Introdução
A produção de conhecimento científico e tecnológico mundial aumentou muito significativamente nos últimos dois séculos. Boa parte desse novo conhecimento é materializado em suportes bibliográficos, que incluem comunicações escritas apresentadas em conferências, artigos publicados em revistas académicas, capítulos e livros editados e difundidos pelos respetivos públicos-alvo ou, no que diz respeito a conhecimentos tecnológicos, através da divulgação da informação contida em pedidos de patentes que são publicados em suporte físico ou digital.1
Com referência a essa produção de conhecimento científico e tecnológico, o presente artigo tem como propósito avaliar como esta evoluiu entre 1996 e 2018 nas diferentes regiões do planeta, procurando determinar se essa progressão conduziu a cenários de “convergência” ou de “divergência”, ou mesmo de manutenção aproximada das desigualdades internacionais em ciência e em tecnologia. Assim, enquanto no hipotético caso de todos os países verificarem trajetórias evolutivas idênticas, as desigualdades iniciais se manteriam estáveis, nos casos da “convergência” e da “divergência” verificar-se-iam, respetivamente, uma aproximação dos países de desempenho inferior aos de desempenho superior ou, em contrapartida, um maior afastamento entre os diferentes países.
Este tipo de análises da convergência (ou da divergência) internacional tem sido feita em relação a indicadores económicos, designadamente o PIB per capita, procurando registar em que medida os países inicialmente “mais pobres” se têm aproximado ou afastado dos “mais ricos”. Muito embora reconhecendo a distinta natureza dos indicadores económicos e dos indicadores de produção científica e tecnológica, assumimos neste artigo que o tipo de metodologias aplicadas às análises de convergência económica entre países é igualmente pertinente com referência a indicadores de conhecimento científico e tecnológico.
Como será explicitado, utilizam-se neste artigo indicadores quantitativos relativos a, respetivamente, número de publicações científicas, tendo em conta os países de origem dos seus autores e o número de patentes concedidas a entidades residentes em cada país. Enquanto os indicadores de publicação científica procuram refletir o desempenho em “ciência”, os relativos a patentes procuram refletir o desempenho em “tecnologia”.
A relevância deste tipo de análise decorre de a ciência e a tecnologia constituírem vetores fundamentais do desenvolvimento dos países. Múltiplas investigações realizadas ao longo das últimas décadas, em relação com a ampla área dos estudos de desenvolvimento, têm evidenciado que há elos de causalidade entre os investimentos em conhecimento, tanto científico como tecnológico, e o crescimento económico e o bem-estar das populações. Tendo em conta as perspetivas equacionadas por essas investigações, podemos afirmar que, no hipotético caso de se verificar uma evidente “divergência”, tal terá certamente como consequência um aumento do diferencial nas condições de vida entre as regiões mais e menos desenvolvidas do planeta. Em contrapartida, a constatação de convergência, dependendo naturalmente da sua intensidade, poderá contribuir para reduzir os diferenciais iniciais. Nesta medida, os resultados produzidos pela presente pesquisa têm valor não apenas em termos das literaturas específicas sobre dinâmicas em ciência e em tecnologia, mas mais genericamente constituem um contributo para os estudos de desenvolvimento.
Vale a pena alertar já neste ponto que, podendo os países “mais pobres” progredir com taxas de crescimento médio anual superiores às dos “mais ricos”, ainda assim a distância absoluta entre eles poderá aumentar. Neste caso estar-se-á perante uma situação de convergência “relativa”, mas de divergência “absoluta”. Em termos metodológicos esta distinção capta-se sobretudo pela análise das designadas “convergência beta” e “convergência sigma”, conceitos que serão explicitados adiante.
A verificação e a mensuração dos cenários de convergência ou de divergência nacional são um objetivo operacional deste artigo, tendo por base os indicadores e os conceitos de convergência referidos nos parágrafos precedentes. Constitui, também, seu objetivo produzir informação que possa informar as políticas de ciência e de tecnologia, designadamente através da consideração de os reconhecidos elos de causalidade já referidos.
Tendo como pano de fundo a perspetiva internacional desenvolvida, propomos um enfoque especial nos casos de Brasil e de Portugal. O recurso a estes dois “estudos de caso” é relevante, pois permite ter em conta como as especificidades em concreto de cada país, relacionadas com a história, a evolução institucional, a diversidade de políticas adotadas e a estruturação dos respetivos sistemas nacionais de investigação e de inovação, influenciam as trajetórias efetivamente registadas. A realização destes dois estudos de caso tem, portanto, também como objetivo produzir informação mais específica, certamente com valia para compreender como estes dois países se comportam no cenário global e para os auxiliar no desenho de políticas mais informadas.
A principal conclusão a que chegamos, usando as metodologias empregues, é que, embora se verifique um padrão de diminuição da divergência relativa, tanto para a produção de conhecimento científico como para a produção de conhecimento tecnológico, o distanciamento absoluto entre os diferentes países tem vindo a aumentar nas décadas mais recentes. Em relação a Brasil e a Portugal, observámos que, apesar de os dois países exibirem dinâmicas mais positivas na produção de conhecimento científico do que na produção de conhecimento tecnológico, as suas trajetórias são razoavelmente distintas. É preciso destacar que, ainda que a pesquisa realizada tenha um carácter histórico, dada a extensão temporal observada, apresenta evidentemente atualidade e relevância para as políticas de pesquisa e de inovação de Brasil e de Portugal.
Na sequência desta introdução, surgem sequencialmente uma revisão de literatura, uma descrição da metodologia da pesquisa, a apresentação dos resultados, a sua discussão e, por fim, serão extraídas as principais conclusões.
