras, álcool-gel, luvas, internet, aplicações para compras online, ferramentas de videoconferência etc.), competências (aprender novos procedimentos para higienizar as compras, para trabalhar e aprender de forma online etc.) e significados (novas imagens relacionadas com o conceito de saúde, ciência, relações sociais etc.). Essas novas práticas foram delineadas de acordo com os estudos científicos sobre o vírus e padronizadas em todo o planeta por meio da Organização Mundial de Saúde e, nacionalmente, pelos órgãos governamentais de cada país. Precisaram também de ser integradas no tecido da vida quotidiana, e novas formas de sequência e sincronização precisaram de ser desenvolvidas dentro dos lares, para conciliar estudo, trabalho externo, trabalho doméstico e lazer dentro do domicílio. Ou seja, mudanças em determinadas práticas ou nos seus elementos geram reconfigurações noutras práticas coexistentes.

A rotina, entendida como um processo em que as práticas recorrentemente são reproduzidas, com pouca alteração na sua estrutura teleoafetiva - “motivações” e “fins” -, parece ser o locus em que essa sincronização das práticas da vida quotidiana se estabelece. Giddens (2007) argumenta que a rotina confere segurança ontológica aos indivíduos. Quebrar a rotina, como a pandemia fez, leva a uma fragilização do quotidiano dos indivíduos, a uma perda da segurança ontológica que os deixa mais suscetíveis a problemas psicológicos e sociais.

Para Southerton (2012), a rotina é onde as temporalidades são forjadas, pelas demandas que as práticas estabelecem pelo uso do tempo, pelas escolhas que os indivíduos fazem ao decidirem, por exemplo, como “gastar” o tempo com uma ou outra prática social, bem como pelo ritmo temporal do contexto em que estão inseridos (trabalho, família, desporto etc). Com a pandemia, o tempo que uma determinada prática ocupava no quotidiano foi alterado, as rotinas precisaram de ser reinventadas, e as práticas foram reconfiguradas de acordo com os novos significados concedidos ao corpo, à saúde e aos laços sociais.

Logo no início da pandemia, em maio de 2020, investigadores da Sustainable Consumption Institute da Universidade de Manchester publicaram um relatório fazendo uma primeira análise das transformações das práticas causadas pela pandemia de Covid-19 e os seus impactos no consumo. Segundo eles (Boons et al., 2020), o distanciamento social causou ruturas na normalidade das vidas quotidianas, tenha sido pela abstenção, alteração ou substituição de práticas sociais. Essas mudanças nas práticas deram-se, principalmente, em áreas como: higiene; provisão de alimentos; mobilidade; compras; parcimónia nos gastos; uso de água e jardinagem; trabalho, coordenação e cuidados domésticos. Muitas dessas práticas são responsáveis pelo atual nível de consumo insustentável e necessitam de ser reorganizadas para que possamos atingir as metas de redução de emissões de carbono e outros objetivos da sustentabilidade (Boons et al., 2020).

Boons et al. (2020) identificaram que, enquanto, por um lado, a pandemia causou uma redução nas práticas de mobilidade, reduzindo o consumo de combustíveis fósseis e, consequentemente, a poluição, a Covid-19 também reforçou o uso de plásticos descartáveis, tanto para a higiene pessoal como devido ao maior consumo de comidas para viagem ou entregues em casa. Além disso, se o isolamento social reduziu o consumo de bens duráveis, devido à crise económica, a redução de idas ao mercado também causou um aumento da compra de comidas processadas, embaladas e congeladas, de forma a garantir o suprimento a longo prazo. Outras respostas à pandemia foram uma revitalização de movimentos comunitários e de vizinhança para apoio mútuo, em que formas “comunais” de fornecimento preencheram as lacunas que o Estado e os mercados não conseguiram preencher. Estas mudanças temporárias são uma fonte de redes sociais valiosas, que podem assumir um papel importante na economia futura (Boons et al., 2020).

