Há algumas décadas, o capitalismo maquínico, informacional e digital, sob condução financeira, vem se desenvolvendo para que a produtividade do capital se valorize sempre em seu ponto de ápice.1 Ao proceder desse modo, as corporações globais ampliam seus lucros e exasperam a competitividade entre elas, introduzindo cada vez mais um maquinário altamente avançado, capaz de potencializar exponencialmente a utilização da força de trabalho. Para tanto, a “flexibilização” do mercado de trabalho tornou-se condição sine qua non para o universo corporativo.
As empresas públicas, que anteriormente ofertavam serviços socialmente úteis, sem fins lucrativos, ao serem privatizadas, introduziram o lucro em seu modus operandi, tornando-se, inclusive, partícipes (direta ou indiretamente) do processo de valorização do capital. Assim, ao contrário da apregoada retração ou desaparição da lei do valor, estamos descortinando uma mutação e mesmo uma ampliação em suas engrenagens, através da introdução de novas formas de apropriação de trabalho excedente e de sua potencialização. E essa processualidade vem se tornando cada vez mais responsável pela eliminação de uma massa de trabalhadores e de trabalhadoras que não mais encontra labor e que se amplia ainda mais com os fluxos migratórios internacionais, somando-se aos bolsões de descartáveis, subempregados e desempregados (Basso e Perocco, 2008).
Para as grandes corporações, a ampliação e intensificação dos tempos de trabalho geradores de lucro e de mais-valor tornaram-se ainda mais vitais frente à intensa competição que travam entre si para ampliar seu domínio no mercado, tanto na indústria, na agricultura e nos serviços, como em suas interconexões conhecidas (agroindústria, serviços industriais e indústria de serviços) e presentes nas novas cadeias produtivas de valor.
Foi central para esta reorganização dos capitais a expressiva expansão do setor de serviços, cada vez mais subordinado à forma-mercadoria. Essa configuração, além de desmoronar o mito de que a “sociedade de serviços, pós-industrial” eliminaria a classe trabalhadora, fez deslanchar uma significativa expansão do novo proletariado de serviços na era digital. Tal processualidade, contrariamente ao que foi propugnado nas últimas décadas, não levou à perda de relevância, mas à ampliação de novas formas geradoras do valor, ainda que frequentemente assumindo a aparência do não-valor.
Como é possível, então, pensar na vigência e atualidade do valor, quando os serviços, as tecnologias de informação e os algoritmos parecem comandar o mundo das grandes corporações?
Os serviços se convertem em mercadoria
Para enfrentar esta questão é necessário fazer um pequeno excurso analítico.
Foi no Livro II de O Capital que Marx (2014) ofereceu pistas seminais sobre a teoria do valor-trabalho, para além do universo da produção industrial. Demonstrou que, dado que o objetivo central do capital é a sua valorização, tanto a redução do tempo de produção, como a do tempo de circulação tornavam-se de grande importância, uma vez que o tempo global do capital depende de ambos, sendo este, por sua vez, um dos desafios cotidianos da engenharia do capital.
Tal movimento se dá porque, enquanto a mercadoria (material ou imaterial) não é produzida e vendida, não se efetiva a realização do mais-valor. Desse modo, acrescenta Marx, o tempo de circulação se converte também em um limitador do tempo de produção. Por isso, quanto mais o tempo de circulação do capital se aproxima de zero, maior é a sua produtividade (Marx, 2014, pp. 204-205)2. E Marx exemplifica ao destacar exemplos da indústria de transportes, armazenamento, comunicações, dentre outros, nos quais, apesar de não ocorrer produção material, há geração de mais-valor. Se é fato que Marx sempre enfatizou que o mais-valor nasce na esfera da produção, demonstrou também que, particularmente em nos setores acima citados, se desenvolve um processo de produção dentro do processo de circulação, que acaba por convertê-los em ramos produtivos. Vejamos suas palavras:
Mas o que a indústria dos transportes vende é o próprio deslocamento de lugar. O efeito útil obtido é indissoluvelmente vinculado ao processo de transporte, isto é, ao processo de produção da indústria dos transportes. Homens e mercadorias viajam num meio de transporte, e sua viagem, seu movimento espacial, é justamente o processo de produção efetuado. O efeito útil só pode ser consumido durante o processo de produção; […] Mas o valor de troca desse efeito útil é determinado, como o de toda e qualquer mercadoria, pelo valor dos elementos de produção nele consumidos (força de trabalho e meios de produção) acrescido do mais-valor criado pelo mais-trabalho dos trabalhadores ocupados na indústria dos transportes. [Marx, 2014, pp. 133-134, grifos meus]
Desse modo, o valor que foi gerado na indústria dos transportes é determinado “[…] em parte por meio da transferência de valor dos meios de transporte, em parte por meio do acréscimo de valor gerado pelo trabalho de transporte. Esta última adição de valor se decompõe, como em toda produção capitalista, em reposição de salário e mais-valor” (Marx, 2014, p. 229).
Assim, evidencia-se a tese de que também nas atividades de circulação, que não geram produção material, ou, nas palavras do autor, se realiza também um processo de produção dentro do processo de circulação. E é exatamente nesta formulação, como veremos adiante, que encontramos uma pista seminal para se pensar o mundo dos serviços no capitalismo contemporâneo.