Revisão da literatura
Independentemente da perspetiva metodológica adotada, existe consenso sobre vários aspetos, designadamente: (1) querendo-se avaliar a forma como a produção de conhecimento científico e tecnológico tem evoluído, há necessidade de utilizar indicadores que captem as tendências e os padrões estruturais dessa evolução; (2) os indicadores mais vulgarmente adotados para expressar estas dinâmicas são o número de artigos publicados em revistas académicas e o número de pedidos de patentes (Godinho, 2007); e (3) tendo em conta, pelo menos, a observação desses indicadores, é evidente o aumento exponencial da produção científica e tecnológica global (Bornmann e Ruediger, 2014; WIPO, 2019). Esses indicadores e a informação que eles proporcionam é hoje extensivamente empregue em estudos sobre o desenvolvimento científico e tecnológico, designadamente na perspetiva de comparação internacional. Em paralelo, têm-se registado grandes debates quanto à evolução da desigualdade a nível global e relativamente às assimetrias de desenvolvimento entre países.
A presente secção contém dois pontos, um primeiro onde se discute a adequabilidade da utilização de indicadores do tipo dos empregues neste estudo para efeitos de avaliação das disparidades na distribuição do conhecimento científico e tecnológico a nível global, e um segundo ponto, onde se revê literatura que incide sobre a situação da Ciência e Tecnologia (C e T) no Brasil e em Portugal, países que constituem os nossos “estudos de caso”.
Utilização de indicadores de ciência e de tecnologia na análise de desigualdades internacionais e dos desafios do desenvolvimento
Os indicadores utilizados no presente estudo para medir a produção de conhecimento científico e tecnológico estão relacionados com o número de publicações em revistas académicas e com o número de patentes concedidas. Estamos bem conscientes da dificuldade em quantificar o “conhecimento” existente ou produzido em cada momento. Todavia, os indicadores quantitativos selecionados têm, como a própria designação “indicador” sugere, um valor estritamente indicativo das dinâmicas registadas. E, conquanto sejam reconhecidas limitações desses indicadores no estudo dos fenómenos observados, estes têm sido amplamente adotados em muitos estudos (Moed, 2005; Nesta e Patel, 2005; OECD, 2002; van Raan, 2004; Sirilli, 1997; Smith 2004).
Em relação ao uso de indicadores bibliométricos, incluindo as contagens de publicações, existe um debate substantivo quanto ao seu uso como medida de produção de conhecimento científico ou quanto à sua legitimidade para realizar comparações entre países com níveis de desenvolvimento bem diferenciados (van Raan, 2003; Rafols, Ciarli e Chavarro, 2015; Confraria, Godinho e Wang, 2017). Porém, na ausência de alternativas robustas, estes indicadores são considerados adequados para avaliar os processos de aproximação ou afastamento em relação às economias que apresentam melhores desempenhos (Albuquerque, 2004). Tem também sido referido como positivo o aumento de cobertura de bases de dados, como a WoS ou a SCOPUS, de periódicos publicados em países em desenvolvimento, incluindo os da América Latina e Caribe (Collazo-Reyes, 2014).
Em relação ao uso de indicadores de patentes, diversas observações têm sido feitas, nomeadamente quanto a seu uso como medida universal de “inovação”, tendo em conta que nem todas as inovações são patenteáveis, pois ocorrem, por exemplo, em sistemas organizacionais e de distribuição ou na imagem e na comunicação dos produtos ou simplesmente porque os seus inventores optam por manter o conteúdo das suas inovações em segredo industrial ou, em alternativa, em regime aberto. Sabe-se que uma patente concedida protege um invento de natureza tecnológica e sabe-se tambm que por a petente ser pedia concedida protege um invento de natureza tecnolsse estinda a uma substanacial dists que mais se deém que, por a patente ser pedida na transição da fase de pesquisa e desenvolvimento para a fase da exploração económica da tecnologia, esta se encontra na fronteira entre invenção e inovação e, como tal, pode ser também vista como um indicador da dinâmica de inovação tecnológica. Uma patente é atribuída na sequência de um exame que avalia se acrescenta novidade ao repositório de conhecimentos tecnológicos existente, sendo que todas as patentes concedidas têm o seu conteúdo publicado, passando dessa forma a integrar o chamado estado da arte tecnológico a nível global. Em conformidade, neste estudo entendemos as patentes sobretudo como indicador do nível da produção de novos conhecimentos tecnológicos.
A utilização de indicadores de patentes neste estudo tem em conta as avaliações que sobre eles têm sido feitas. Tais avaliações salientam as limitações, mas também as vantagens do uso desse tipo de indicadores para fins analíticos (Archibugi, 1992; Narin, Stevens e Whitlow, 1991; Hagedoorn e Cloodt, 2003; Nagaoka, Motohashi e Goto, 2010). É sabido que existe um reconhecimento e que diferentes empresas, setores ou países seguem diferentes estratégias de patenteamento (Pavitt, 1985; Griliches, 1990; Brouwer e Kleinknecht, 1996). Como Freeman (1982) já se tinha pronunciado, o uso de patentes enquanto indicador de invenções tecnológicas é razoável na medida em que não exista informação alternativa de melhor qualidade.
Especificamente em conexão com as economias em desenvolvimento, diferentes trabalhos analisaram a relação entre propriedade intelectual e desenvolvimento económico (Sweet e Maggio, 2015; Gould e Gruben, 1996; Lerner, 2009; Hall, 2020; Albuquerque, 2000). As conclusões destes estudos apontam que em diferentes circunstâncias esses sistemas afetam as perspetivas de desenvolvimento de forma diferenciada. Estes estudos realçam ainda a necessidade da plasticidade dos sistemas de propriedade intelectual em relação às condições específicas de cada economia, sendo desejável que a intensidade de proteção seja calibrada de forma diferenciada.
