Introdução
Maria da Conceição Tavares, talvez a mais influente economista brasileira, é consagrada pelas suas análises das economias brasileira e mundial. Contribuindo inicialmente para os marcos do pensamento cepalino de Raúl Prebisch, Celso Furtado e Aníbal Pinto, sintetizou com originalidade a interpretação estruturalista da industrialização por substituição de importações num artigo clássico (Tavares, 1963). Mais tarde, a discípula ensinou os mestres, ao promover uma crítica profunda do estruturalismo numa releitura da industrialização brasileira. A partir da década de 1980, investigou com profundidade as transformações da economia mundial e da hegemonia americana, sem deixar de rediscutir temas históricos.
Não se pode subestimar a influência de Tavares no Brasil. Matemática, nascida e formada em Portugal, fugiu da ditadura salazarista em 1954. No Brasil, a sua participação política foi importante desde a década de 1970, primeiro como assessora de Ulysses Guimarães, líder político do movimento pela redemocratização e presidente da Assembleia Constituinte, que promulgou uma nova Constituição em 1988; em 1994, tornou-se deputada federal pelo Partido dos Trabalhadores; em 2002, recebeu uma visita do presidente eleito Luís Inácio Lula da Silva em agradecimento pela inspiração intelectual (Folha, 2002); em 2010, o seu aniversário de 80 anos foi frequentado por um pequeno grupo que incluía dois dos seus ex-alunos, os principais candidatos à presidência do Brasil, Dilma Rousseff, PT, e José Serra, PSDB (Tabak, 2010). Na academia, orientou 19 dissertações de mestrado e 7 teses de doutoramento, fundou as pós-graduações de economia em duas das maiores universidades brasileiras, a Unicamp (Campinas) e a UFRJ (Rio de Janeiro).1
Este artigo realça um aspeto central da contribuição de Tavares na década de 1970: a substituição de um foco que enfatiza restrições de balanço de pagamentos associadas à inserção comercial periférica por outro que investiga os mecanismos da própria “internalização” da dependência. Tavares preserva o método histórico-estrutural, mas integra-o no marxismo e na macroeconomia heterodoxa para entender as origens, o desenvolvimento e os problemas do capitalismo tardio na América Latina. Como veremos, esta integração expressa-se numa releitura da industrialização, que periodiza as suas fases de acordo com a mutação das estruturas de reprodução ampliada do capital e das formas de dependência e não como simples fases da resposta a desequilíbrios externos.
A próxima secção discute o estruturalismo latino-americano e a ênfase que confere à substituição de importações. Realça-se Celso Furtado, dado que este elaborou uma teoria do subdesenvolvimento, que se contrapõe ao modelo de Arthur Lewis de reinvestimento da poupança. A terceira secção aborda a primeira autocrítica de Tavares e Serra (1970) ao enfoque cepalino. A quarta discute a interpretação de Tavares e de autores associados à Escola de Campinas sobre o desenvolvimento capitalista periférico. A última secção sintetiza o argumento e enfatiza um ponto fundamental da contribuição de Tavares: a dinâmica capitalista depende da estrutura do capitalismo em questão. Ainda que países na periferia não controlem as transformações do capitalismo internacional do qual dependem, é essencial entender o modo como as exportações de capitais oriundas dos centros se integram (ou não) em esquemas de acumulação relativamente autónomos no espaço periférico, à medida que as formas de dependência mudam. O capitalismo tem tendências gerais, mas estas expressam-se de modo diferente e de acordo com mudanças estruturais que alteram os esquemas de reprodução, mediante os quais o capitalismo se atualiza no tempo e no espaço e nunca em isolamento nacional. Essa é a lição mais geral da obra de Tavares para as novas gerações de economistas.
O estruturalismo latino-americano, a substituição das importações e a limitação dos mercados
Raúl Prebisch é, talvez, o economista latino-americano mais influente da história, inclusive em questões organizacionais: foi o fundador e o primeiro diretor de organismos da ONU, como a Comissão Económica para a América Latina e Caribe (Cepal) e a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad). Em 1948, inaugurou o estruturalismo latino-americano com um ataque à universalidade das proposições liberais de política económica e da sua crítica às políticas favoráveis à industrialização: “[…] as vantagens do progresso técnico se concentraram, principalmente, nos centros industriais, sem se transportarem aos países que formam a periferia do sistema econômico mundial” (Prebisch, 1949, p. 54). O sistema mundial centro-periferia organizaria assimetricamente as relações entre países industrializados e países exportadores primários, difundindo o progresso técnico, elevando a produtividade do trabalho e a renda per capita de modo desigual. Quando o sistema entrou em crise na década de 1930, induziu-se a industrialização periférica através da substituição de importações em vista da escassez aguda de capacidade de importar.
Para além dos argumentos específicos, Prebisch desenvolve um método de análise que nunca sistematizará: o método histórico-estrutural. Tal método apontava para a descontinuidade de estruturas específicas - o centro e a periferia - cuja génese histórica era singular e irrepetível. Esta génese determinava estruturas com uma dinâmica que era específica, de modo que a dependência da trajetória em relação à história tinha a sua raiz última na própria formação da estrutura. A implicação teórica é que o universalismo das teorias clássicas e neoclássicas da especialização produtiva e do comércio internacional devia rejeitar-se.