Vale recordar que Marx (2013, 2014) apresenta, em O Capital, uma concepção ampliada de indústria que transcende em muito a indústria de transformação e incorpora também a indústria de serviços. E, ao assim proceder, amplia significativamente o sentido do que é produtivo para o capital, como se pode constatar no Livro I. Em suas palavras:
Para trabalhar produtivamente, já não é mais necessário fazê-lo com suas próprias mãos; basta, agora, ser um órgão do trabalhador coletivo, executar qualquer uma de suas subfunções. A definição original do trabalho produtivo […], derivada da própria natureza da produção material, continua válida para o trabalhador coletivo, considerado em seu conjunto. Mas já não é válida para cada um de seus membros, tomados isoladamente. [Marx, 2013, p. 577, grifos meus]
E acrescenta:
A produção capitalista não é apenas produção de mercadorias, mas essencialmente produção de mais-valor […]. Só é produtivo o trabalhador que produz mais-valor para o capitalista ou serve à autovalorização do capital. Se nos for permitido escolher um exemplo fora da esfera da produção material, diremos que um mestre-escola é um trabalhador produtivo se não se limita a trabalhar com a cabeça das crianças, mas exige de si mesmo até o esgotamento, a fim de enriquecer o patrão. Que este último tenha investido seu capital numa fábrica de ensino, em vez de numa fábrica de salsichas, é algo que não altera em nada a relação. [Marx, 2013, p. 578, grifos meus]
E essa formulação acima lhe permite acrescentar outro elemento decisivo:
Assim, o conceito de trabalhador produtivo não implica de modo nenhum apenas uma relação entre atividade e efeito útil, entre trabalhador e produto do trabalho, mas também uma relação de produção especificamente social, surgida historicamente e que cola no trabalhador o rótulo de meio direto de valorização do capital. Ser trabalhador produtivo não é, portanto, uma sorte, mas um azar. [Marx, 2013, p. 578, grifos meus]
Feitas estas indicações, o essencial da concepção marxiana acerca do que é trabalho produtivo pode ser desse modo resumido (Antunes, 2018):
trata-se de trabalho que gera mais-valor;
é aquele pago por capital-dinheiro e não por renda.
é resultado do trabalho coletivo, social e complexo e não mais do trabalho individual;
é aquele que valoriza o capital, não importando se o resultado de seu produto é material ou imaterial;
mesmo quando realiza atividades similares, o trabalho somente poderá ser definido como produtivo em função da relação social que lhe possibilita participar da criação e valorização do capital. Assim, atividades assemelhadas ou mesmo iguais quanto à sua natureza, para serem consideradas produtivas, dependem de sua real participação no processo de valorização do capital e de criação de mais valor;
por fim, todo trabalho produtivo, no capitalismo pleno, deve ser assalariado, ainda que nem todo trabalho assalariado seja produtivo (Marx, 1994, 2013).
Não sendo possível, neste espaço, avançar mais detidamente nestas densas formulações, queremos tão somente indicar, então, que no pensamento marxiano e em sua crítica da economia política encontramos pistas férteis que se constituem em pontos de partida para que possamos obter uma intelecção mais precisa das formas contemporâneas de extração do mais valor.
Essa intelecção pode ser observada especialmente a partir da enorme capacidade que o capitalismo tem demonstrado em articular as produções de talhe predominantemente material, que têm grande prevalência na indústria de transformação, com aquelas nas quais se ampliam as atividades imateriais, que vêm se desenvolvendo celeremente em especial nos serviços, em uma fase em que o capitalismo converteu a informação em uma mercadoria com alto valor de troca (Vincent, 1993; Tosel, 1994; Antunes, 2013, 2020a).
As plataformas e o milagre algorítmico
Com a ampliação do universo digital, através das tecnologias de informação e de comunicação presentes cada vez mais na produção (em sentido amplo), encontramos novos componentes que merecem uma análise cuidadosa, de modo a melhor captar qual o papel que essas tecnologias vêm desempenhando nas formas de acumulação presentes no capitalismo contemporâneo. Isso porque estes novos espaços produtivos, cada vez mais conectados com as plataformas digitais e com o mundo dos algoritmos, vêm tendo enorme destaque na geração de lucros e mesmo na geração de mais valor, obrigando-nos, então, a procurar melhor compreender como as grandes plataformas digitais - verdadeiras corporações globais - vêm participando do que Srnicek (2017) denominou como capitalismo de plataforma.
Foi refletindo sobre o papel do trabalho no capitalismo de plataforma que Ursula Huws (2014) desenvolveu sua rica conceitualização sobre o cybertariat, conjunto de assalariados e assalariadas da indústria de software, call centers, telemarketing e que trabalham com instrumentos digitais, ao mesmo tempo em que vivenciam condições de trabalho frequentemente precarizadas, especialmente quando comparadas aos períodos anteriores à era da cibernética, da informática e da telemática.
E essa tendência mais homogênea à precarização ocorre paralelamente à heterogeneização das atividades laborativas. E isso ocorre uma vez que a expansão das tecnologias de informação e comunicação (em vários setores como fábricas, agricultura, escritórios, lojas, transportes etc.) se efetiva tanto pela intensificação do trabalho digital, on-line, quanto da ampliação, especialmente nos países do Sul, das atividades mais rotineiras, ditas manuais, configurando, segundo Huws (2014), o cybertariat, o novo proletariado da era digital. Contraditando as teses que compreendem o trabalho digital como “aparentemente desmaterializado, vinculado às tecnologias de informação e comunicação (TIC)”, Huws (2014, p. 157) destaca que as chamadas atividades virtuais não podem ocorrer, por exemplo, sem as mercadorias que são produzidas nas sweatshops da China ou em outros países localizados no Sul do mundo. É como consequência dessa imbricação entre distintas atividades presentes nas cadeias produtivas de valor, que nenhum smartphone, tablet ou assemelhado poderia funcionar sem resultar de alguma modalidade de trabalho manual.