Num livro dedicado ao estudo da propriedade intelectual nos países de língua portuguesa, incluindo Brasil e Portugal, mas também outras economias de características bem diferenciadas, afirmou-se que as reflexões sobre as questões da propriedade intelectual e da inovação, sendo “essenciais ao desenvolvimento”, devem “transcender uma visão que tende a privilegiar apenas as dimensões assistencialistas”, pois “tal visão não permite aproveitar e explorar de forma sistemática as oportunidades que se abrem aos países em consequência da introdução e difusão da inovação e dos conhecimentos economicamente relevantes” (Castro, Possas e Godinho, 2011). Num capítulo desse mesmo livro, com referência explícita à “economia política de propriedade intelectual”, afirma-se que “[a] propriedade intelectual é uma temática altamente politizada. O reconhecimento da existência de uma ‘falha de mercado’ significa que se aceita, de forma explícita e racionalizada, a intervenção do Estado, por via da política de atribuição de direitos de propriedade intelectual” e da gestão da intensidade de proteção oferecida (Godinho, 2011). Em acréscimo, com referência aos tratados da OMC e disposições TRIPS, afirma-se que a “propriedade intelectual, além de altamente politizada, é atualmente uma temática de natureza global” (Godinho, 2011.
Dosi e Stiglitz (2014) indicam que o aumento de intensidade de proteção dos direitos de propriedade intelectual nas décadas anteriores, especialmente em correlação com a introdução dos tratados referidos no parágrafo precedente, não impactou positivamente as taxas de inovação em todo o mundo, sendo isso particularmente importante “no caso de países que estão a tentar avançar rapidamente, tanto a teoria quanto a experiência histórica sugerem que direitos de propriedade intelectual menos intensos e limitados são mais propícios à acumulação de conhecimento e à imitação e absorção tecnológica”.2 Mantém-se portanto actual a afirmação de Sanjaya Lall que “países em diferentes níveis de desenvolvimento industrial e tecnológico enfrentam custos económicos e benefícios muito diferentes de direitos de propriedade intelectual mais fortes”3 (Lall, 2003).
Alguns dados da economia política da ciência e da tecnologia de brasil e Portugal
Neste ponto, identificam-se alguns marcos principais da trajetória e das políticas de ciência, de tecnologia e de inovação seguidas nas últimas décadas, nos dois países que elegemos para este estudo de caso.
Numa visão longitudinal desde a década de 1950, Viotti (2008) identifica três períodos na relação entre, por um lado, as políticas industriais e as políticas de C e T e, por outro, a inovação no Brasil. O primeiro período, marcado pelo paradigma da industrialização via substituição de importações, contribuiu para desenvolver as instituições de base do sistema de C e T no Brasil. Porém, essa abordagem não logrou integrar o investimento em ciência no desenvolvimento de uma capacidade endógena de inovação.
O segundo período, nas últimas duas décadas do século XX, correspondeu à liberalização económica, cujo conceito em termos de política tecnológica era que a eliminação do protecionismo pressionaria as empresas a abandonarem tecnologias obsoletas, progredindo em termos de eficiência e de capacidades de inovação. As políticas desse período, muito influenciadas pelo FMI e pelo Banco Inter-Americano de Desenvolvimento, resultaram em frustração, tanto em termos da desaceleração do crescimento económico, como em termos de não aquisição de competências tecnológicas endógenas. Num outro estudo anterior, Kupfer (1998) concluiu que a abertura comercial que ocorreu neste período gerou no início um aumento da produtividade industrial, em especial através da eliminação das empresas menos eficientes, embora não tenha tido impacto posteriormente.
Com a viragem para os anos 2000, inaugura-se um terceiro período, que embora mantendo algumas das características do período precedente, passa por um muito maior reconhecimento do papel das políticas públicas no desenvolvimento tecnológico da economia, com especial protagonismo de políticas explicitamente orientadas ao incentivo à inovação. De algum modo, este terceiro momento materializa o tipo de abordagem proposto no estudo muito influente coordenado por Coutinho e Ferraz (1994), que defendera um novo papel para o Estado nas políticas da competitividade e inovação. Nesta fase são instituídos os Fundos Setoriais, a Lei de Inovação, a Lei do Bem e a Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior, a Política de Desenvolvimento Produtivo e o Plano Brasil Maior. A criação dos Fundos Setoriais constituiu um marco na reorientação do final dos anos 1990 para o início dos anos 2000 (Bastos, 2012), permitindo a revitalização dos financiamentos da infraestrutura de C e T do país que tinha sofrido um retrocesso nos anos precedentes.
Constitui também um exemplo da diversificação de políticas orientadas à inovação que ocorre nesse terceiro período o fomento de “Arranjos Produtivos Locais”, associados a um maior protagonismo de dinâmicas organizacionais e de inovação espacialmente dispersas para além dos centros tradicionais ( Cassiolato e Lastres, 2003).
Apesar das alterações das abordagens verificadas ao longo das últimas décadas, verificou-se em todas as etapas um investimento razoavelmente sistemático na qualificação de recursos humanos avançados, ao nível da pós-graduação e especialmente do doutoramento (Vermulm e Paula, 2006). Este investimento contribuiu para um aumento contínuo da publicação científica com origem em instituições de pesquisa do Brasil.
Em relação aos fatores que influenciam o nível de patenteamento, faz sentido referir que, em meados da década de 1990, portanto, antes da constituição da OMC e da implementação das regras TRIPS relativas a harmonização das leis de propriedade intelectual a nível mundial, promoveram-se no Brasil reformas no regime de propriedade intelectual que “impediram, na prática, a aplicação pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) de grande parte do antigo regime de propriedade industrial, especialmente de suas provisões voltadas para assegurar maior poder de barganha às empresas brasileiras no comércio ou na transferência de tecnologias” (Viotti, 2008). Aparentemente, estas reformas que visavam estimular contratos de transferência de tecnologia entre empresas estrangeiras detentoras de patentes e empresas brasileiras, não tiveram o impacto esperado nem resultaram num aumento significativo de patenteamento por parte das empresas locais. De acordo com UNESCO (2015, p. 222), “[p]atent applications to the Brazilian Patent Office (INPI) increased from 20 639 in 2000 to 33 395 in 2012, progressing by 62%. This rate pales in comparison with that of scientific publications over the same period (308%). Moreover, if one considers only patent applications by residents, the growth rate over this period was even lower (21%)”.
