Introdução1
Nas últimas décadas, a economia política tem sido objeto de relativa desconfiança por parte do mainstream da ciência económica. No entanto, esta sempre fez parte dos ambientes em que se têm desenvolvido os saberes da economia, cujo pluralismo não se pode ignorar. Acresce que a vitalidade intelectual e académica das perspetivas que ensaiam visões críticas e complexas sobre os capitalismos e as suas formas de organização foi assinalável. Afigura-se, por isso, oportuno revisitar os seus temas e recuperar contributos para o conhecimento da economia contemporânea, recolocando-a enquanto área privilegiada de diálogo interdisciplinar (entre a história económica, a sociologia, a ciência económica, a ciência política, o direito, a história contemporânea, etc.). Esta necessidade tem vindo a ser assinalada por alguns setores académicos que têm sentido a aspiração da sociedade de compreender melhor as dinâmicas da economia contemporânea, os poderes que a rodeiam e a insustentabilidade que podem gerar, questões que estão para além das explicações macroeconómicas ou dos modelos econométricos, mais característicos das escolas neoclássicas e neoliberais.
Em Portugal, algumas iniciativas recentes, como a atuação da EcPol - Associação Portuguesa de Economia Política (2017-) e a criação do Doutoramento Interdisciplinar em Economia Política (ISCTE, ISEG, Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra), dentre outros acontecimentos, como o ciclo de Diálogos Luso-Brasileiros de Economia Política2 organizado na Biblioteca Nacional de Portugal (Lisboa, 2019), comprovam bem a relevância e a atualidade das temáticas evocadas.3 Todavia, a delimitação do campo da economia política não é isenta de tensão e mesmo de controvérsia. Já Rosa Luxemburgo [1925] advertira que “[a] economia política é uma ciência singular”, razão pela qual “dificuldades e desacordos” advêm precisamente da sua delimitação: “qual é, precisamente, o objeto desta ciência?”.4 Acrescentaríamos: Será ela uma ciência? E será esse propósito o seu contributo fundamental?
Foram efetivamente diversos os sentidos que se atribuíram à expressão “economia política”, desde a sua manifestação inicial, a dos clássicos do pensamento económico ocidental, de Adam Smith a Stuart Mill (escola liberal), compreendendo Karl Marx e a sua Crítica da Economia Política (subtítulo de O Capital, 1867). Os fisiocratas franceses, por exemplo, entendiam-na amplamente como o conjunto das questões que importavam ao governo da sociedade. Já para Adam Smith, na sua obra clássica a Riqueza das Nações (1776), o objeto de tal “ciência” seria “a vida económica de todo um povo, por oposição à economia privada ou particular: a economia política seria, assim, a essência da economia de um povo, isto é, as leis segundo as quais um povo cria riqueza com o trabalho, a aumenta, a reparte entre os indivíduos, a consome e a cria de novo”. Contudo, um século depois, para Leon Walras (1834-1910; cf. s. d., p. 10), um dos nomes pioneiros da corrente marginalista apostada na afirmação da economia como uma ciência, subsistiam a necessidade e o problema da sua definição.
Para o economista e matemático francês, a economia política ainda não fora satisfatoriamente definida e, nessa medida, a busca seria pela matematização da linguagem da economia política, dando corpo a um dos primeiros projetos, porventura, de purificação da economia política. Também dentro da tradição do pensamento crítico marxista, vezes sem conta se buscou firmar uma definição alegadamente mais precisa, ao estilo de “uma ciência das leis particulares do modo de produção capitalista”, tendo em vista, inclusive, desvendar “as leis do declínio do capitalismo” (Luxemburgo [1925], p. 113). Assim, mesmo na versão marxista, predomina uma visão internalista da economia política, cujo âmbito se destina a compreender “a produção, a circulação, a repartição e o consumo de mercadorias” (Oliveira, 1962, p. 18). Por seu lado, em Salama e Valier (1978), no seu curso de Introdução à Economia Política, lecionado em Paris e traduzido em Portugal, encontramos também a pureza de um “conteúdo cientificamente incontestável”, definindo-se a economia política como o desvelar das “leis da produção mercantil e do modo de produção capitalista” (com temas tradicionais da economia política marxista como o conceito de valor, a definição de mercadoria, valor-de-uso e valor-de-troca, mais-valia absoluta e mais-valia relativa, etcetera). Contudo, na tradição marxista encontramos também a assunção, e de forma explícita, do caráter especificamente histórico das circunstâncias económicas, bem como a dimensão inerente à economia política de um conhecimento instrumental à nossa capacidade de intervenção no real (“por meio de uma prática científica correta à medida das nossas possibilidades”, cf. Zaluar Nunes apudSalama e Valier, 1978, p. 10).