A implicação prática é que as recomendações de política económica e de reforma institucional não podiam repetir fórmulas liberais dogmáticas, desconsiderando a diferença histórica e estrutural. Isto é, a posição ocupada no sistema centro-periferia e a mudança de período histórico determinavam estruturas que não se podiam regular com sucesso pelas mesmas instituições e políticas económicas. Para superar o atraso na geração de produtividade, a deterioração dos termos de intercâmbio e a vulnerabilidade externa, os países periféricos eram forçados a industrializar-se. Para o fazer, obtendo um bom resultado, e estender os ganhos de produtividade para o conjunto da população, eram necessárias instituições de planeamento e de centralização de decisões de alocação de recursos que não tinham precedentes na experiência histórica dos países centrais.
A alocação da poupança (ou melhor, do excedente)2 seria uma questão central para a industrialização no modelo cepalino. Isto pode entender-se melhor com base na crítica feita por Celso Furtado ao modelo de desenvolvimento elaborado por Arthur Lewis (1954). Como se sabe, Lewis dividia uma economia atrasada em dois setores: por um lado, um grande setor de subsistência, em que a produtividade média dos trabalhadores era baixa e a produtividade marginal era nula ou até mesmo negativa, dada uma dotação fixa dos fatores terra e capital; por outro, um setor moderno, em que a produtividade era muito maior graças ao uso de tecnologias (intensivas em capital) importadas dos países desenvolvidos, mas no qual os salários eram pouco superiores (cerca de 20%) aos do setor de subsistência, graças à oferta ilimitada de mão de obra.
O processo de desenvolvimento significa a mudança na participação e no tamanho dos dois setores, com a acumulação de capital ampliada no setor moderno levando à transferência de mão de obra do setor de subsistência. Para Lewis, haveria um automatismo no processo à medida que tecnologias importadas aumentassem a produtividade do trabalho sem elevar os salários, enquanto existisse oferta ilimitada de mão de obra. Os ganhos de produtividade do trabalho associados à acumulação de capital seriam absorvidos pelos capitalistas e não pelos trabalhadores. Assim, reinvestir-se-iam os lucros extraordinários até a eliminação do dualismo estrutural, ou seja, até a absorção dos subempregados do setor de subsistência pelo setor moderno.
Para Lewis, a elevação de salários reais poderia atrasar o desenvolvimento, ao estimular o consumo dos trabalhadores e ao reduzir a poupança dos capitalistas. Este ponto é decisivo, pois, ao contrário de Lewis, Furtado culpará o consumo dos capitalistas pelo desenvolvimento frustrado dos países periféricos, além do desfasamento entre as tecnologias importadas e a disponibilidade local de fatores de produção. O argumento é nítido em Desenvolvimento e Subdesenvolvimento, que reúne ensaios da segunda metade da década de 1950:
Furtado encontra a origem do subdesenvolvimento na Revolução Industrial. Nos países desenvolvidos, o ritmo acelerado de acumulação de capital tende a esgotar a oferta de mão de obra, pressionando taxas de lucro e provocando duas reações: 1.1) progresso técnico orientado para tecnologias intensivas em capital e que poupam trabalho; 2.2) exportação de capitais para colónias de povoamento e regiões já ocupadas por sociedades tradicionais, na procura da rentabilidade inerente à combinação entre tecnologia moderna e oferta ilimitada de mão de obra, à la Lewis;
O subdesenvolvimento, portanto, resulta da penetração do capital em regiões já ocupadas por sociedades tradicionais, gerando uma economia dualista, “parte da qual tendia a comportar-se como um sistema capitalista, a outra, a manter-se dentro da estrutura preexistente […] O subdesenvolvimento é, portanto, um processo histórico autônomo, e não uma etapa” (Furtado, 1961, p. 161);
Nos países subdesenvolvidos, o progresso técnico não leva ao esgotamento da oferta ilimitada de mão de obra, tendo em vista que: 3.1) a mimetização do padrão de consumo dos países desenvolvidos pelas elites reduz a poupança disponível para investimento; 3.2) investimentos realizados com tecnologia que poupa trabalho e que é intensiva em capital e em escala geram ociosidade de capacidade de produção e de trabalhadores; 3.3) o padrão resultante de concentração da renda, tendo em vista a preservação de baixos salários e da oferta ilimitada de mão de obra, limitaria a escala do mercado interno, o que, combinado com tecnologias intensivas em capital e em escala, desestimularia novos investimentos, dando origem a baixo crescimento.
Este diagnóstico foi modificado em A Pré-Revolução Brasileira no início da década de 1960, depois da conclusão do plano de industrialização do governo Juscelino Kubitschek:
Ao se iniciarem os anos cinquenta, esse conflito entre o desejo nacional de intensificar a política de desenvolvimento e a limitação da capacidade para importar alcançara o seu ponto crítico […] compreende-se a importância, para o futuro do país, do que foi realizado no último decênio […]. Já se vislumbra, claramente, a vitória na luta para independentizar a formação de capital das importações. A grande metalurgia está definitivamente assentada no país; a produção nacional de combustíveis líquidos progride com firmeza; a produção de equipamentos já constitui o núcleo mais importante e dinâmico da indústria nacional. Ao iniciar-se o decênio dos sessenta, já se podia afirmar que o impulso de crescimento da economia nacional se firmava em nosso próprio mercado interno e que o seu centro de decisões tinha suas raízes na vida nacional, como também que estávamos capacitados para efetivar uma política de desenvolvimento. A autonomia que se vem alcançando nos três setores básicos referidos - metais industriais, combustíveis líquidos e equipamentos - reduz, dia a dia, a importância estratégica da capacidade para importar”.3 [Furtado, 1962, pp. 113-114]
No mesmo ano, Tavares (1963) publica uma síntese interpretativa da industrialização latino-americana que defende, com muito dados, o oposto de Furtado: o processo de substituição de importações esgotou-se antes de concluir. Sem um esforço de planeamento ainda mais vasto combinado com a ajuda internacional, não se conseguiria avançar nos ramos de substituição “difícil”, nos quais a tecnologia era monopolizada por oligopólios internacionais e cujos requisitos mínimos de escala e de investimento eram superiores mesmo aos existentes no Brasil.