Além disso, a crise económica incentiva a reutilização, reparo e redistribuição de recursos, embora o risco de contaminação também possa afetar a reutilização de garrafas, copos, sacos e outras embalagens. O embaçamento das fronteiras entre o lar e o local de trabalho levou, por um lado, a uma maior flexibilidade na forma como as pessoas combinam trabalho pago e não pago (cuidado com dependentes e responsabilidades domésticas), mas, por outro lado, levou a uma sobrecarga de trabalho para algumas pessoas (principalmente mulheres), evidenciando e reforçando a desigualdade de género na divisão do trabalho doméstico (Boons et al., 2020).

Segundo esses investigadores, as práticas modificadas durante esse período de isolamento social tendiam a retornar à antiga normalidade assim que a causa do distúrbio terminasse. A possibilidade de que as práticas que geram um impacto ambiental mais positivo fossem mantidas como um “novo normal” dependeria de algumas condições específicas:

  1. o isolamento durar tempo suficiente para que os indivíduos se tornassem positivamente apegados a elas;

  2. as infraestruturas e/ou regulações serem modificadas de forma a direcionar as práticas para novas direções;

  3. as pessoas não terem os recursos pessoais, financeiros ou de saúde para retomar as antigas práticas;

  4. o contexto cultural modificado alterar a forma como as pessoas valorizam ou conduzem as suas atividades.

Se uma ou mais dessas condições se realizasse, um “novo normal” poderia emergir. A possibilidade de uma transição intencional das práticas na direção da sustentabilidade, com a retenção de novas práticas que fossem menos intensivas no uso de recursos, dependeria das escolhas individuais e coletivas que fossem feitas naquele momento (Boons et al., 2020). Diversos outros artigos publicados em 2020 também apontavam para a pandemia como uma janela de oportunidade para a catalisação de transições sustentáveis (Galvani et al., 2020; Kanda e Kivimaa, 2020; Pierantoni, Pierantozzi e Sargolini, 2020; Rowan e Galanakis, 2020; Wells et al., 2020).

Pode-se argumentar que, com o arrefecimento da atenção destinada aos cuidados com o contágio de covid, as ordens sociais retornam à normalidade, com práticas sanitárias, de trabalho, de estudo e de consumo retornando à forma anterior. Reforçam este argumento as ações deliberadas de governos para o “retorno da vida normal”. O modelo de análise de solução de problemas que dominam a atenção pública, proposto por Mahon e Waddock (1992), pode ajudar a entender este retorno. Este modelo, utilizado em estudos que descrevem a transformação que ocorre em sistemas sociotécnicos a partir do nível de atenção que determinado problema ganha nos media (por exemplo, Penna e Geels, 2015), argumenta que há três possíveis resultados para a solução de um problema após a introdução de uma solução: 1) a falha da solução, que leva a preocupações sociais ainda mais intensas e pressões por soluções; 2) a confiança na solução, que reduz as preocupações a níveis muito mais baixos do que o pico atingido logo após a introdução da solução, mas maiores do que a preocupação original; e 3) o retorno à apatia, com o desaparecimento das preocupações com o problema.

É certo que há determinada confiança nas soluções propostas para a pandemia (sejam vacinas ou um fim natural da pandemia). Entretanto, permanece um determinado nível de preocupação sanitária: hoje, mais pessoas evitam aglomerações desnecessárias e optam, quando possível, por ambientes abertos - ou meios virtuais - para reuniões mais numerosas, como eventos; a utilização de máscaras em casos de sintomas de síndromes respiratórias - comportamento comum nos países asiáticos - ganhou adeptos no ocidente; as autoridades sanitárias instituíram novas regras relativas à ventilação e limpeza dos espaços. Apesar de ser ainda cedo para afirmar, as experimentações motivadas pelas medidas sanitárias da pandemia podem não ter sido suficientes para a adoção, em larga escala, de novas práticas - especialmente pela falta de políticas públicas, estratégias de negócio ou movimentos sociais que as suportassem -, mas formaram memórias que podem ser mobilizadas com novos choques (Lindsay et al., 2022). Graças a esta experimentação forçada, mais pessoas (e organizações) descobriram as vantagens do trabalho em home office e do ensino à distância, o que tende a manter-se, em certo grau, daqui para a frente. Claramente, essa experimentação não está distribuída de modo uniforme, mas relacionada com as condições socio-materiais de cada praticante - e especialmente limitada no caso de trabalhadores de atividades essenciais, situações precárias de trabalho e pessoas que moram sozinhas (Hoolohan, 2022).