Esta situação é ainda mais evidente no “baixo número de patentes concedidas pelo USPTO a requerentes brasileiros. Essa tendência mostra que as empresas brasileiras ainda não são competitivas internacionalmente quando o assunto é inovação. As despesas privadas em P e D permanecem relativamente baixas, em comparação com outras economias emergentes”4 (UNESCO, 2015, p. 228). Terá também contribuído para este desempenho o facto da mudança estrutural, verificada na indústria brasileira, ter resultado numa maior especialização, iniciada na década de 90 e aprofundada nos anos 2000, em setores de menor intensidade tecnológica, sendo que “a falta de dinamismo da demanda doméstica e o processo de abertura comercial parecem ter gerado conjuntamente esse resultado” (Carvalho, 2010). Ainda assim, um estudo recente (Silva, 2020) revela que os setores industriais “intensivos em patentes” “respondem por 5,4 milhões de empregos diretos na última década na economia brasileira, ou 15,6% de todo o emprego registrado no período de 2014-2017, um valor 0,8 milhão acima do verificado no período 2011-2013”, concluindo que esse tipo de indústrias “geram mais benefícios para a economia brasileira ao criarem empregos com salários mais altos e absorver massa crítica mais qualificada”.
Em relação a Portugal, Godinho (2013) assinala que, em relação ao desenvolvimento científico e tecnológico, registaram-se alguns importantes avanços ao longo das últimas décadas, tendo sido constituídas “capacidades críticas em certos domínios, mas paralelamente em muitos outros domínios os desempenhos aproximam-nos mais de economias com níveis de desenvolvimento intermédio que dos países de economias mais desenvolvidas”. Esse estudo assinala que um domínio no qual se registou “uma evolução notável foi na produção de conhecimento científico […], permitindo que atualmente a taxa de publicações per capita esteja bastante próxima das economias mais desenvolvidas” (Godinho, 2013). Refere-se, igualmente, que o país apresenta bons desempenhos em termos de difusão da inovação, embora no respeitante a inovação mais perto da fronteira do conhecimento tecnológico, designadamente medida através de indicadores de patentes, o desempenho é consideravelmente pior. Subjacente a esta situação, há uma especialização da economia relativamente pouco dinâmica, concentrada em setores de baixa e média tecnologia.
Ao longo das últimas décadas, a política de ciência foi progressivamente adquirindo maior expressão, de algum modo superando o papel secundário que Gonçalves (1996) observou que esta ainda ocupava no contexto das políticas públicas nacionais na primeira metade da década de 1990. O influxo de fundos estruturais europeus contribuiu para dotar convenientemente um conjunto de programas nesta área. Também em Portugal houve um enorme reforço da formação avançada, com aumento da oferta ao nível de mestrado e um crescente número de doutores formados em universidades portuguesas e estrangeiras (Heitor, 2015). Apesar dos avanços registados, Godinho (2013) assinala que as políticas científicas seguidas “revelaram pouca coordenação estratégica perante a situação real do país […]. Pelo menos até meados da década 2000-2009 não se verificou uma preocupação séria em identificar áreas estratégicas e em articular o esforço científico com temas relevantes para a economia e para a sociedade portuguesa”.
Em relação às políticas industriais e tecnológicas seguidas, estudos feitos revelam que estas têm sido razoavelmente bem equipadas em termos de diversidade de instrumentos e recursos empregues (Mamede, Godinho e Simões, 2014; Godinho e Mamede, 2016). Tal avaliação permitiria esperar um desempenho dinâmico da economia favorável. Porém, tal não tem sido o caso. Num estudo recente, Godinho (2019) identifica uma desaceleração significativa do crescimento da produtividade a partir de meados da década de 1990, sobretudo relacionada com uma diminuição do contributo da “produtividade total dos fatores” e coincidindo com uma maior abertura ao exterior e com uma liberalização do comércio internacional. Certamente que o papel residual que os setores de alta intensidade tecnológica ocupam na especialização económica do país contribui para este comportamento dinâmico menos bom (Mamede et al., 2014).
Em relação ao nível de patenteamento em Portugal, os dados existentes revelam crescimento da procura de proteção por patentes a partir do início dos anos 2000, embora partindo de uma base muito modesta. Godinho, Simões e Zifciakova (2016) observam que
Em 2015 o total de pedidos de proteção de invenção em Portugal atingiu pela primeira vez mais de mil por ano. Apesar da tendência, esses números indicam uma demanda por proteção de invenções que ainda é muito menor do que em outras economias de dimensão semelhante. Conforme evidenciado em estudos realizados sobre o tema, a fraca demanda não se deve apenas à estrutura industrial […] ou ao custo de acesso ao sistema […], mas de forma mais geral pela falta de conhecimento sobre como usar e beneficiar da propriedade industrial.5 [Godinho et al., 2016, p. 67].
Em suma, verifica-se que, apesar das suas diferenças políticas, geográficas e demográficas, Portugal e Brasil apresentam traços comuns no seu desenvolvimento científico e tecnológico nas últimas décadas, com ambos os países a revelarem um certo dualismo nos seus desempenhos, sendo que genericamente as suas políticas científicas apresentam melhores resultados do que as políticas tecnológicas.
Metodologia
Tendo em conta, de forma geral, as preocupações com a análise das desigualdades e das assimetrias a nível global já identificadas e considerando as linhas de abordagem e a revisão de literatura da secção precedente, a presente pesquisa centra-se numa análise da produção de conhecimento científico e tecnológico entre diferentes países do mundo, desde final do século passado (1996) até perto do final da segunda década do presente século (2018) procurando captar como as assimetrias entre diferentes países têm progredido. Especificamente, observar-se-ão indicadores respeitantes à convergência BETA e à convergência SIGMA, usando-se medidas de dispersão para percecionar a evolução das disparidades na produção de conhecimento científico e tecnológico a nível global. É nesse âmbito que se irá fixar a evolução de Portugal e Brasil, tendo em conta aspetos institucionais relevantes de ambos ospaíses.