Depois do veto às reformas de base em 1963, Furtado passa a compreender a industrialização brasileira como Tavares (1963): uma sucessão de fases de substituição de importações desde bens de consumo “fáceis” até bens de produção “difíceis” que não se completou, criando “dificuldades que […] têm maior profundidade do que inicialmente se suspeitava” (Furtado, 1964, p. 125). Depois do golpe de 1964, Furtado radicaliza o argumento de Tavares e defende que a estagnação secular se abateu sobre a América Latina e o Brasil. Supondo uma equalização de taxas de lucro e de salários entre ramos industriais, Furtado (1966) deduz que ramos com maior relação capital/trabalho (como os de bens de produção e consumos mais modernos) terão necessariamente menor relação produto/capital.4 Como o mercado dos ramos modernos é limitado em vista da concentração da renda, e o requisito de capital supera a oferta de poupança, seriam travados novos investimentos, levando à estagnação.
A (auto)crítica de tavares à cepal
O problema da hipótese da Furtado é que foi refutada pelo “milagre económico” brasileiro. Foi Tavares quem iniciou a autocrítica cepalina e a desenvolveu na década de 1970, sem abandonar o foco histórico-estrutural e os conceitos de dependência e de subdesenvolvimento. À la Michal Kalecki (e Marx), a sua macroeconomia conferiu precedência às decisões de gasto dos capitalistas em conjunto com o Estado e as exportações líquidas, ou seja, gastos não induzidos pela renda prévia; a sua microeconomia, às estruturas de mercado oligopolistas, à maneira de Steindl e Sylos-Labini. Assim, questionou três heranças neoclássicas que contaminavam a hipótese de estagnação: 1) a hipótese de igualdade de taxas de lucro e de salários entre ramos, pois supõe livre mobilidade de fatores que nada tem a ver com as condições de rivalidade oligopolística típica do capitalismo moderno; 2) a oposição entre consumo e investimento, pois é pertinente à teoria dos fundos emprestáveis e de maximização da alocação dos recursos, e não a uma teoria que suponha capacidade ociosa e determinação da sua ocupação pelo nível de procura efetiva; 3) a oposição estática entre salários e lucros agregados, idem.
Num artigo conjunto com José Serra (Tavares e Serra, 1970), Tavares ainda recorre ao conceito de “industrialização por substituição de importações”, mas inicia a troca do foco que enfatiza restrições de balanço de pagamentos associadas à inserção comercial por outro que investiga os mecanismos da própria “internalização” da dependência. Isso não significa eliminar a autonomia relativa das economias locais tornando-as meramente reflexas do capitalismo mundial, mas exige investigar as transformações dos esquemas de acumulação locais que permitem uma maior ou menor adaptação estrutural às transformações do capitalismo mundial. Assim, são importantes tanto “as formas de relacionamento prevalecentes entre os agentes centrais do processo - o Estado e os capitalistas internacionais - principalmente no que se refere às políticas de alocação de recursos” quanto “as formas de comportamento nacional no processo de tomada de decisões” (Tavares e Serra, 1970, p. 176).
Neste sentido, Tavares e Serra ajudam a construir uma alternativa à primeira versão da teoria da dependência, que previa a impossibilidade do desenvolvimento capitalista nos países dependentes. O seu maior expoente foi Andre Gunder Frank (1969 [1967]), para quem o capitalismo iria desenvolver-se na forma de uma polarização crescente entre o centro metropolitano e os satélites periféricos, pelo que não haveria esperança de um desenvolvimento comandado por burguesias nacionais nos satélites, mas apenas o desenvolvimento do subdesenvolvimento. Na segunda versão, temos Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto (1975 [1970]), para os quais a relação entre desenvolvimento e dependência seria menos determinista e mais elástica, admitindo diferentes formas de inserção e de desempenho das sociedades dependentes na economia mundial.5
Nessa direção, Tavares e Serra distinguem casos em que há contradição entre a estrutura local e o “novo quadro regional e mundial de desenvolvimento do capitalismo”, como a Bolívia, o Equador e o Peru. No Chile e na Argentina, há uma adaptação insatisfatória às novas formas de dependência tecnológica e financeira. No Brasil e no México, contudo, “há adaptação flexível à nova dependência, com solidariedade orgânica entre Estado e capitalismo internacional” (Tavares e Serra, 1970, p. 178), o que alarga o potencial dinâmico da expansão capitalista local. Vai-se além da estagnação em direção à industrialização pesada, mas não além da dependência nem do subdesenvolvimento. Ou seja, industrialização não implica autodeterminação nacional.6
Em suma, a origem, a estrutura e a dinâmica dos capitalismos na América Latina não são redutíveis à determinação por um dos polos da mediação externo-interno. Embora a transformação mundial seja sobredeterminante, há, nos diversos casos nacionais, diferentes graus de autonomia relativa que devem ser analisados com rigor, inclusive para entender os seus limites e as suas potencialidades estruturais.