O mito do trabalho digital sem vinculação com a atividade humana, então, se desfaz, segundo a autora: sem a produção de energia, cabos, computadores, celulares e tantos outros produtos materiais; sem o fornecimento das matérias-primas; sem o lançamento de satélites espaciais para carregar os sinais; sem a construção de edifícios onde tudo isso é produzido e vendido, sem a produção e a condução de veículos que viabilizem sua distribuição, sem toda essa infraestrutura material, a internet não poderia sequer existir e menos ainda ser conectada (Huws, 2014, p. 157-158).
Partido desta formulação, Ursula Huws (2014) oferece outra pista analítica profícua acerca de como e onde se realiza a criação de valor: é imperioso estudar todo processo de produção, desde suas primeiras ações, até a entrega final das mercadorias. Somente desse modo será possível compreender quais são as atividades geradoras de lucro e de mais-valia, isto é, aquelas que se encontram dentro do nó e, portanto, “diretamente produtoras de mais valia para o capital” (Huws, 2014, p.166-167).
Dada a crescente amplitude das cadeias produtivas de valor, as atividades dentro do nó encontram-se, segundo a autora, em um amplo leque de atividades como “marketing, gestão da logística, distribuição, transportes, atendimento ao consumidor, vendas no varejo e atacado (seja on-line ou off-line) e entrega de produtos”, isto é, é na “totalidade da cadeia de suprimentos, da entrada da fábrica (ou do local onde se desenvolve o software) até o consumidor”, que está o trabalho produtivo, gerador de mais valor (Huws, 2014, p. 167).3
Vamos apresentar, então, alguns exemplos mais emblemáticos de como as plataformas atuam, interagem e alteram o mosaico que compõe a nova morfologia do trabalho. Comecemos pelo exemplo recente mais exuberante. A Amazon (incluindo a Amazon Mechanical Turk) é de grande significado. Combina atividade digital com formas mais intensas de trabalho manual, físico e intensificado. Depoimentos de trabalhadores nos EUA demonstram que caminhar 24 ou 25 km ao longo do dia, para buscar nas prateleiras os produtos a serem enviados em tempo veloz aos consumidores, é prática sistemática. Embalar 120 a 200 produtos por hora, trabalhar 55 horas por semana e até 10 horas por dia, em períodos de vendas intensas, como no período natalino, compõe o cotidiano de trabalhadores em sua unidade de Tilburi, na Inglaterra, onde se encontra o seu maior centro de e-commerce na Europa, no qual são vendidos mais de 1 milhão e 200 mil produtos por ano, conforme relato feito pelo jornalista Alan Selby (2017).
E tudo isso vem ocorrendo ao mesmo tempo em que lojas da Amazon já operam, nos EUA, sem a presença de funcionários, uma vez que tudo é feito pela via digital. Merece destaque particular a Amazon Mechanical Turk, que vem se desenhando como uma imensa plataforma global que opera nas mais diferentes atividades, em várias áreas e espaços do globo, utilizando-se dos mais diferentes tipos de trabalho, frequentemente contratados à margem da legislação protetora do trabalho, sob o pretexto de serem “prestadores de serviços”, tendência facilitada pela enorme massa de trabalhadores e de trabalhadoras que vivenciam o desemprego, o subemprego, a informalidade e a intermitência (Grohmann, 2020; Fonseca, 2020).
O complexo corporativo Uber é outro exemplo expressivo. Nasceu nos EUA e em pouquíssimo tempo se transformou em uma empresa global. Nela, trabalhadores e trabalhadoras (aqui sempre contemplando a divisão sociossexual, racial e étnica do trabalho), com seus automóveis, motos, bicicletas, celulares, mochilas, etc., arcam com as despesas de manutenção de seus veículos, alimentação, limpeza, etc., enquanto o “aplicativo” se apropria do sobretrabalho gerado pelos “serviços” dos/as motoristas, sem que se contemplem os deveres trabalhistas vigentes nos países onde a “plataforma” opera. O discurso da empresa é límpido:
A Uber é uma empresa de tecnologia que cria oportunidades ao colocar o mundo em movimento. Encaramos os desafios mais complexos para ajudar nossos parceiros e usuários a se locomover usando uma plataforma integrada de mobilidade presente em mais de 10 mil cidades do planeta. A ideia surgiu em 2009 e a Uber Technologies Inc. foi fundada oficialmente em junho de 2010, na cidade de São Francisco, nos Estados Unidos. Inicialmente focada em um serviço com carros de luxo, a empresa expandiu rapidamente o portfólio de produtos e sua presença pelo mundo, com o objetivo de aproximar pessoas e revolucionar o modo de se movimentar nas cidades. Seja para uma viagem de carro, uma volta de bicicleta ou para pedir um sanduíche, a Uber usa a tecnologia para dar às pessoas o que elas querem, quando e onde elas precisam. [Uber, 2020]
O algoritmo, esse novo fetiche do mundo empresarial, passou a ditar os ritmos e tempos do capital. E, se não bastasse a intensidade da exploração do trabalho humano (praticado pela Uber e por um leque imenso de empresas similares, como Cabify, 99, Rappi, Lyft, Ifood etc.), onde encontramos jornadas de trabalho que remetem aos primórdios da Revolução Industrial, a mesma Uber, há vários anos, vem desenvolvendo um projeto piloto de funcionamento dos carros sem motoristas, automatizados, digitalizados e comandados pela inteligência artificial (contando somente com um vigia humano interno). Este experimento sofreu, entretanto, um rude golpe com o atropelamento que ocorreu nos EUA, em março de 2018, e que resultou na morte de uma mulher transeunte. E mais, neste mundo onde a informação é mercadoria que vale ouro, a Uber se qualifica como uma plataforma que detém informações, só para dar um exemplo, de todo o sistema mundial de transportes, das grandes às pequenas cidades.