Atualmente, acreditamos, permanece o desiderato de saber como se conforma o sistema capitalista, quais as suas contradições, qual é a sua essência e quais são as suas contingências: faz-se mesmo a pergunta “Por que é que o capitalismo tem sido tão longo e persistente?” (Reis, 2022). De facto, a economia política hoje (enquanto campo, e não domínio) deve abraçar um entendimento amplo, cedendo à obsessão com as epistemologias positivistas ciclicamente em voga, e, em igual medida, empenhando-se na busca por uma convergência do pensamento crítico. Trata-se de “compreender o que está em causa” (Reis, 2020, pp. 30 e segs.) por meio de um olhar que desvela a combinação das determinantes sociais, económicas e políticas, num esforço de síntese que abrange, inequivocamente, diversos âmbitos disciplinares no estudo dos temas (recorrentes) definidores e contextualizadores da economia contemporânea: são várias as dimensões de reflexão e análise que a economia política suscita, desde a industrialização (e desindustrialização), as políticas económicas (e sociais), as arquiteturas institucionais do capitalismo e a emergência da financeirização, as relações e implicações da CTI - Ciência, Tecnologia e Inovação (nos termos do modelo de desenvolvimento), às realidades do trabalho e do próprio papel do Estado. Sendo a economia política o estudo interdisciplinar que associa o económico, o social e o político - tendo em vista pensar os problemas e desafios do desenvolvimento para além da lógica linear do crescimento económico (cf. Sandroni, 1999; ex. Gadelha, 2007) -, importa promover uma “cultura de entendimento” (Mill, [1859], apudAbranches, 2010, p. 303) quanto à importância das amplas relações existentes entre as variáveis macroeconómicas e o devir social (nas suas mais variadas dimensões, i. e. histórica, político-ideológica, político-institucional e sociopolítica).
Morin ([1999] 2002) deixou-nos já o desafio de religarmos conhecimentos disciplinares distintos, para considerar o nosso Universo e a história. Para tal, será sempre um desafio das abordagens disciplinares manter ligações e solidariedades com outros objetos e outras metodologias, evitando cair numa mentalidade hiperdisciplinar, numa mentalidade de “proprietário” que nega qualquer incursão estranha na sua parcela de saber.
A organização disciplinar foi instituída no século XIX, nomeadamente com a formação das universidades modernas e a profissionalização do cientista (Ben-David, 1971; 7). Esta desenvolveu-se, ainda durante o século XX, acompanhando os progressos da ciência. O avanço do conhecimento, todavia, tem mostrado como a transdisciplinaridade é profícua e mesmo fundamental, sendo inúmeros os casos de migrações de ideias e conceitos, simbioses e transformações teóricas decorrentes do diálogo entre investigadores de áreas diferentes, potenciado, designadamente, pelas próprias migrações físicas e pela mobilidade entre universidades. Entenda-se, porém, que as disciplinas podem ser plenamente justificáveis, desde que preservem um campo de visão que reconheça e conceba a existência de ligações e solidariedades. Nessa medida, o importante não é apenas a interdisciplinaridade, é necessário também o “metadisciplinar”, nesse duplo sentido de conservar e ultrapassar. Não se pode demolir o que as disciplinas criaram, mas pode superar-se; não se pode romper completamente o enviesamento - é inclusive em condições de “incubação” que se faz uma escola científica, dando corpo e densidade à massa crítica. Podem, conquanto, privilegiar-se abordagens temáticas enriquecedoras, que propiciam avanços que as limitações disciplinares não alcançam.
Por tudo isto, uma disciplina deve ser aberta para não se tornar automatizada, atomizada ou mesmo esterilizar-se. Os termos interdisciplinaridade, multidisciplinaridade e transdisciplinaridade devem, pois, ser claramente entendidos. São termos polissémicos e facilmente manipuláveis para embalar o discurso. Por exemplo, interdisciplinaridade, em rigor, significa a convocação, pura e simplesmente, de diferentes disciplinas à volta de um mesmo tema, área ou campo, cada qual fazendo pouco mais do que expor o seu contributo, afirmar os seus direitos e inclusivamente defender a sua “soberania”. No entanto, aquilo que deve realçar-se é a ideia de cooperação e troca, a única atitude que, partindo das matrizes disciplinares, pode transformar a interdisciplinaridade em algo orgânico.