Tavares e Serra (1970) ilustram o ponto com a análise do caso brasileiro, questionando a hipótese estagnacionista. Esta confundia preservação da concentração da renda com preservação da subprocura provocada pela descida dos salários de base, mas esta última só afetaria a procura do ramo de bens de consumo não-duráveis. Tal descida poderia inclusive aumentar a rentabilidade nos ramos-líder, bens de produção pesados e bens de consumo duráveis. A sua internalização na década de 1950, graças à solidariedade entre investimentos das empresas públicas e das filiais estrangeiras (que criavam procura umas às outras), modificara a estrutura de emprego. Esta contava agora com uma nova classe média cujos tamanho e renda eram mais do que suficientes para animar o ramo de bens de consumo duráveis e que, junto com a ampliação do contingente de pequenos e médios empresários, também ganhava com a redução do salário de base, via queda de preços de serviços pessoais, por exemplo. Logo, a crise não representara estagnação secular e sim uma desaceleração cíclica dos investimentos que seria revertida graças às reformas financeiras e fiscais executadas pela ditadura depois de 1964, que concentraram ainda mais a renda contra os trabalhadores menos qualificados.
A conclusão da industrialização pesada e a desaceleração cíclica subsequente elevariam necessariamente a capacidade ociosa e a relação capital/produto agregada, mas como efeito e não como causa da desaceleração dos investimentos:
[…]a ideia de que a relação produto-capital declina necessariamente quando se eleva o coeficiente capital-trabalho (que está associada a um esquema analítico de corte neoclássico, de equilíbrio geral) não leva em consideração os efeitos do progresso técnico vinculado à acumulação de capital […] [,] menos demanda de insumos por unidade de produto […] [,] aumento relativo da produtividade do trabalho […] [.] [A] solução para o sistema consistiu em alterar a composição da demanda - redistribuindo a renda pessoal e seus futuros incrementos “para cima”, a favor das camadas médias e altas - e aumentando a relação excedente-salários através da compressão, até mesmo absoluta, das remunerações à massa de trabalhadores menos qualificados. [idem, pp. 164-169]
Assim, a ilusão de que a industrialização capitalista se confunde com eliminação do subdesenvolvimento é radicalmente questionada: “enquanto o capitalismo brasileiro desenvolve-se de maneira satisfatória, a nação, a maioria da população, permanece em condições de grande privação econômica, e isso, em grande medida, devido ao dinamismo do sistema, ou melhor, ao tipo de dinamismo que o anima” (idem, p. 158).
Tampouco pode sobreviver a ilusão de que a industrialização periférica resulte em autodeterminação nacional. Como vimos, o argumento é que só avançou no México e no Brasil pois “alcançou-se uma adaptação flexível ao esquema da ‘nova’ dependência” (idem, p. 177), ou seja, a “internalização” da dependência através do controlo multinacional sobre os ramos-líder:
[O] Estado brasileiro não tem, ao contrário do que ocorria em épocas anteriores, maiores compromissos com a chamada burguesia “nacional” ou com esquemas de tipo populista. Neste sentido, tem as mãos livres para executar as reformas institucionais correspondentes a um acelerado processo de modernização e para promover, inclusive, uma divisão mais concreta de tarefas com o capital estrangeiro (enquanto Estado-empresário). Assim, foi possível uma crescente solidariedade entre ambos no investimento e produção dos chamados setores estratégicos. [idem, p. 178]
O facto de que o capitalismo dependente tem uma capacidade marcante de expansão não significa que evite as desacelerações cíclicas que caracterizam o capitalismo nos centros. Pelo contrário, a “nossa hipótese é de que a tendência à crise de realização […] adquire características mais dramáticas e específicas nos sistemas dependentes subdesenvolvidos, como o brasileiro […] [,] ao serem incapazes de gerar e controlar endogenamente suas formas de incorporação do progresso técnico, passam a ter possibilidades muito limitadas de integrar-se no mercado internacional” (idem, p. 205).
Ou seja, é possível estimular a expansão do mercado interno, mas é impossível evitar as crises de realização posteriores que geram recessões mais agudas, inclusive porque a dependência tecnológica limita a capacidade de complementar a procura interna com exportações industriais significativas. Torna-se necessário, assim, proceder a:
[…] mudanças permanentes e descontínuas na forma da assignação de recursos (geração, apropriação e utilização do excedente), explicadas, por sua vez, pelo caráter solidário da economia com os esquemas renovados de divisão internacional do trabalho […] mediante alterações periódicas e intensas no esquema de concentração da renda e do produto, de maneira a ajustar-se aos novos esquemas de assinação de recursos. Tal situação implica que cada vez que se entre numa nova etapa de desenvolvimento capitalista necessite-se de uma reorganização dos mecanismos de poder - desde os instrumentos de controle estatal e novas formas de solidariedade com os agentes do capitalismo internacional até o plano das alianças de classe. [idem, p. 206]
Em suma, a dependência pressiona para que se transformem instituições e padrões de distribuição de renda para viabilizar uma adaptação flexível à modernização exigida pelo tipo predominante de expansão da filial estrangeira. É por isso que os autores propõem um novo conceito de “modernização” para descrever as transformações estruturais da economia brasileira:
[…] processo de incorporação e difusão da tecnologia moderna [que] se limitou, em cada etapa histórica, aos setores responsáveis pela dinamização do processo e mais estreitamente integrados ao sistema capitalista internacional […] [.] Assim, na fase chamada de primário-exportadora, a modernização limitou-se, em geral, ao setor exportador e à sua infra-estrutura de apoio; na primeira etapa de industrialização baseada na substituição de importações, concentrou-se em certas indústrias de bens de consumo e em alguns serviços urbanos; na segunda etapa, nas atividades do complexo metal-mecânica (bens de consumo durável, insumos e bens de capital) e na química. Finalmente, na etapa atual, caracterizada por um aprofundamento e diversificação do consumo, bem como pelo desenvolvimento das formas de acumulação financeira, a modernização manifestou-se na diversificação e comercialização dos produtos (troca de modelo, marca, serviços de propaganda e serviços financeiros), não exatamente ao nível da estrutura produtiva, no sentido de ampliações e modificações substanciais da mesma […] [.] Isso implica que o processo tenda a acentuar a heterogeneidade estrutural do sistema e também a modificar as condições concretas em que ela se apresenta. [idem, pp. 182-183]7
O artigo “Além da estagnação” mudou os termos do debate sobre o desenvolvimento do capitalismo na América Latina, enterrando as ilusões cepalinas. Mais uma vez, Furtado (1974) cede aos argumentos de Tavares. Embora nem sequer cite a sua crítica, recorre ao mesmo termo proposto por Tavares e Serra (“modernização”) para designar aproximadamente o mesmo processo de mudanças de instituições e de políticas fiscais, financeiras e de rendas (preços e salários) que adaptam a estrutura de procura (embora a limite ao padrão de consumo) aos requisitos de expansão dos investimentos nos setores comandados pela filial estrangeira. Tavares, contudo, não parou na autocrítica, lançando-se na análise da expansão e desaceleração cíclica do “milagre económico” e, principalmente, na reconstituição histórica do processo de industrialização no Brasil sem as amarras conceptuais cepalinas.