Pelo que pudemos depreender da nossa pesquisa aos antecedentes mais recentes destas tendências, talvez possamos encontrar no Zero Hour Contract (contrato de zero hora) um dos principais precursores do que hoje se conhece amplamente como trabalho uberizado. Trata-se de uma modalidade de trabalho que se desenvolve no Reino Unido há várias décadas, que obteve um expressivo crescimento neste século, e que vem se ampliando cada vez mais globalmente (Antunes, 2018).
Sem obrigatoriedade de solicitá-lo, por parte da plataforma demandante, nem de realizá-lo, por parte dos trabalhadores - daí a denominação contrato de zero hora - essa modalidade de trabalho pode vicejar a partir da incorporação de um amplo contingente de força sobrante nas mais diversas atividades, dada sua condição de desemprego. Tal condição coloca esses trabalhadores e trabalhadoras à disposição das “plataformas”, esperando uma chamada para realizar determinada atividade. E quando esta solicitação é feita, o pagamento percebido se refere ao estritamente realizado, independente do tempo que ficam à espera da solicitação. Mais ainda, dadas as suas particularidades, são trabalhos que também se expandem à margem da legislação protetora do trabalho, dada a inexistência de um contrato laboral. Esta modalidade de trabalho englobou, desde seu início, um leque imenso de trabalhadores e de trabalhadoras, de que foram e ainda são exemplos os/as médicos, enfermeiro/as, trabalhos do care (dos cuidados de idosos, crianças, doentes, portadores de necessidades especiais, etc.), motoristas, eletricistas, advogado/as, serviços de limpeza, consertos domésticos, dentre tantos outros (Maeda, 2019).
Vale destacar que há uma importante diferença entre o trabalho uberizado e o sistema zero hour contract: é que neste não há nem a obrigatoriedade da chamada e nem do respectivo atendimento. A existência de uma enorme força sobrante de trabalho permite que as empresas tenham um vasto plantel disponível para suprir suas necessidades. Já no sistema Uber, os/as motoristas não podem recusar as solicitações (em geral tem um limite de três recusas, desde que justificadas), já que, ao fazê-lo, correm o risco de serem demitidos, “desligados” unilateralmente pela plataforma.
Cria-se, desse modo, uma disponibilidade enorme para o labor, possibilitada pela expansão do trabalho on line, digital, pelos “aplicativos” e plataformas que se utilizam cada vez mais intensamente dessa força de trabalho sobrante que, entretanto, é apresentada pelas plataformas como “prestadora de serviços”, “trabalho autônomo”, configurando modalidades de trabalho que mascaram o trabalho assalariado, individualizando-o, invisibilizando-o e, assim, escapando da legislação social do trabalho existente nos países onde estas plataformas atuam.
Trabalhadores/as se metamorfoseiam, então, em empreendedores, que devem imaginar seu modo de vida como uma forma de empresariamento, uma espécie de burguês-de-si-próprio. No entanto, o que se efetiva muitas vezes e sem que se perceba é a condição de proletário-de-si-mesmo. Parece florescer, então, uma curiosa figura, a do empreendedor-proletário. Mas, se o novo elixir do capital global consiste em criar um enorme contingente de trabalhadores com o ideário e a subjetividade empresarial, gerencial, é bom recordar a recente tentativa de greve mundial de motoristas da Uber, em maio de 2019, bem como os encontros que vêm se realizando visando a criação de um sindicato internacional dos trabalhadores uberizados, o que já indica um primeiro registro de que o trabalho uberizado e o das plataformas têm suas “disfunções” e contradições, gerando crescentes descontentamentos entre seus “colaboradores” (Cant, 2019; Gonsales, 2020).
Outro exemplo desta modalidade intensificada de exploração do trabalho, denominada trabalho pago a voucher, teve vigência na Itália até o início de 2017. Conforme as regras então estabelecidas, os assalariado/as ganhavam um voucher pelas horas de trabalho realizadas, calculadas tendo como referência o salário mínimo legal. Se não bastasse esse vilipêndio, trabalhos extras eram muitas vezes “contratados por fora do voucher”, com a condição de um pagamento ainda menor do que o salário mínimo, o que significa uma precarização ainda maior do trabalho ocasional e intermitente. É como se existisse uma dupla forma de precarização: aquela que é “legal” e outra “ilegal”.