Por seu lado, a multidisciplinaridade aponta para a associação em concreto das disciplinas, por via de um projeto ou objeto de pesquisa comum. Já a transdisciplinaridade trata de abordagens que podem atravessar as próprias disciplinas - aponta, de facto, para investigação na “fronteira do conhecimento”. Não se trata de priorizar. Trata-se tão-só de valorizar os complexos inter-multi-trans-disciplinaridade, que realizam, de uma forma ou de outra, um papel importante no diálogo científico, abrindo possibilidades de cooperação e, por vezes, proporcionando projetos comuns de investigação. Encontrar a articulação entre as ciências é de facto um desafio, sem dúvida central, e, aqui, o convite deve evitar tanto o ensimesmamento disciplinar como a diluição das matrizes disciplinares; o convite deve ser ao conhecimento, em movimento, um conhecimento em vaivém, que progride “indo das partes ao todo e do todo às partes” (Morin, 2002 [1999], p. 116).
Já por seu lado, um campo por natureza multidisciplinar, como o da Economia Política, não é nem o mundo estrito da economia, nem o equivalente da política, pois a economia política é a “negação da economia isolada como dominante ou da política também isolada como prevalente” (Antunes e Pinto, 2017, p. 11). É, sem dúvida, um prisma de análise em que encontramos uma totalidade, prenhe em processos determinantes e determinados, que nos auxilia a encontrar uma tão necessária inteligibilidade do nosso devir contemporâneo - o qual se tem de considerar associado a temas e problemas da própria dinâmica histórica, e não tanto a assuntos disciplinares.
Um dos aspetos fundacionais da economia política na contemporaneidade é sem dúvida o (re)conhecimento de uma matriz de autores de referência, desde os clássicos, de Adam Smith (1723-1790) e Karl Marx (1818-1883) a Karl Polanyi (1886-1964) e Joseph A. Schumpeter (1883-1950), a autores mais recentes, como Gunnar Myrdal (1898-1987) ou Albert Hirschman (1915-2012) e Celso Furtado (1920-2004). Porventura, no quadro complexo e rico de uma tradição hoje bem viva, a que genericamente se pode chamar institucionalista, e que se constitui em pais-fundadores como Thorstein Veblen (1857-1929) (a economia trata do “processo da vida”) e John Commons (1862-1945). Uma tradição que deve admitir um diálogo crítico e mesmo conflitual (relembrando o tema da “conflitualidade interna das ciências sociais”, pioneiramente introduzido entre nós por Adérito Sedas Nunes, 1928-1991) com os mais formatados “novos institucionalistas”, celebrados em Estocolmo com o “Nobel”, como Ronald Coase (1910-2013), Douglass North (1920-2015) e mesmo Oliver Williamson (1932-2020) e Elinor Ostrom (1933-2012), que introduziram na discussão os problemas da coordenação e da organização, do tempo histórico e da governação policêntrica. Isto é, gente que persiste em olhar para a “economia impura” (Reis, 2009). É por isso que, hoje em dia, além do resgate de autores clássicos, incluindo ibero-americanos, importa revisitarmos temas centrais para uma melhor compreensão das realidades contemporâneas. São os temas prementes da economia do desenvolvimento, em que permanece a urgência de desenvolver regiões historicamente desfavorecidas, como a África e a América Latina.