O otimismo que emergiu no início da crise de que esta pudesse provocar mudanças profundas na sociedade já se mostra ingénuo. As respostas à crise foram insuficientes para promover “revoluções simbólicas”: o surgimento de vacinas e de variações no vírus diminuíram as preocupações com a pandemia antes que novas práticas fossem incorporadas como novos habitus. O desajuste do habitus ao contexto do auge da pandemia não durou suficientemente para que surgissem os “profetas”, na forma de movimentos sociais, negócios ou formuladores de política. No entanto, mesmo com a tendência que observamos do regresso à normalidade, a pandemia mostrou a capacidade das sociedades contemporâneas de realizar mudanças radicais nas práticas, quando organismos internacionais, governos e a sociedade orquestram os seus esforços e recursos nessa direção.

O retorno à normalidade vem acompanhado por um aumento de sujeitos que desempenham práticas alternativas. O destino dessas novas práticas está no seu sucesso em recrutar novos praticantes (Watson, 2012). Com a tendência das práticas de regressar à “antiga normalidade”, a pandemia ensina-nos que, para que as intervenções nas práticas sejam sustentáveis no tempo, é preciso que sejam duradouras o suficiente para que as novas práticas se tornem hábitos incorporados e para que se criem inovações políticas e institucionais que apoiem essas novas práticas, levando a revolução contextual a um nível simbólico.

Nas próximas secções, exploramos algumas possíveis contribuições das TPS para o debate sobre transições intencionais nas práticas e sugerimos algumas direções para pesquisas futuras.

Promovendo transições

A emergência do vírus como um novo elemento causou processos de rutura, reconfigurações de conjuntos arranjados de práticas e a emergência de novas ordens sociais. A pandemia também demonstrou a capacidade das sociedades de coordenarem mudanças radicais nas práticas, por meio de políticas públicas, media, divulgação científica, iniciativas comunitárias etc. Se tais transformações foram possíveis como resposta à pandemia, porque não promover transições nas práticas sociais em resposta à crise ambiental?

As transições são necessárias não apenas na eficiência com que os padrões de vida contemporâneos são alcançados, mas também nos conjuntos arranjados de práticas de que a vida quotidiana é feita. As teorias das práticas evidenciam as formas pelas quais os planos e estratégias governamentais para fornecimento de recursos (energia, água etc.) são planeados, para atenderem a uma demanda crescente causada por “padrões de vida” normalizados. Ao tomarem essa atitude, os governos legitimam, de forma “invisível”, estilos de vida que são ambientalmente insustentáveis (Moloney e Strengers, 2014). Dessa forma, uma questão-chave para os cientistas sociais são os fatores e dinâmicas implicados na transição das práticas sociais existentes para práticas futuras correspondentes, que tragam uma redução substancial dos impactos ambientais (Spaargaren, 2011).

A possibilidade de governança das práticas na direção da sustentabilidade coloca as transições das práticas na agenda de discussão. Tais transições dependem de múltiplos atores, tais como consumidores, praticantes, governos e fabricantes. No entanto, como ficou claro durante a pandemia de Covid-19, embora vários atores sejam importantes para as transições das práticas, os governantes e outras autoridades políticas possuem maior poder para estimular essas mudanças nas práticas. Esse poder deriva da sua posição privilegiada no campo político, no qual se tomam decisões sobre novas regras, infraestruturas e investimento financeiro, por exemplo, além de técnicas de controlo e monitoramento que geram governamentalidade. No entanto, esses mesmos atores são os que possuem maior interesse em manter o status quo, que lhes confere esse mesmo poder.