A reformulação do foco histórico-estrutural pela economia política estruturalista (EPE)
Voltando ao Brasil pouco antes do golpe chileno de 1973, Tavares foi uma figura central na constituição da chamada Escola de Campinas, ou melhor, da Economia Política Estruturalista, ou EPE (Bastos, 2019). Em alternativa à periodização cepalina (crescimento “para fora” ou “para dentro”) que enfatizava a reação às restrições de balanço de pagamento e a indução da industrialização por substituição de importações, a EPE propunha analisar o capitalismo e as suas mutações no tempo e no espaço, tomando-o como um sistema hierarquizado numa escala global que não eliminava a autonomia relativa e a especificidade dos espaços nacionais. Assim, cada processo de desenvolvimento nacional é determinado em última instância pelo estágio da concorrência capitalista mundial, e apenas em primeira instância pelo potencial de acumulação de capital criado internamente. Apoiados na teoria marxista referente à tendência de concentração e de centralização do capital, e as suas consequências sobre as desigualdades internacionais (capturadas originalmente pelo conceito de desenvolvimento desigual e combinado de Trotsky e modernizadas no modelo de desafio/resposta de Gershenkron), Tavares e outros integrantes da EPE, mormente Mello (1987 [1975]), argumentaram que a centralização do capital e a complexidade técnica da indústria mundial não evoluíam linearmente. Passariam, sim, por saltos qualitativos que modificavam o padrão de atraso histórico dos países não industrializados e os desafios de adaptação institucional para a industrialização. Logo, haveria três padrões de formação do capitalismo: 1) originário, na época da acumulação primitiva num país de passado feudal (a Inglaterra); 2) atrasado, na etapa concorrencial do capitalismo em países de passado feudal (Europa continental) e de colónia de povoamento inglês (EUA); 3) tardio, na etapa monopolista, a partir de um passado colonial, com burguesias importadoras e agrárias dominantes nacionalmente, mas integradas ao mercado mundial de forma subordinada (Oliveira, 2003 [1985]).
Uma consequência é que, depois da Segunda Revolução Industrial e do aparecimento do capitalismo monopolista, a possibilidade de desenvolvimento autónomo afastava-se à medida que a divergência financeira, tecnológica e de escala se ampliava. Desde o final do século XIX, há corporações com potencial de expansão global e que dominam mercados de forma oligopólica com exportações de bens e, crescentemente, de capitais. Em meados do século XX, a estrutura produtiva avançada caracteriza-se por ramos com enormes requisitos mínimos de escala, de financiamento e de capacitação tecnológica, que se integram em parques industriais complexos com complementaridades, indivisibilidades, externalidades e barreiras de grande magnitude à entrada. A participação dos Estados no planeamento setorial, na centralização financeira, no desenvolvimento científico-tecnológico e no investimento por empresas estatais leva alguns analistas a falarem até da formação de economias mistas (Shonfield, 1965).
Para países que foram colónias de exploração como o Brasil e ainda eram essencialmente agrários no início do século XX, o atraso histórico era enorme e não podia ser superado apenas com centralização financeira e progresso tecnológico interno. Exigia-se alguma forma de acesso a tecnologias complexas e patenteadas, seja investimento direto externo (IDE), seja transferência tecnológica explicada por motivos geopolíticos.8 Quando a segunda forma era vedada pela irrelevância geopolítica do país periférico, por exemplo o Brasil comparado com a Coreia do Sul, a Índia ou a China no período pós-Segunda Guerra Mundial, praticamente só restava o IDE.
O ponto é que o processo de industrialização brasileira ocorre numa nova fase do capitalismo que barra a entrada de empresas menores oriundas das economias exportadoras da periferia. Nesta circunstância, industrializar pesadamente exige internalizar um parque integrado por ramos interdependentes, cujas exigências de escala de produção - para não falar de requisitos financeiros e tecnológicos - são muito superiores à procura previamente gerada pela diversificação da estrutura produtiva limitada a ramos industriais leves. Assim, o período da substituição de importações estrito senso não pode saltar automaticamente para a industrialização pesada: a procura interna, que pode ser direcionada das importações para a produção interna, é muito inferior à escala requerida pelos ramos pesados. Dada a sua escala produtiva e financeira, os seus requisitos tecnológicos e de matérias-primas, e o seu longo período de maturação, os projetos industriais pesados não se poderiam realizar isoladamente, de modo parcial e reativo, sem planeamento global dos seus impactos interindustriais. Dada a necessidade de planear, a industrialização pesada não pode ocorrer sem mudanças institucionais significativas no sistema político, no aparelho de Estado e na própria estrutura de financiamento e de propriedade do capital, inclusive sem alguma forma nova de acesso a finanças e a tecnologias de controlo externo.