As duas variáveis principais neste estudo são o número de documentos citáveis e o número de patentes concedidas pelo escritório (ou instituto) de patentes dos EUA, o USPTO. Com base nestas duas variáveis, calculam-se indicadores que têm no denominador a população de cada país observado. Estes dois indicadores são análogos, por exemplo, ao convencional PIB per capita, com a diferença de que no nosso caso considerámos a variável população medida em milhões de indivíduos. Estes foram calculados para 1996 e para 2018, tendo sido também determinadas as respetivas taxas médias de crescimento anual (doravante designadas por TMCA) nesse período temporal.
Os “documentos citáveis” têm como fonte a base de dados ScimagoJR,6 que contém informações estatísticas de publicações e países com origem na Scopus. Esta variável inclui os seguintes tipos de publicações: artigos, revisões e trabalhos apresentados em conferências. Utilizamo-la como uma medida do nível da produção de novos conhecimentos científicos.
O número de patentes concedido pelo USPTO foi obtido na base de dados do IP5, um consórcio dos cinco maiores escritórios de patentes a nível mundial.7 Optou-se por usar patentes do USPTO e não outras (por exemplo EPO ou pedidos PCT), pois, em geral, os EUA têm sido reconhecidos como o mercado tecnológico mais dinâmico do planeta. Por essa razão, assume-se que os detentores de invenções tecnológicas mais relevantes querem ter patentes nessa jurisdição, para protegerem as suas exportações inovadoras para esse mercado ou, em alternativa, para nele poderem licenciar as suas tecnologias (Godinho e Ferreira, 2012).
A variável população obteve-se a partir da base de dados WDI.8 Por comodidade manteve-se a designação dos países em inglês. Da análise do indicador de patentes utilizada, excluíram-se países de menor dimensão populacional, tendo em conta que um número significativo destes países tem um volume de patentes inflacionado devido à concessão de benefícios fiscais especiais ou outros similares.
Os dois indicadores descritos e respetivas TMCA aplicaram-se para calcular os valores relativos à convergência BETA. Concretamente, fizeram-se regressões para cada um deles, onde se teve como variável dependente a sua TMCA no período 1996-2018 e como variável independente o respetivo valor no ano inicial (1996). O objetivo prático foi estimar o coeficiente da regressão (o “beta”). Quando o coeficiente estimado tem sinal negativo, está-se perante um cenário de convergência, por os países de menores valores iniciais apresentarem TMCA mais elevadas do que as dos países de maiores valores iniciais. Ocorre o oposto se o sinal do coeficiente for positivo. A lógica subjacente a esta perspetiva da “convergência BETA” é que, quanto menos bom for o desempenho inicial do país, maior é o potencial para se aproximar dos países de melhores desempenhos (Abramovitz, 1986).
As regressões obtiveram-se pelo método dos mínimos quadrados convencional (OLS), mas foram também repetidas com a introdução de uma variável de ponderação (WLS). A variável de ponderação introduzida nas regressões WLS foi a população (milhões de habitantes de cada país), com o objetivo de se atenuar o facto de, nas regressões OLS convencionais, se dar exatamente o mesmo peso, por exemplo, a um país com 1 ou com 1000 milhões de habitantes.
Seguidamente, os dois indicadores descritos utilizaram-se também para calcular os valores relativos à convergência SIGMA. Neste caso, determinou-se o desvio-padrão de cada um dos indicadores no momento inicial (1996) e no mais recente (2018), quantificando-se a dispersão existente em cada um desses momentos temporais. Obviamente, quanto mais os diferentes países se desviarem da média do conjunto dos países, maior é a dispersão. Se o desvio-padrão diminuir entre o momento inicial e o mais recente, significa que há redução da dispersão e, como tal afirma-se, que estamos numa situação de “convergência SIGMA”. Acontece, porém, que quando os dois momentos temporais estão afastados entre si e há uma dinâmica global de crescimento forte, isso só por si contribui para gerar um maior afastamento absoluto entre os países, muito embora em termos relativos se possa verificar uma redução da dispersão. Isto leva a que se possa ter um coeficiente da regressão negativo (“convergência BETA”) com frequência e, em simultâneo, um aumento dos desvios-padrão (“divergência SIGMA”). Em conformidade com esta apreciação, usa-se também neste estudo o Coeficiente de Variação (CV) que consiste no quociente entre o desvio-padrão e a média da correspondente amostra, desta forma relativizando-se a “inflação” decorrente de todos crescerem consideravelmente.
Para além das metodologias quantitativas utilizadas para determinar as convergência BETA e SIGMA em matéria de ciência e de tecnologia, o presente artigo tem também uma vertente mais qualitativa, ao considerar neste âmbito dois estudos de caso mais específicos, incidindo no Brasil e em Portugal. Esses estudos de caso são suportados sobretudo pelo recurso a fontes secundárias, com base nas quais se identificam alguns marcos principais da trajetória e das políticas de ciência, tecnologia e inovação seguidas em ambos os países nas últimas décadas. Porém, a análise dos casos de Portugal e do Brasil também se reporta à análise quantitativa precedente, sendo identificados os posicionamentos dos dois países no âmbito do estudo de convergência internacional em C e T.
Apresentação de resultados
A presente secção desdobra-se em dois pontos: um primeiro, no qual serão sucessivamente apresentados os resultados da exploração estatística relativos a “convergência beta” e, depois, relativamente a “convergência sigma”, e um segundo, dedicado à análise dos casos específicos do Brasil e de Portugal.