Dessa forma, o interesse de atores poderosos em manter o status quo, aliado ao poder do habitus e da rotinização das práticas quotidianas, faz com que a mudança radical das práticas na direção de uma maior sustentabilidade seja um tema descartado pela maior parte dos políticos, cientistas e cidadãos. Os debates tendem a focar-se em torno de acordos internacionais, macropolíticas e desenvolvimento tecnológico, sem atentarem nas inter-relações entre a vida quotidiana, de um lado, e a reprodução de práticas e instituições insustentáveis, do outro (Roysen, 2018b). Mesmo as teorias que têm sido mobilizadas, em geral, enfatizam explicações generalistas e pouco contextualizadas ( Connell e Pearse, 2015).

Dessa forma, trazemos aqui dois exemplos concretos de intervenções cujos objetivos foram promover transições nas práticas, na direção da sustentabilidade. O primeiro exemplo, no qual foi feito uso de técnicas de marketing para promover mudanças nas práticas sociais, é o programa Cool Biz. Esse programa, introduzido pelo governo japonês em 2005 como parte de um esforço para reduzir as emissões de CO2, promovia uma mudança nas normas e convenções associadas às formas de vestir nos espaços de trabalho. Esse programa deu-se da seguinte forma: as pessoas que trabalhavam em prédios governamentais foram encorajadas a não usar fatos ou gravatas no verão, de forma a diminuir a necessidade de arrefecimento do ar. Para isso, o Ministério do Meio Ambiente fez uso de técnicas de marketing para transformar o significado do que é um “traje apropriado”, promovendo uma transformação das práticas quotidianas de vestuário. Essa iniciativa resultou numa redução estimada de 1 720 000 toneladas de emissão de CO2 (Shove, Pantzar e Watson, 2012).

Outro estudo com o objetivo de promover a mudança num significado que dá sentido à prática foi desenvolvido por Gill et al. (2016). A sua experiência procurou consciencializar o sentido de “roupa suja”, ao mesmo tempo que apresentava outras possibilidades de limpeza do vestuário, diferentes da lavagem convencional com sabão. Nas suas conclusões, o estudo demonstrou que há um hábito de lavar a roupa após o uso, ainda que a “roupa suja” não seja racionalmente avaliada como suja (tanto do ponto de vista da sujidade como do mau cheiro). Esse comportamento leva ao consumo excessivo de sabão para a roupa, assim como ao uso excessivo das máquinas de lavar roupa.

Os exemplos acima sugerem que as mudanças nos significados (sejam relacionadas com a demanda de energia, a forma de vestir ou de lavar a roupa), quando promovidas em escalas mais amplas, podem transformar práticas normalizadas e gerar efeitos agregados com impacto ambiental reduzido. Algumas inovações de base, tais como ecovilas e cohousings, vão ainda mais longe, propondo modelos de vida menos individualizados e mais coletivizados, em que o compartilhamento quotidiano de espaços, objetos e alimentos reduz de forma significativa o impacto ambiental desses assentamentos humanos (Sherry, 2019). No entanto, o discuso sobre sustentabilidade legitimado na esfera política é aquele que assegura a manutenção dos valores e estruturas económicas e sociopolíticas dominantes (Eckert e Kovalevska, 2021).