Evocamos, assim, todo um conjunto de aspetos que amparam essa “cultura de entendimento”. Desde logo, quanto à questão do desenvolvimento e à utilidade de revisitar (e atualizar) a framework centro-periferia, introduzida por autores como Raúl Prebisch (1901-1986) ou Celso Furtado (1920-2004), dentre outros, atualmente marginalizados pelo pensamento dominante. Entre os quais, em Portugal, se podem nomear Adérito Sedas Nunes (1928-1991), Francisco Pereira de Moura (1925-1998), Manuela Silva (1932-2019) ou Mário Murteira (1933-2013). Ou, então, instituições dentro da administração pública, como o GEBEI - Grupo de Estudos Básicos de Economia Industrial, criado por João Cravinho (n. 1936), em 1973, que prolongou a sua atividade até 1986 - e que tem sido matéria de estudo (Reis, 2019) -, no quadro de uma investigação sobre a ciência económica em Portugal nas décadas mais recentes e sobre as ideias do debate económico (Neves e Reis, 2019; Neves, 2022).5
Tudo isto com a consciência de que as condicionantes da periferia se renovam. Neste aspeto, dependência gera dependência, tendo sido já observados e analisados, historicamente, os momentos6 em que se exacerbaram as condições de dependência nas periferias globais e, inclusive, no atual paradigma de desenvolvimento da tecnociência contemporânea - como assinalou Marini, um quadro em que a tecnologia (res)surge como o “novo anel” dessa situação de dependência nas periferias7 (Marini, 1991 [1973] p. 143). Assim mesmo, a cíclica atualização dos fatores de desenvolvimento vem sem dúvida colocar novos (e renovados) limites à periferia, tão mais relevantes quanto a discutimos em diferentes contextos - e, deste modo, os próprios conceitos de periferia e de dependência mantêm uma óbvia atualidade na Europa (Reis, 2023).
Pretendemos então, aqui, colocar (e recolocar) a atualidade de temas como a divisão internacional do trabalho, a “comoditização” da estrutura produtiva das periferias e semiperiferias, a estratégia do desenvolvimento histórico de substituição de importações, a sobrexploração (e espoliação) do trabalho,8 compaginando-os com temas mais recentes como a financeirização (cuja natureza poderá ser entendida de modo mais adequado - ex. crematística aristotélica, economia política clássica, etc.), a globalização ou a própria crise de confiança na autoridade e neutralidade da ciência e da tecnologia, bandeiras do modelo globalista de desenvolvimento, mas igualmente significando um potencial acelerador das desigualdades.
São temas que caracterizam o capitalismo contemporâneo e nos ajudam a compreender processos recentes da reorganização do sistema internacional, vivendo cada vez mais em regime de “autorreferenciamento”. Entre estes processos recentes temos a desregulação dos mercados e demais processos radicais de liberalização, com impactos de descolamento entre rendimento e riqueza real, visível na realidade das economias financeiras de crescimento lento, das empresas de reduzido fluxo de caixa, sintomas de um capitalismo em falência, que abdica inclusive da acumulação de divisas, naquilo que Ricardo Carneiro (2019), inspirando-se em K. Marx, tratou como o paradigma da “acumulação fictícia”: um conjunto de processos que tendem a reforçar as assimetrias globais, vincando geografias económicas e sociais, colocando com acuidade o debate sobre a divergência e a convergência, nos mais diferentes planos de análise das realidades normativas e performativas do mundo ocidental.
Com efeito, além das dinâmicas menosprezadas da economia real, há ainda as implicações no mundo do trabalho, em particular, a precarização das relações laborais. É, digamos assim, um hipertexto pautado pelos discursos de uma hierarquia monetária rígida, de interesses e de lobbies pouco claros, que conformam uma visão globalista, manifestamente performativa ao nível dos grandes fora (internacionais e nacionais) e do establishment político e corporativo dominante. O efeito ideológico deste globalismo - distinto dos fenómenos materiais da globalização - sobre o pensamento crítico é vigente não apenas entre as ciências sociais, mas condiciona ainda as orientações e as próprias possibilidades da ação política.
A economia política, como a própria economia do desenvolvimento, apresenta-se, assim, como um reduto de inteligibilidade, o outro lado da visão globalista, desejosa, por seu lado, de nos convencer das inevitabilidades do processo de globalização em curso. Perante esse discurso, importa, assim, não apenas buscar nas tradições e contributos do passado, mas igualmente conhecer as alternativas. É nesta perspetiva que se procura inserir, por exemplo, o novo desenvolvimentismo, ainda inspirado numa ideia de desenvolvimento em voga num passado não muito distante. A busca de um modelo alternativo está sem dúvida em aberto: algo que supere o modelo de uma industrialização (e crescimento) sem emprego, ancorado em teorias da modernização, como tivemos nos anos 1950 e 1960, e que igualmente resgate uma ideia de republicanismo que logre posicionar-se como contrapeso do ultraliberalismo económico.