Convergência BETA
Efetuaram-se seis regressões (tabela 1) para tentar verificar a existência de convergência (ou de divergência) a nível global no respeitante às duas variáveis de interesse, relacionadas com publicação científica e com o patenteamento de invenções tecnológicas. Todas estas regressões indicam que se verificou efetivamente, para os países observados, a designada “convergência BETA”, tendo em conta o valor negativo e significativo dos coeficientes estimados das seis regressões. A assinalar, porém, que dentro desta tendência global de convergência se verificam, a nível individual dos diferentes países, situações muito díspares, refletidas em coeficientes de correlação não muito elevados.
Os resultados alcançados permitem destacar outros aspetos relevantes que são seguidamente identificados.
Em primeiro lugar, verifica-se que, quando se realizam as regressões WLS, tanto o valor absoluto dos coeficientes dessas regressões como os valores dos respetivos coeficientes de correlação aumentam relativamente às correspondentes regressões OLS. Tal significa que, ao considerarmos a dimensão de cada país, medida de acordo com a sua população, atribuindo maior peso a países como a China ou a Índia, o fenómeno da convergência global é ainda mais evidente.
Em segundo lugar, em relação a Patentes concedidas pelo USPTO nos anos de 1996 e 2018, existem apenas 88 países com valores reportados. Tal contrasta com a variável referente a Documentos Citáveis que, para os mesmos anos, dispõe de informação para 193 países, deixando de fora apenas alguns territórios com pouca expressão no cômputo global de população ou do PIB mundial.9
Em terceiro lugar, há a referir que, no caso das patentes concedidas pelo USPTO, a visualização do gráfico 1 permite entender que, conforme sobretudo o seu desempenho no momento inicial, existem dois grupos de países razoavelmente distintos. Nesse gráfico, tem-se a reta correspondente à regressão 1 (OLS, N=), com a TMCA de patentes concedidas pelo USPTO, por milhão de habitantes, entre 1996 e 2018, registada no eixo das ordenadas; e com o valor (em logaritmo) do número de patentes concedidas pelo USPTO, por milhão de habitantes, no ano inicial do período estudado (1996), registado no eixo das abcissas. A separação entre o primeiro e segundo grupo de países, tendo em conta sua situação inicial, faz-se em torno de linha vertical correspondente a um valor em logaritmo de 1, isto é, de 10 patentes por milhão de habitantes. À direita dessa linha, temos um grupo de 25 países, a maioria dos quais com taxas de crescimento anuais positivas, mas inferiores a 10%, com destaque para a Coreia do Sul, que apresenta uma taxa de crescimento mais elevada, de 12%.10 À esquerda dessa linha, temos o segundo grupo de países, num total de 64, todo ele com níveis de patenteamento menores, mas, em contrapartida, apresentando em média maiores taxas de crescimento, embora com maior variabilidade de comportamento, desde TMCA negativas até TMCA superiores a 20%. Destacam-se, a este respeito, a Índia e especialmente a China.
Em quarto lugar, e tendo em conta que para o indicador Documentos Citáveis se fizeram regressões tanto para a mesma amostra empregue para Patentes USPTO (com N=88) como para uma amostra maior, que contém todos os países com valores positivos de Documentos Citáveis (N=183), conseguimos inferir que, na realidade e em relação ao acesso ao uso de patentes, existe um terceiro grupo de pelo menos 95 países que simplesmente não têm depositado pedidos de patentes no USPTO.
O gráfico 2 contém a reta correspondente à regressão 5 (OLS, N=183). No eixo das ordenadas, regista a TMCA de Documentos Citáveis por milhão de habitantes entre 1996 e 2018 e, no eixo das abcissas, regista o valor (em logaritmo) de Documentos Citáveis por milhão de habitantes, também em 1996. Apesar dos valores dos coeficientes de correlação destas regressões não serem muito elevados, a representação das correspondentes retas estimadas é interessante, pois, para além de permitir identificar os países que estão acima ou abaixo da “norma” das respetivas amostras - em termos de seus comportamentos dinâmicos -, permite percecionar, através do declive gráfico das linhas, a intensidade das correspondentes convergências BETA.
Verifica-se no gráfico 2 que, com a exceção de três ouliers que surgem isolados no topo do gráfico, a generalidade dos países apresenta taxas de crescimento anuais inferiores a 20%. Neste caso, a China tem um comportamento menos exuberante que o revelado no caso das patentes, embora apresente, ainda assim, uma taxa de crescimento anual de 13%, muito acima da “norma” (representada pela linha da regressão). Este comportamento da China tem naturalmente que ver com um “arranque” muito mais recente em termos de registo de patentes.
Convergência SIGMA
A tabela 2 contém várias estatísticas relativamente aos dois indicadores observados, baseados nos Documentos Citáveis e nas Patentes do USPTO, tanto para os anos inicial (1996) e mais recente (2018), como para as amostras menor (N=88) e maior (N=183).
É interessante ver como o valor da média de ambos os indicadores triplicou, aproximadamente, no período entre 1996 e 2018, com taxas de crescimento anual muito elevadas, numa média de cerca de 7% por ano para todos os países observados. Note-se que, de acordo com a “norma” das retas inscritas nos dois gráficos anteriores, essas taxas se situam tipicamente entre 5% e 10% por ano, respetivamente para países com melhores e com piores desempenhos iniciais. Estes valores, tanto para o indicador da publicação científica como para o indicador das patentes, são muito superiores ao crescimento do PIB per capita a nível mundial que, nos anos em causa, cresceu num valor médio da ordem dos 4%.