Ao pensar-se em transições, é importante ter em conta que os “conjuntos arranjados de práticas” apresentam amplas e extensas conexões entre diferentes práticas sociais e arranjos materiais, estando cada um desses arranjos conectado a diferentes estruturas de poder. Há, portanto, uma tensão constante entre a estabilidade e persistência das práticas sociais, por um lado, e a necessidade de transições sustentáveis, por outro. O atual foco na eficiência energética não leva em conta a necessidade de mudanças radicais nas formas de vida e nas estruturas sociais dominantes, além de produzir pontos cegos relacionados com efeitos de ricochete e com a ampliação de desigualdades sociais, que podem gerar “transições para a insustentabilidade” ambiental tecno-otimistas (Barry, 2016) ou “transições injustas” (Swilling e Annecke, 2012).

Futuro pós-covid e as ciências sociais

As mudanças drásticas vivenciadas ao redor do mundo com as medidas de isolamento social para conter a pandemia de Covid-19 instigam as ciências sociais a refletirem sobre os impactos dessa crise nas novas normalidades que estão a ser construídas e nos seus impactos ambientais. As teorias das práticas sociais podem informar essas análises e direcionar para uma reflexão mais ampla da sociedade sobre uma possível transição intencional das práticas na direção da sustentabilidade. Neste momento, em que práticas habituais e rotineiras saem da sua “invisibilidade” quotidiana e se tornam fonte de questionamento e mudança, a arbitrariedade dos modos de vida atuais torna-se evidente, e novas possibilidades de organizar a vida quotidiana podem entrar na discussão e, quiçá, até mesmo guiar os esforços na direção de uma transição intencional para a sustentabilidade.

Nesse sentido, os estudos futuros poderiam investigar as experiências de inovação de base em pequena escala - como, por exemplo, bancos comunitários, ecovilas, comunidades que sustentam a agricultura etc. - enquanto projetos demonstrativos de transições intencionais nas práticas sociais, e verificar que lições aprendidas nessas experiências poderiam ser transformadas em políticas públicas mais amplas, de forma a promover transições para práticas mais sustentáveis.

Seria também importante que as pesquisas futuras documentassem e acompanhassem, ao longo dos próximos anos, o desenvolvimento de iniciativas de intervenções nas práticas que emergiram no contexto da pandemia, de forma a entender quais se mantiveram e quais retornaram à antiga normalidade e de que forma os arranjos entre práticas e materialidades determinaram tal trajetória. Essas pesquisas podem iluminar o processo de incorporação das práticas e os fatores que as mantêm em trajetórias insustentáveis ou facilitam o seu rearranjo na direção da sustentabilidade.

Não só as práticas emergentes podem contribuir com o desenvolvimento de arranjos mais sustentáveis das práticas; as TPS também podem contribuir com a compreensão de como certas práticas sociais sustentáveis do passado, indígenas ou tradicionais - que foram e continuam a ser abandonadas e substituídas por práticas modernas/eurocêntricas -, poderiam ser “ressuscitadas” (Maller e Strengers, 2015) por meio de novas conexões entre significados, saber-fazeres e materiais. Também é necessário aprofundarmos o nosso entendimento de como promover “novas normalidades”, mesmo diante de interesses políticos e económicos na manutenção do status quo.

A transição para a sustentabilidade só será possível com uma ação coordenada entre múltiplos atores: governantes, academia, media e sociedade civil. Embora pareça uma utopia, momentos de crise como guerras e pandemias demonstram que as ações coordenadas são, sim, possíveis. Esperamos que este artigo possa impulsionar um debate mais amplo na sociedade lusófona sobre que práticas sociais podem ser reconfiguradas para a construção de uma sociedade pós-covid mais justa e sustentável.

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Notas

1 Há diferenças cruciais entre o conceito de “regras” utilizado por Giddens (2013) e o conceito de “regras” utilizado por Schatzki (2002) (ver Schatzki, 2017).

2 Schatzki (2017) desfere uma crítica a Reckwitz (2002) e a Shove, Pantzar e Watson (2012), argumentando que as dimensões teleológica e afetiva são pouco tratadas pelos autores nas suas abordagens dentro da Teoria das Práticas.

Recebido: 31 de Dezembro de 2021; Aceito: 10 de Outubro de 2022

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