A complexidade do salto inviabiliza o seu entendimento a partir de simples alterações sucessivas da taxa de câmbio que induzam a substituição de importações ao deslocar a procura local para o mercado local protegido. Com base nesta reflexão, Tavares (1975) passa a entender o esgotamento do processo de substituição de importações no Brasil não no início da década de 1960, como sugerira antes (Tavares, 1963), mas em meados da década de 1950. Este esgotamento não se pode entender como estagnação determinada pela incompatibilidade entre a estrutura de oferta e a estrutura de procura determinada pela distribuição de renda, como Furtado faria mais tarde. Não é a carência do mercado consumidor determinada por baixos salários da maior parte da população que determina o esgotamento, pois a variável dinâmica capaz de estimular ou não o investimento capitalista não é o consumo dos trabalhadores.
O esgotamento ocorre porque, independentemente da distribuição da renda, não é possível saltar automaticamente para a industrialização pesada: o nível absoluto da procura agregada é limitado, principalmente a procura de bens de produção, quando comparada à escala mínima exigida pelo padrão tecnológico vigente na indústria pesada (metalo-mecânica e petroquímica). Aumentar a renda dos trabalhadores elevaria a procura de bens de consumo final para os trabalhadores, mas não asseguraria a realização dos investimentos na indústria pesada, mesmo que o bloqueio se limitasse à escala do mercado. E não se limitava. Além da inexistência de mercado que atraísse a indústria pesada, caracterizado por procura interindustrial e não por bens de consumo final para os trabalhadores, os requisitos financeiros elevados e o controlo das tecnologias por corporações globais formavam barreiras intransponíveis à entrada para empresas privadas nacionais, independentemente do grau de “abstinência” dos seus proprietários.9
Muito mais do que da capacidade de consumo dos trabalhadores, é a magnitude do consumo interindustrial, que é variável fundamental para determinar os limites e as possibilidades da industrialização. Assim, a hipótese furtadiana de estagnação por subconsumo das massas e por carência de poupança em razão do excesso de consumo capitalista não se sustenta. Por exemplo, uma vez instalada a indústria automobilística, a redução do consumo de carros não evita uma estagnação, pois não desloca “poupança” para investimentos, mas tende a reduzir níveis de produção, de emprego e de lucros. Ao contrário de estimular o setor de bens de capital, esta redução da procura tende a desincentivar investimentos, mantendo o resto constante. A retração dos investimentos, por sua vez, diminui a poupança macroeconómica.
A nova periodização do processo de industrialização brasileiro proposta pela EPE enfatiza os esquemas de acumulação de capital e, portanto, os determinantes das decisões (e não-decisões) de investimento em cada período histórico de diversificação da estrutura produtiva. Tais decisões não dependem apenas do potencial de acumulação das empresas privadas nacionais, mas sobretudo do Estado e das filiais atraídas pelo mercado local e pelo plane amento estatal. No caso brasileiro, entende-se que o período entre 1888 e 1933 é o da “economia exportadora capitalista retardatária” - fase na qual ocorre o nascimento e a consolidação da grande indústria (Mello, 1987 [1975]; Tavares, 1975). Particularmente nas regiões exportadoras de café no Sudeste, a indústria leve de bens de consumo e de bens de produção surge com forte dependência do complexo exportador tanto para a realização da produção quanto para a obtenção de divisas para importações de bens de produção. Na década de 1920, contudo, a diversificação industrial avança com IDE nos ramos do cimento e do aço, o que confere maior autonomia da economia perante as importações. Quando a capacidade para importar cai a pique na década de 1930, portanto, há condições materiais para a transição para o período da “industrialização restringida”. Nem todas as economias periféricas tinham condições materiais para realizar esta transição.
Neste período, que se estende entre 1933 e 1955, a indústria desloca a agricultura e se torna setor líder. A relação entre os dois setores inverte-se: ao invés de atender às necessidades do complexo exportador, o complexo urbano-industrial tem as suas necessidades (alimentos e matérias-primas) satisfeitas pela agricultura orientada para o mercado interno. No entanto, ainda conta com os mercados de áreas rurais e, sobretudo, depende das reservas cambiais geradas pelas exportações agrícolas para importar bens de produção cuja produção local é barrada por limites financeiros, tecnológicos ou de escala de mercado. Em rigor, é apenas este período que pode ser descrito como uma industrialização por “substituição de importações”: a diversificação industrial persegue a pauta de importação de bens de consumo e, depois, a de bens de produção leves a cada estrangulamento externo que modifica os preços relativos a favor da produção interna. As importações são gradualmente deslocadas para bens de produção, cujo custo é subsidiado por políticas cambiais que, pela manipulação do câmbio de exportação e de importação, transfere renda de exportadores para indústrias importadoras em ramos considerados essenciais para a continuidade do processo de substituição de importações.
O limite do processo é o bloqueio do acesso a certas tecnologias através do comércio exterior: simplesmente não é possível importar uma fábrica siderúrgica moderna, uma refinaria de petróleo, uma grande hidrelétrica, um estaleiro de transatlânticos ou uma planta automotiva ou petroquímica. A tecnologia é dominada por oligopólios nos países desenvolvidos. O risco tecnológico e a necessidade de recursos são proibitivos para empresas privadas nacionais na periferia. À medida que a pauta de importados passa a concentrar-se em bens sem substitutos internos plausíveis, a industrialização por substituição de importações tende a esgotar-se em meados da década de 1950.