A tabela 2 permite inferir sobre a verificação ou não de convergência SIGMA. A comparação entre os valores de cada desvio-padrão no ano de 2018 com o ano de 1996 permite constatar que, nas três situações alternativas consideradas nessa tabela, houve uma pronunciada divergência SIGMA. Tal não é muito surpreendente, pois as variáveis em análise registam um alto crescimento, fazendo com que as distâncias absolutas entre os países tenham, em média, aumentado consideravelmente. O valor de SIGMA teria uma leitura menos problemática se o conjunto dos países observados não tivesse tido um comportamento tão dinâmico. Por tal razão, e como já havia sido informado na secção sobre metodologia, procedeu-se à divisão do desvio padrão pela média registada, obtendo-se o coeficiente de variação (CV, na última coluna da tabela 2). Nesta circunstância do CV, retornamos aos cenários de convergência que tínhamos detetado para a convergência BETA, com os seus valores a diminuir de 1996 para 2018 nas três alternativas constantes da tabela 2.
Posicionamento de Portugal e do Brasil no cenário de C E T global
Verificando onde Portugal e Brasil se encontram nos dois gráficos anteriores, pode visualizar-se o posicionamento de cada um dos dois países no cenário global de produção de conhecimento científico e da produção de conhecimento tecnológico. Os dois países estão identificados nesses gráficos por losangos, enquanto todos os restantes países estão identificados por pequenos círculos. A tabela 3 permite quantificar esses posicionamentos.
No gráfico 2, respeitante à publicação científica, verifica-se que Portugal é um dos países situados mais a nordeste nesse gráfico, sendo nessa zona onde se encontram os países com melhores desempenhos dinâmicos, segundo o seu posicionamento no ano inicial do período em observação. Com 277 documentos citáveis por milhão de habitantes em 1996, o país evoluiu para um valor de 2239 em 2018, beneficiando de uma TMCA de 9,5%. O Brasil tem igualmente uma evolução meritória no mesmo período, embora o ponto de partida, com 55 documentos citáveis por milhão de habitantes em 1996, fosse inferior e, naturalmente, em conformidade com a TMCA registada de 8,4%, também o ponto de chegada é inferior, com um valor de 354 (no gráfico, o Brasil está numa posição aproximadamente central). Há a relevar que ambos os países se encontram acima da linha da regressão, revelando comportamentos melhores que os expectáveis se apenas se considerarem as respetivas situações iniciais e a evolução do conjunto dos países que se observaram.
Já relativamente ao gráfico 1, que contém informação sobre patentes concedidas pelo USPTO, a situação é menos vantajosa. Ambos os países estão claramente integrados no segundo grupo deste gráfico, apresentando ambos valores de patentes concedidas no primeiro ano do período em análise abaixo de uma por milhão de habitantes. Especificamente, Portugal surge com um valor de 0,463 e o Brasil de 0,381. Verifica-se que, passados 23 anos, estes desempenhos se alteraram, apresentando em 2018 cada um dos países valores de, respetivamente, 11,3 e 1,9. O acréscimo do primeiro é muito superior, dado que evoluiu a uma TMCA de 14,9%, enquanto o segundo progrediu a uma TMCA de apenas 7,1%. Nesta circunstância, verifica-se que inclusive o Brasil se situa abaixo da “norma” definida pela linha da regressão, pois, dado o seu posicionamento inicial, esperar-se-ia uma TMCA na ordem dos 8,5%.
Discussão de resultados
As metodologias que se utilizaram neste estudo permitiram chegar a alguns resultados relevantes. Embora seja evidente que se verifique uma diminuição da divergência relativa entre países no período em estudo - tanto para a produção de conhecimento científico como para a produção de conhecimento tecnológico -, o facto de o distanciamento absoluto entre os diferentes países ter aumentado nas últimas décadas constitui também um resultado significativo. Este padrão de convergência internacional em simultâneo com aumento da distância absoluta decorre do próprio dinamismo das variáveis observadas.
Este resultado está de algum modo alinhado com os da literatura sobre a evolução de desigualdades de rendimentos a nível mundial, onde se detetam simultaneamente fenómenos de convergência (no plano internacional) e de divergência (tendo em conta os desempenhos intranacionais), sugerindo a necessidade de utilizar diferentes metodologias, quando se procura caracterizar fenómenos de natureza complexa como os analisados neste artigo.
Ainda assim, é interessante salientar que em geral os países com menores desempenhos em ambos os indicadores em observação em 1996, apresentam TMCA mais elevadas do que os países cujo desempenho era maior nesse mesmo ano inicial. Isto é particularmente evidente no caso do indicador relacionado com a publicação científica. Já no caso do indicador que associámos a produção de novo conhecimento tecnológico, vimos que, entre os países de menor desempenho inicial (“segundo grupo”), existem muitos com TMCA elevadas, mas também um número razoável com TMCA baixas ou mesmo negativas.
Estes resultados sugerem que, no caso do progresso científico, haverá uma maior linearidade do que no caso do progresso tecnológico, não havendo neste segundo caso garantia de que ter alcançado um certo patamar no ano inicial funcione minimamente como garantia de um progresso firme nos anos seguintes. Acresce que, em média, a velocidade de crescimento da publicação científica é, globalmente, superior à da evolução do patenteamento. Esse facto é observável comparando, nas regressões efetuadas, o valor da constante das publicações com a constante correspondente das patentes, sendo as primeiras sempre superiores.
Registe-se também como conclusão do estudo feito que o número de países ativos na publicação científica é muitíssimo superior ao número de ativos na produção de novo conhecimento tecnológico, pelo menos de acordo com o indicador relativo ao número de patentes concedidas pelo USPTO. Concretamente, há um enorme terceiro grupo de países que permanece ausente nas contagens de patentes que analisámos, sendo que, nos anos observados, nenhuma empresa, inventor independente, universidade ou fundação ou instituto de pesquisa público ou privado ativos nesses países registou qualquer patente no escritório de patentes dos EUA. Tal circunstância não deve obviamente ser entendida como reveladora de ausência de capacidades tecnológicas nesses países, mas apenas como indicativa da ausência de capacidades de inovação na fronteira tecnológica, podendo também decorrer de dificuldades no acesso a saberes especializados, de natureza tácita ou jurídica, necessários para submeter pedidos de patentes no USPTO.