Os “incansáveis” e o trabalho integral
Além das tendências anteriormente indicadas, estamos presenciando também a ampliação de formas de externalização do trabalho, de que são exemplos o teletrabalho e o home office, que se acentuaram exponencialmente durante a pandemia do coronavírus (Antunes, 2020b, 2022; Perocco, Antunes e Basso, 2021). Se essas modalidades podem aparentar “vantagens” à classe trabalhadora, como não perder tempo para ir e voltar ao trabalho, cuidar melhor da alimentação, possibilitar uma “melhor divisão” entre trabalho produtivo e reprodutivo, dentre outros exemplos, mas pode significar também uma porta de entrada para a redução e mesmo eliminação dos direitos do trabalho e da seguridade paga pelas empresas, além de incentivar o isolamento e individualização do trabalho, que se vê desprovido da sociabilidade que emerge no espaço social laborativo, fraturando ainda mais o coletivo e distanciando os trabalhadores e as trabalhadoras de suas formas de representação e de organização sindical e do convívio social. Este processo atinge mais fortemente o trabalho feminino, possibilitando, como temos visto durante a pandemia no Brasil, a intensificação da dupla jornada de trabalho, agravando as formas de opressão do patriarcalismo e aumentando os feminicídios, etc.
Há ainda outro aspecto de relevo, dentre tantas outras resultantes negativas que poderíamos desenvolver: estamos presenciando cada vez mais o fim da separação entre o tempo de vida no trabalho e fora do trabalho. Cada vez mais os trabalhos se estendem para a totalidade do dia e invadem a noite, seja no espaço produtivo, seja no reprodutivo, ampliando ainda mais a disponibilidade integral para o trabalho, seja na empresa, seja no espaço doméstico (Cantor, 2019).
O exemplo abaixo traz a concepção norteadora do ideário que predomina no universo gerencial de “Atração e Seleção” de um grande banco no Brasil e é mais do que emblemática do imperativo da dedicação integral ao trabalho. Segundo seu ideário e sua pragmática, “mais do que habilidades técnicas”, o banco “busca candidatos que querem fazer a diferença: os inventivos, os incansáveis, os improváveis, os interessados, os indignados e os inquietos”, descritos da seguinte forma:
Os indignados | O Itaú admira profissionais que trazem novas ideias “É importante compartilhar as ideias que surgem. Quando a pessoa filtra demais para falar, muitas ideias são perdidas e o novo não é implementado”, explica a gerente.
Os interessados | Nós buscamos pessoas que se identificam com os nossos valores e nossas causas e que estejam comprometidas com os desafios e a proposta de mudança do banco.
Os improváveis | Os profissionais ainda pensam que o mercado financeiro oferece oportunidades de desenvolvimento somente para administradores e engenheiros. E, na verdade, o Itaú oferece oportunidades para as mais diferentes carreiras: físicos, matemáticos, jornalistas, psicólogos, profissionais de TI, etc. É a diversidade de profissionais que faz o Itaú ser a empresa que é.
Os incansáveis | Queremos tentar, tentar e tentar. E quando estiver bom, queremos tentar um pouco mais. Por isso, admiramos profissionais que têm paixão pela performance e que persistem para superar os obstáculos.
Os inventivos | Profissionais inventivos são essenciais para a mudança: são aqueles com criatividade e desejo de pensar diferente para inovar. E a inovação é vital tanto para a criação de um novo produto ou serviço como para a melhoria do processo. [Itaú, 2020].
E, ao mesmo tempo em que amplas parcelas da classe trabalhadora se encontram com jornadas extenuantes de trabalho (Basso, 2018), para outros a existência de trabalho é cada vez mais esporádica, intermitente e parcial. Como a subutilização é um traço distintivo do nosso tempo e a desregulação é o seu corolário “natural”, florescem outras modalidades de trabalho para fugir do desemprego: crowdwork, que são espaços compartilhados de trabalho onde sociabilidade, insegurança e competição se retroalimentam; self-employment, para preencher o subemprego, acalentando a ilusão da felicidade e a vivência pragmática cotidiana da irrealização. E, como consolo, anunciam-se “novas profissões”, como a do coaching, uma espécie consolador “espiritual” (para minimizar o mal estar na civilização) e assim tentar recuperar a “autoestima” daqueles que foram corroídos pelos engenhosos mecanismos dos capitais.
Nos escalões de controle e de comando, o ideário empresarial também é “inovador”: “gestão de pessoas” é a nova designação (para aqueles que anteriormente eram denominados como “gerentes de recursos humanos”) com a função precípua de efetivar os cortes, liofilizar o trabalho vivo (Castillo, 1996) e envolver os “colaboradores” nas pragmáticas empresariais; o “CEO” (Chief Executive Office) é o substituto dos antigos presidentes, diretores ou assemelhados que comandam as corporações, despersonalizando a figura dos proprietários e profissionalizando suas antigas funções.
Assim, combinando uma enorme multiplicidade de trabalhos, estamos vivenciando uma expressiva expansão do trabalho digital,4 que convive com novas práticas corrosivas de trabalho, e que exemplificam as pragmáticas do capital em sua desmedida empresarial, para recordar a formulação de Daniele Linhart (2007, 2015). E, neste cenário de derrelição do trabalho e de seus direitos, aumentam os adoecimentos, depressões, assédios, desencantos, estranhamentos, alienações, acidentes, mortes, suicídios, etc. (Seligmann-Silva, 2011; Praun, 2016; Heloani e Barreto, 2018).
Plataforma e protoforma
Os elementos anteriormente indicados nos permitem apresentar duas hipóteses críticas. A primeira pode ser assim indicada, sob a forma de indagação: será que o capitalismo de plataforma tem algo em comum com a protoforma do capitalismo?