Dados os limites da estrutura empresarial local frente aos desafios da industrialização pesada, esta só ocorreu em razão de novas formas de coordenação estatal e associação externa durante o Plano de Metas do governo Juscelino Kubitschek. Não foi o aumento da capacidade de consumo dos trabalhadores ou da “abstinência” dos capitalistas que propiciou a industrialização pesada, e sim a ampliação das capacitações estatais e a associação ao capital estrangeiro.
Naquela conjuntura, a industrialização pesada não ocorreria no Brasil caso não se articulasse com a mudança nas formas de concorrência capitalista nos países centrais e se adaptasse para atrair certo tipo de IDE. Simplesmente, não havia condições materiais para uma industrialização autónoma. Em meados da década de 1950, a rivalidade oligopólica internacional avançou para um grau superior de exportação de capitais. Em particular, os oligopólios industriais europeus e japoneses reagiram ao “desafio americano” e investiram no exterior, encontrando no Brasil o principal destino periférico no período e, em rigor, o primeiro país subdesenvolvido e dependente que estava a realizar a industrialização pesada (Evans 2018 [1979]).
No caso brasileiro, a atração do capital estrangeiro dependeu do desenvolvimento das capacitações estatais, ao ofertar matérias-primas através de empresas estatais, incentivos fiscais e reservas cambiais, ao distribuir tarefas coordenadas de investimento entre empresas oligopolistas que chegavam ao mercado brasileiro e, sobretudo, ao garantir procura através do planeamento de projetos de investimentos que ofereciam matérias-primas e geravam mercados uns aos outros. Neste sentido, a indústria pesada criava mercados internos à própria acumulação de capital, isto é, através da procura interindustrial ou do consumo produtivo, sem o “menor compromisso com a expansão do consumo das massas nem, muito menos, com suas ‘necessidades’” (Belluzzo e Mello, 1977, p. 143).
O crescimento económico no período da industrialização pesada elevou-se em razão do chamado efeito acelerador do investimento, assim como dos diversos efeitos de encadeamento que acompanharam a diversificação rápida da estrutura industrial. O investimento nos ramos de material elétrico, metalo-mecânico e de transporte expandiu-se respetivamente às taxas de 38% a. a., 43% a. a. e 80% a. a. entre 1955 e 1959. A produção do ramo de bens de capital cresceu 26,4% a. a. entre 1955 e 1962, enquanto a de bens de consumo duráveis expandiu-se à taxa de 23,9% a. a. O stock de capital na indústria duplicou no Plano de Metas, enquanto a participação do Estado na formação bruta de capital fixo chegou a 47,5% (Serra, 1980). A este crescimento acelerado seguiu-se uma desaceleração forte na década de 1960. Furtado interpretaria a desaceleração como uma estagnação resultante do desajuste entre a alta densidade de capital da indústria, a baixa “abstinência” dos capitalistas e o subconsumo das massas.
A partir de 1968, contudo, a economia voltou a crescer aceleradamente sem que a densidade de capital da indústria se reduzisse, sem que a abstinência dos capitalistas aumentasse e sem que o subconsumo das massas se revertesse, antes pelo contrário. Isto refutava empiricamente a hipótese de estagnação, exigindo outra explicação teórica. Recorrendo a Kalecki (1977 [1968]; 1977 [1971]), Tavares (1975) defendeu novamente que a “estagnação” proposta por Furtado (1966) era, na verdade, uma desaceleração cíclica determinada endogenamente pela própria expansão prévia. E que a retoma posterior seria preparada por reformas institucionais e políticas económicas que ampliaram a concentração do património e da renda, ao contrário do que Furtado (1966) considerava imprescindível.
No que tange à desaceleração, a nova estrutura produtiva criada durante o Plano de Metas trazia uma dinâmica cíclica inevitável porque os investimentos tinham uma escala produtiva que determinava grande capacidade ociosa, em parte por conta de características tecnológicas (requisito técnico de escala) e, em parte, como resultado de estratégia de concorrência microeconómica, considerando os longos prazos de maturação física e de amortização financeira. As desproporções entre os ritmos de expansão e ocupação da capacidade entre ramos industriais também eram responsáveis pela desaceleração. A resultante macroeconómica é que, até que se pudesse prever quando se ocuparia a capacidade ociosa, os investimentos cairiam abruptamente depois da materialização da capacidade instalada, influenciando o comportamento da procura agregada. Assim, para analisar a dinâmica macroeconómica, importava analisar a estrutura de mercado e as estratégias de concorrência microeconómica em cada um dos ramos- líder da industrialização pesada. Por isso, Tavares (1975; 1998 [1978]) combinaria Kalecki com clássicos do campo da concorrência oligopolista como Steindl e Sylos-Labini (Robilloti, 2016).