Continua a ser, hoje, inegavelmente, um momento histórico de reflexão, para o qual devemos considerar todos os contributos possíveis, sem enviesamentos disciplinares, mas antes em permanente diálogo, entre tradições de pensamento diversas, ainda que em tensão. É dentro deste espírito que congregamos neste dossiê temático um conjunto de contributos, com autores de diversas proveniências, disciplinares, interdisciplinares, de Portugal e do Brasil. Perpassam temas clássicos da Economia Política, desde leituras clássicas à análise das próprias dinâmicas do Trabalho e não esquecendo os crescentes papéis da Ciência e da Tecnologia, atualmente moldadas pelo discurso “inovacionista”, i. e., a assunção (quasi-)hegemónica da Inovação enquanto mantra discursivo e princípio organizador de empresas e mesmo políticas e instituições republicanas e democratas, que, nas suas implicações sociais e económicas, participam hoje para prefigurar uma alegada Economia do Imaterial - cujo alcance é hoje cada vez mais sentido na aceleração do nosso quotidiano, e do próprio lazer, com impactos particularmente visíveis no mundo do trabalho objecto de uma reestruturação produtiva em curso (ex. capitalismo de plataforma e novo proletariado emergente), desmaterializando relações produtivas e os determinantes sociais e económicos do nosso tempo.
Com o primeiro artigo, de Castro Caldas, entendemos desde logo a capilaridade histórica de elementos estruturantes da economia política contemporânea, tais como os relativos aos processos de financeirização e de acumulação, enquanto componentes dissolventes da economia real, das dinâmicas produtivas e mais materiais de nossas sociedades, atualmente negligenciadas pela limitada compreensão da economia política, dos autores clássicos aos marcos teórico-ideológicos do próprio devir contemporâneo. O contributo de Zahluth Bastos relembra-nos precisamente a riqueza de olhar para autores e nomes excêntricos ao mainstream anglófilo e/ou de recorte mais eurocêntrico, ao resgatar a obra e contributo de Maria da Conceição Tavares, portuguesa com trajetória académica no Brasil e representatividade no panteão do pensamento económico latino-americano, cujo contributo é decisivo para pensarmos os desdobramentos da dependência nos mais diferentes contextos. O artigo de Invernizzi, por seu lado, aborda, sob um ponto de vista das relações da ciência e tecnologia com a sociedade, algumas tensões em torno do projeto globalista da tecnociência, registando os atuais limites da participação pública e do ativismo social em influenciar a produção e consumo de C&T, ao mesmo tempo que considera a promessa de efeitos democratizantes fruto desses momentos de mobilização coletiva, ameaçados todavia pelas relações de poder fundamentais que atravessam o desenvolvimento da ciência e da tecnologia no capitalismo contemporâneo. Em Antunes, encontramos um relato das características do chamado trabalho uberizado e as lógicas depredadoras da dignidade humana com a expansão das plataformas digitais, consumando na atualidade o papel das tecnologias informacionais e digitais como elo de uma dependência renovada das periferias na atual divisão internacional do trabalho. Já Mira Godinho proporciona uma comparação entre Brasil e Portugal face ao crescimento da produção científica e tecnológica mundial, registando a permanência de assimetrias internacionais, um atraso não tanto verificado na produção de conhecimento científico (espelho de um absoluto produtivismo académico que contamina o nosso tempo), como em indicadores proxies do desenvolvimento tecnológico, ainda bastante singelo em relação às expectativas da política de inovação. Por fim, Brandão demonstra a presença na nossa contemporaneidade de um discurso entusiasta (quando não mesmo caricato) em torno da inovação aberta, proveniente dos meios gerencialistas e atualmente veiculado de forma crescente em meios políticos, espaços públicos e instituições tradicionais à própria cultura científica. Questionando a sua própria originalidade, enquanto novo mantra do inovacionismo que prefigura a economia política contemporânea, ficamos a conhecer alguns aspetos do lado obscuro da inovação aberta no que respeita à organização (social) da produção e disseminação do conhecimento.
O culminar destas temáticas, e da relevância de revisitar a economia política e de resgatar inclusive autores e teorias variadas para um debate amplo neste campo multidisciplinar, é a constatação de que o conhecimento mainstream das realidades periféricas é limitado e frequentemente mediado pela hegemonia cultural e intelectual anglófila. Cremos, em suma, que a tendência de subordinação do nosso pensamento aos modismos globais não deve afastar-nos das tradições do pensamento ibérico e latino-americano. Urge deste modo relembrar que as trajetórias das várias periferias são determinadas por condicionantes diversas, cujas características são hoje (como já antes o eram) centrais para compreender os problemas do desenvolvimento e do capitalismo ocidental e os desafios das sociedades contemporâneas nos mais diversos contextos.