Vimos que o capitalismo de plataforma, sendo plasmado por relações sociais do capital, acaba por subsumir o arsenal informacional-digital prioritariamente às necessidades de sua autoexpansão e valorização. E, ao assim proceder, recorre, uma vez mais, a formas pretéritas de exploração e espoliação do trabalho que o século XX já se encarregara, em alguma medida, de eliminar, ou pelo menos restringir, ao menos em vários países do mundo.
Já a protoforma do capitalismo foi marcada pela enorme superexploração do trabalho, nos primórdios do universo fabril em Manchester, berço da Revolução Industrial, cujas jornadas de homens, de mulheres e de crianças ultrapassavam 12, 14, 16 horas por dia, além de se utilizar o putting-out system e o outsourcing, formas de externalização do trabalho frequentemente baseadas no pagamento por peça, sem falar na exploração do trabalho escravizado do negro e do indígena nas colônias da América Latina, durante a chamada acumulação primitiva.
Em outras palavras, parece existir uma aproximação entre estas distintas fases históricas do capitalismo. Isso porque, em plena era digital, intensificam-se as modalidades de sucção do excedente de trabalho (intelectual e manual) em todos os espaços onde o capital se reproduz, exatamente no período em que, dado o espetacular avanço tecnológico, a jornada de trabalho poderia ser significativamente reduzida. Mas a ininterrupta competição entre as corporações globais se converte em um obstáculo intransponível. Provocativamente, então, talvez estejamos presenciando uma variante de acumulação ao mesmo tempo muito digital e abusivamente primitiva. Um capitalismo de plataforma que parece ter algo em comum com a protoforma do capitalismo (Antunes, 2020a).
Uma vez mais o sistema de metabolismo social do capital, para recorrer à rica formulação de István Mészáros (2002), impõe seu curso, articulando o moderno, presente, por exemplo, na inteligência artificial, com o arcaico, que intensifica o binômio exploração e espoliação, acentuando desse modo sua dimensão destrutiva.
Assim, ao contrário de um universo laborativo pautado pela “criatividade”, com a expansão generalizada dos smartphones, ipads, iphones, algoritmos, inteligência artificial, big data, “internet das coisas”, 5G, impressão 3D, etc., o cenário que se desenvolve no mundo do trabalho, parece ser “criativo” somente para algumas atividades no topo do assalariamento, nas atividades de ponta da indústria de software, onde se expandem atividades que dispõem de “capital cultural”, sendo que na base da pirâmide social, a constatação é oposta. E, além das formas de exploração do trabalho na base destas atividades, ocorre também uma forma de espoliação, uma vez que, além de fornecer sua força de trabalho, os trabalhadores e as trabalhadoras são responsáveis pelos custos de compra ou alocação dos veículos, celulares, equipamentos (como as mochilas dos entregadores), conforme já dissemos anteriormente, ampliando a dependência financeira para pagar pelos instrumentos de trabalho de deveriam ser fornecidos pelas empresas.
Desse modo, o labor que se expande na “base produtiva” da Amazon (e Amazon Mechanical Turk), Uber (e Uber Eats), 99 (e 99Food), Cabify, Lyft, Ifood, Rappi, Glovo, Deliveroo, Google, Airbnb, dentre tantos outros exemplos, vem cada vez mais se assemelhando a uma modalidade de trabalho que, apesar de suas tantas diferenças, começa a ser amplamente denominado como trabalho uberizado. O que significa dizer que são trabalhos com jornadas extenuantes, percebendo baixos salários (especialmente nos países da periferia), em uma lógica aparentemente “impessoal”, onde os “algoritmos” comandam e controlam os tempos, os ritmos e as atividades realizadas, sempre com mais intensidade e com metas a serem diariamente superadas (Gonsales, 2020).
É verdade que, com a nova divisão internacional do trabalho, essa expansão tem sido mais intensa no Sul global, embora avance também em vários países do Norte, como EUA, Inglaterra, Espanha, França, Portugal, dentre tantos outros. E é exatamente por este motivo que a desconstrução da legislação protetora do trabalho tem sido mais uma constante do que uma exceção, ainda que os exemplos e intensidade sejam diferenciados pelas particularidades de cada país, região e continente.
E essa processualidade vem se expandindo ainda mais com o advento da denominada Indústria 4.0, propositura que nasceu na Alemanha e foi concebida para propiciar um novo salto tecnológico no mundo produtivo a partir da ampliação das novas tecnologias de informação e comunicação. Sua implantação vem acarretando a intensificação ainda maior dos processos produtivos automatizados em toda a cadeia produtiva de valor, de modo que toda a produção e logística empresarial tornam-se cada vez mais controladas e comandadas digitalmente, nos espaços onde essa introdução seja possível e economicamente vantajosa.
É exatamente neste contexto que podemos apresentar nossa segunda hipótese: parece pertinente indicar que a principal consequência para o mundo do trabalho será a ampliação do trabalho morto, tendo o maquinário digital - a “internet das coisas”, a inteligência artificial, a impressão 3D, o big data, etc. - como dominante e condutor de todo processo produtivo, com a consequente redução do trabalho vivo, através da substituição das atividades que se tornam supérfluas, por conta do ingresso de novas máquinas automatizadas e robotizadas, sob o comando dos algoritmos. Mais robôs e máquinas digitais invadirão a produção, o que nos leva a indicar que estamos adentrando em uma nova fase qualitativamente superior de subsunção real do trabalho ao capital. Com os celulares, tablets, smartphones e assemelhados controlando, supervisionando e comandando esta nova fase da ciberindústria do século XXI.