Relativamente à retoma, a ocupação espontânea da capacidade ociosa seria muito lenta e gradual, sem políticas anticíclicas que sustentassem exogenamente a procura agregada e, mais precisamente, a orientassem para ocupar a capacidade instalada na estrutura produtiva criada durante o Plano de Metas. Ou seja, embora a desaceleração cíclica tivesse determinantes endógenos, a retoma dependia de gasto externo à indústria. Assim como a industrialização pesada só se viabilizou com um grande volume de investimento público, a reativação do gasto público e do crédito ao consumo de bens duráveis foram fundamentais para o início do chamado “milagre económico” em 1968. Para ocupar a capacidade ociosa da indústria, portanto, não se mostrou necessário nem obrigar os capitalistas e os seus assistentes de colarinho branco a consumirem menos nem permitir os trabalhadores manuais de consumirem mais. Pelo contrário, as reformas institucionais que condicionaram a recuperação do gasto ampliaram a concentração do património e da renda. Talvez não fosse necessário ser assim para garantir a retoma, mas certamente não era necessário ser o oposto como supunha Furtado. A conclusão é que o desenvolvimento capitalista não tem como finalidade o consumo das massas nem precisa de eliminar o subconsumo das massas (e a pobreza) para prosseguir, muito menos eliminar a dependência externa.
Considerações finais
O artigo argumentou que a obra de maturidade de Conceição Tavares realiza um esforço de integração entre o método histórico-estrutural, o marxismo e a macroeconomia heterodoxa que lhe permite superar vários problemas analíticos do estruturalismo latino-americano. A obra retém, contudo, as vantagens do método histórico-estrutural em relação à teoria neoclássica e às tentativas de aplicação de seus axiomas à periferia do capitalismo. O estruturalismo latino-americano avançara em relação aos neoclássicos, mas o seu avanço era limitado pela preservação de vários supostos teóricos cabíveis apenas no campo neoclássico. Tavares retém a ideia de que a dinâmica capitalista depende da estrutura do capitalismo em questão, ao invés de repetir leis a-historicamente. No entanto, avança no entendimento da dinâmica ao a integrar com a estrutura e a mudança estrutural por meio de uma historicização dos esquemas de reprodução do capital kaleckianos. Ao fazer isto, Tavares ajudou a construir as bases de uma escola de pensamento económico na periferia do capitalismo, reelaborando o método histórico-estrutural na chamada “Escola de Campinas”, em que história, estrutura e economia política se integram numa Economia Política Estruturalista. Foi exatamente nesse sentido que o programa de investigação, para cuja formação Tavares contribuiu, se desenvolveu nas instituições de pós-graduação em economia de que foi integrante pioneira, a Unicamp (Campinas) e a UFRJ (Rio de Janeiro), desdobrando-se depois em outras instituições.
Não há espaço para nos desviarmos do foco do artigo e discutir com profundidade a evolução do programa de pesquisa e os desafios colocados para a sua atualização teórica e empírica diante das transformações na economia mundial, na América Latina e na economia brasileira, cabendo apenas apontar o sentido geral do programa. Ao periodizar a história, o programa prescreve combinar as transformações do capitalismo global à mutação das estruturas nacionais do capitalismo. Assim, a periodização captura a mutação das estruturas que, em cada época, tem uma dinâmica que pode ser entendida como o movimento de um esquema kaleckiano de reprodução ampliada do capital, dando maior densidade à análise económica das situações de dependência. A estrutura expande-se, ativada por itens de procura que se devem investigar concretamente, gerando efeitos multiplicadores, aceleradores e de encadeamento avaliados pelos esquemas de reprodução setorial. As desproporções setoriais e os problemas de realização produzem ciclos económicos, relacionados com a evolução das exportações e do financiamento externo. Depois de cada crise, a recuperação ocorre com apoio da política económica, eventualmente com modificações da estrutura de financiamento da acumulação que permitem superar estrangulamentos produtivos e/ou adequar a estrutura de procura à estrutura de oferta, ativando a sua expansão. Daí a importância conferida às instituições que adequam os esquemas de gasto às estruturas e às suas mudanças. Como a operação das instituições é relativamente exógena aos automatismos da economia, abre-se espaço analítico para as circunstâncias políticas e sociais que influenciam a reforma institucional e a política económica, evitando-se tanto o economicismo quanto o voluntarismo político na análise.
É claro que este método não estava restrito à aplicação ao caso brasileiro, e o própria Tavares (1992) abordaria outros casos nacionais a partir deste. Como o capitalismo tende a superar as crises estruturais e os limites colocados pela sua organização prévia com novas mudanças estruturais que acentuam a centralização do capital e a complexidade tecnológica, as regiões atrasadas são aquelas onde as transformações estruturais e as adaptações institucionais ocorrem de modo limitado ou nem sequer ocorrem. A adaptação institucional e tecnológica é uma exigência problemática porque uma ou mais das revoluções tecnológicas e das formas históricas superiores de coordenação de decisões e de mobilização de recursos contornam as regiões atrasadas. Avaliar as mudanças estruturais no capitalismo avançado é, portanto, fundamental para entender a alteração das condições de atraso histórico e as condições de adaptação mais ou menos dinâmica dos espaços periféricos. Afinal, desde o século XIX, as exportações de capital ganham importância em relação às exportações de bens para construir as assimetrias internacionais. Para entender como as exportações de capitais oriundas dos centros se integram (ou não) nos esquemas de acumulação relativamente autónomos nas periferias, por exemplo na época da mundialização e financeirização capitalistas, é preciso entender como os esquemas se constituem, quais os seus limites, os seus movimentos cíclicos e as suas formas de dependência externa.
A criatividade intelectual de Maria da Conceição Tavares entrelaçou-se com uma obsessão pela construção de uma teoria integrada na investigação histórica, historicizando conceitos para apreender de maneira mais global a realidade particular investigada, principalmente o problemático processo de acumulação de capital na América Latina. Com uma legião de orientandos, alunos, leitores e, durante uma legislatura, eleitores, não é exagero afirmar que a matemática de formação, portuguesa de origem, é a mais influente e instigante economista brasileira da história.