Por certo, novas atividades serão criadas, conforme já referimos anteriormente, nos polos mais qualificados informacionalmente, para operar com novo mundo maquínico, digital, internetizado e coisificado, ao mesmo tempo em que serão eliminadas amplas parcelas da classe trabalhadora que se tornarão supérfluas, sobrantes e descartáveis, ampliando o contingente de desempregados cada vez mais sem perspectiva de futuro.
Isto porque estamos defronte de um fortíssimo movimento de competição entre grandes corporações globais cujo objetivo principal é o de garantir a sua sobrevivência e expansão no mercado global. A batalha desencadeada entre a Huawei e Apple é por si emblemática: qual delas será a grande vitoriosa e assim ampliará sua hegemonia nos mercados globais da tecnologia 5G?
É por conta destes elementos socialmente destrutivos que estamos nas vésperas de um novo processo de desantropomorfização do trabalho - para recordar Lukács (2012) -, uma vez que se acentua expressivamente a tendência de eliminação (e/ou sujeição) de novos contingentes de trabalho vivo e de sua substituição (e/ou subordinação) pelo trabalho morto, resultante deste novo empreendimento empresarial que visa consolidar a nova fábrica digital, nos mais distintos ramos e setores econômicos.
Assim, estamos adentrando em um novo patamar de subsunção real do trabalho, que se converte em apêndice da máquina informacional, digital e algorítmica, ampliando a desantropomorfização de amplos contingentes de trabalho vivo, numa dimensão ainda mais profunda do que aquela que ocorreu com a introdução da maquinaria durante e Primeira Revolução Industrial. Desse modo, quando utilizamos o conceito de desantropomorfização do trabalho, estamos aludindo não somente a uma redução quantitativa, mas também à perda de dimensão qualitativa do trabalho humano.
Vale lembrar aqui que devemos a Marx a formulação de que durante a manufatura e o artesanato, o trabalhador se utilizava e se servia da ferramenta. Com o advento da fábrica moderna, ocorreu uma complexa inversão e os trabalhadores passaram a servir a maquinaria. Em outras palavras, se durante o ciclo manufatureiro o trabalho tinha o comando e o controle do instrumental do trabalho e de seus movimentos (sendo, por isso, parte ativa e condutora de um mecanismo vivo), na unidade fabril ocorre uma completa inversão: o comando transfere-se para um mecanismo morto, independente do trabalho vivo, que foi convertido em apêndice da máquina. Transformou-se, assim, em um autômato, dado que o trabalho morto operou uma subordinação e subsunção do trabalho vivo (Marx, 2013). E algo similar, em um novo patamar, parece estar ocorrendo com o novo universo produtivo que está sendo gestado.
Impulsionado por uma reestruturação produtiva permanente do capital, tornam-se profundas as consequências no plano da representação e organização sindical da classe trabalhadora e, em particular, desse novo proletariado de serviços que não para de se expandir. É deste último aspecto que vamos tratar no último item de nosso artigo.
As novas rebeliões
É no interior dessa realidade, com seu enorme mosaico de modalidades de trabalho, que estamos presenciando o nascimento, ainda que de modo embrionário, de novas formas de representação de classe. Menos do que um modelo a ser seguido, nosso objetivo aqui é apresentar tão somente alguns exemplos heterogêneos, mas que podem nos ajudar a melhor compreender alguns dos movimentos que estão em curso.5
Na Itália (Milão), um movimento pioneiro de representação denomina-se San Precario, que tem por objetivo a organização do precariado, dadas as dificuldades ou mesmo inexistência de representação por parte do sindicalismo tradicional. Ele floresceu com a eclosão conhecida como do MayDay, em 2001, exigindo os direitos e procurando avançar na organização autônoma do amplo e heterogêneo conjunto de trabalhadores e trabalhadoras jovens, qualificados e não qualificados, cujos trabalhos são desprovidos de direitos e têm contornos mais informais, intermitentes, etc.6
Outra experiência, ainda na Itália, que teve vigência durante alguns anos, denominou-se Clash City Workers, também buscando representar e organizar a juventude trabalhadora precarizada e desprovida de direitos. Segundo sua definição:
Clash City Workers é um coletivo de trabalhadores e trabalhadoras, desocupados e desocupadas, denominados “jovens precários”. A tradução de nosso nome significa algo como “trabalhadores da cidade em luta”. Nascido na metade de 2009, somos ativos particularmente em Nápoles, Roma, Florença, Pádua, Milão e Bergamo e procuramos seguir e sustentar as lutas que estão em curso na Itália [Clash City Workers, 2014].7
Anteriormente, tivemos a criação de formas alternativas de representação sindical, como foi o caso da Confederazione Unitaria di Base(CUB), proposta que recusava a prática realizada pelo sindicalismo mais tradicional (Cub, 2012).
Mais recentemente, vimos a criação do SI-Cobas: sindicato intercategorial de trabalhadores auto-organizados pela base, e que procura representar esse amplo segmento de assalariados e operários por fora da estrutura sindical oficial, incluindo também os/as trabalhadores/as imigrantes (S. I. Cobas, 2010).
E, como consequências destas mutações no mundo do trabalho e buscando ampliar seu espaço de representação sindical, vem se desenvolvendo a ação do movimento Nuove Identitá di Lavoro (NIdiL), vinculada à Confederazione Generale Italiana del Lavoro (CGIL), cujo objetivo é oferecer um locus de representação para os trabalhadores e as trabalhadoras considerados atípicos, que compreendem parcela bastante precarizada em relação aos direitos do trabalho e que, em grande medida, encontram-se fora das entidades sindicais tradicionais (NIdiL Cgil, s. d.).
Foi como resultado destas formas embrionárias de organização e de ação operária que, conforme mencionamos anteriormente, o trabalho pago por voucher (Itália) foi repudiado pelos trabalhadores e pelas trabalhadoras, por seus movimentos sindicais e de resistência, que exigiram, em 2017, a realização de um plebiscito para que a população trabalhadora pudesse decidir pela continuidade ou não dessa prática de trabalho precário. Temendo a derrota, o governo suspendeu essa forma de assalariamento “atípico”.
Cremos também que foi esse contingente precarizado que organizou, em Portugal, o movimento denominado Precári@s Inflexíveis. Juventude sem trabalho, imigrantes-trabalhadores, esse ser compósito, frequentemente denominado como precariado, afirmava em seu Manifesto:
Somos precári@s no emprego e na vida. Trabalhamos sem contrato ou com contratos a prazos muito curtos. Trabalho temporário, incerto e sem garantias. Somos operadores de call-center, estagiários, desempregados, trabalhadores a recibos verdes, imigrantes, intermitentes, estudantes-trabalhadores […]. [Precários Inflexíveis, 2007]8
No Brasil, um exemplo desta nova realidade em expansão no mundo do trabalho, que Ruy Braga e eu (2009) denominamos como infoproletariado e Ursula Huws (2003, 2014) muito sugestivamente denominou como cybertariat, encontramos no conjunto de trabalhadores e trabalhadoras que atuam no setor de call center e telemarketing. Trata-se de um contingente que cresceu expressivamente no início deste século, o que possibilitou recentemente a formação, na cidade de São Paulo, do movimento que se denominou como Infoproletários e que assim se define:
Somos um movimento social composto por trabalhadores e trabalhadoras da área de informática reunidos com o objetivo de denunciar e combater a exploração e abusos que sofremos em nossa categoria e no conjunto da classe trabalhadora. [Infoproletários, s. d.]
E, após reconhecer sua conformação caracterizada pela proletarização e precarização, afirmam:
Enfrentamos baixos salários. Enfrentamos longas jornadas, assédio moral e sexual. Na hora do batente todo o encanto se acaba e reina a exploração. É claro, não poderia ser de outra forma. Não vivemos em uma sociedade da informação. Vivemos em uma sociedade da exploração. Por isso não devemos esperar nada dos patrões e dos empresários. A eles não interessa nada senão o lucro. [Infoproletários, s. d.]
O resultado desta constatação levou o movimento Infoproletários a reconhecer a necessidade de avançar em suas propostas de representação e de organização:
É para fazer frente a isto que nos reunimos. Acreditamos que apenas os Infoproletários, trabalhadores de TI unidos, é que podem apresentar alternativas para seus próprios problemas e defender seus interesses políticos e econômicos. Juntos estamos nos organizando para reivindicar nossos direitos e lutar por melhores condições de trabalho e vida. [Infoproletários, s. d.]
Se, por um lado, os níveis de exploração e de precarização do trabalho vêm se acentuando sobremaneira, como procuramos indicar neste texto, por outro lado, vem também ocorrendo um conjunto de ações, greves e lutas de resistência e de organização, das quais a tentativa de greve mundial dos motoristas da Uber, em maio de 2019, bem como a tentativa de criação de um sindicato de âmbito internacional, são exemplos.
E, mais recentemente, em julho de 2020, em plena pandemia, foram deflagradas duas greves nacionais no Brasil, denominadas pelos entregadores de plataformas digitais como “Breque dos apps”, movimento que começa a se expandir em outros países da América Latina e também em outros continentes (Gonsales, 2020).
Essa greve geral de entregadores e entregadoras em plataformas digitais contou com a participação ativa, organizada pelo whatsapp e pelas redes sociais, de associações de entregadores, coletivos autônomos, sindicatos, atingindo uma amplitude nacional, em várias capitais e cidades do Brasil. Suas reivindicações básicas podem ser assim resumidas: melhoria nas condições de trabalho; aumento das taxas de entregas; fim dos bloqueios realizados unilateralmente pelas empresas; seguros contra acidentes e roubos; apoio aos contaminados pela pandemia, dentre outros pontos. Ressalte-se também que, no universo do trabalho de entrega feita em motos e bicicletas, a presença masculina é extremamente acentuada no Brasil.
Tratando-se de uma categoria nova e ainda bastante diferenciada, oriunda de diversas atividades anteriores, das mais qualificadas àquelas com menor qualificação, desde logo o #brequedosapps (como se denominou) teve uma conformação heterogênea, contemplando ações que defendem sua condição assalariada até aquelas que propugnavam sua condição autônoma, incluindo também movimentos com clara definição política, de que são exemplo os Entregadores Antifascistas.
Assim, o #brequedosapps talvez possa ser emblemático da ação de resistência dessa parte crescente da nova classe trabalhadora, que ocorreu em meio a uma das mais terríveis crises sanitárias, causadas pela pandemia do COVID-19 mas que, apesar das inúmeras dificuldades criadas, não foi capaz de impedir a eclosão de movimentos que de algum modo sinalizam o afloramento de uma nova morfologia das formas de organização e representação das lutas sociais que estão sendo desencadeadas pelo novo proletariado da era digital.