Registe-se ainda que, quando se observa a variável de publicação científica, a consideração ou não dos países que fazem parte desse terceiro grupo em matéria de patentes altera muito as médias das respetivas amostras. Assim, enquanto para número de países N=88 a média do indicador de Documentos Citáveis era de 418 em 1996, para N=193 essa média era de apenas 222 nesse mesmo ano. É assim evidente que o terceiro grupo de países identificado concentra nações globalmente menos desenvolvidas, tanto em matéria de ciência como, e de forma muito evidente, em termos de inovação tecnológica.
A circunstância ora identificada corresponde a um padrão, onde tipicamente as nações se envolveriam em atividades científicas mais cedo do que em atividades de inovação tecnológica, pelo menos naquelas que envolvem o recurso a pedidos de patentes, configurando, se se procurar alguma noção causal, alguma possível sequência entre avanço científico e avanço tecnológico. Este resultado não é totalmente pacífico, pelo menos considerando que países que têm registado processos de desenvolvimento mais acelerados e com aproximação a níveis de produtividade e rendimento similares ao das nações mais desenvolvidas nas últimas décadas, o fizeram desenvolvendo primeiro as suas capacidades tecnológicas e, só posteriormente, a sua capacidade científica de fronteira (Nelson, 2005; Lall, 2000; Lee e Lim, 2001). Porém, sem bases para inferir possíveis efeitos de causalidade no presente estudo, esta permanece como uma questão a averiguar mais aprofundadamente em estudos futuros.
Ainda assim, os dados considerados permitem evidenciar que a progressão em termos de obtenção de patentes é menos fácil, havendo um fosso claro entre os países excluídos (o nosso “terceiro grupo”) e aqueles que já estão envolvidos nessas atividades. Existe, entre estes, também um outro fosso, entre os que apenas timidamente recorrem a esta modalidade de propriedade intelectual (o “segundo grupo”) e aqueles que a utilizam mais profusamente (o “primeiro grupo”).
Neste contexto, os casos de Brasil e de Portugal, analisados em detalhe na secção precedente, constituem excelentes exemplos para ilustrar trajetórias de desenvolvimento possíveis. A análise realizada permitiu perceber que, em termos de publicação científica, Portugal passou de um desempenho intermédio para um desempenho cuja magnitude é pelo menos similar ao que cerca de uma dúzia de países mais desenvolvidos exibiam no final da década de 1990. Como foi referido, o Brasil tem também um desempenho meritório nesta matéria, embora a um ponto de partida menos expressivo corresponda, em 2018, um resultado equivalente.
Já em matéria de patentes, ambos os países têm um ponto de partida menos favorável. É interessante questionar por que motivo alguns países do chamado “segundo grupo”, onde Brasil e Portugal se situam, regridem (TMCA negativas), enquanto outros avançam muito rapidamente (casos da Índia e especialmente da China). Certamente que aspetos que foram observados, relacionados com a mudança da composição estrutural da economia e genericamente com o enquadramento institucional, políticas e incentivos existentes interferem nas trajetórias registadas. Ficou percetível, do estudo feito, que Portugal progrediu a uma TMCA elevada, embora mantendo-se ainda a uma distância substancial do “primeiro grupo”. No caso do Brasil, a evolução registada é ainda mais preocupante, até se se tiver em consideração a perceção que surgiu durante o período em observação, a qual indicaria que o Brasil, tal como a China e a Índia, se trataria de uma economia emergente.
Conclusões
Constituiu objetivo primeiro deste artigo avaliar a evolução da distribuição internacional do conhecimento científico e tecnológico, através da análise de indicadores quantitativos que refletem os níveis de publicação científica e de obtenção de patentes. A observação e mensuração feitas possibilitaram determinar com rigor o posicionamento relativo e retirar ilações relevantes quanto à progressão observada num horizonte temporal de mais de duas décadas. As quantificações produzidas têm valor substantivo, tendo em conta a reconhecida relevância da ciência e da tecnologia na obtenção de respostas às necessidades económicas e societais, incluindo as relacionadas com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (United Nations, 2015) e com a urgência de resposta aos desafios das mudanças climáticas.
As metodologias empregues permitiram inferir genericamente a existência de cenários de convergência internacional no período entre 1996 e 2018, muito embora esta se verifique com maior intensidade no caso do indicador de publicação científica que no caso do indicador de patentes. Igualmente se concluiu que, apesar dos referidos cenários de convergência, ainda assim, a distância absoluta entre os países de maior e menor desempenho aumentou.
Os resultados obtidos apontam claramente para um padrão comum a muitos países, de que Brasil e Portugal constituem testemunho, nos quais se verifica uma precedência do desenvolvimento científico em relação ao desenvolvimento tecnológico mais próximo do estado da arte tecnológico, tal como a obtenção de patentes refletiu. Neste sentido, estes resultados podem ser entendidos como indicadores de que a obtenção de competências científicas em estados de desenvolvimento mais a montante é vital para os países se qualificarem e conseguirem passar a atuar, mais a jusante, ao nível da inovação tecnológica, pelo menos aquela que está mais ligada à obtenção de patentes, tal como aqui foi estudado. Será, porém, pertinente, para além da observação desse padrão dominante, procurar avaliar se tal precedência também se verificou nos casos de países que tiveram uma progressão económica mais expressiva nas últimas décadas, ou se, pelo menos nesses casos, não existe uma maior contemporaneidade na evolução dos indicadores de ciência e tecnologia analisados.
Os dois estudos de caso considerados neste artigo revelaram que, apesar das inúmeras diferenças existentes nas circunstâncias e trajetórias seguidas por Brasil e Portugal, ambos observam, em relação ao desenvolvimento da C e T e inovação, estrangulamentos com alguma similitude. Mesmo observando significativos progressos recentes, Portugal ainda padece de deficiências características de um país com um sistema de C e T e inovação que foi qualificado, com referência às últimas décadas do século XX, de “periférico” (Brandão, 2016). Em relação ao Brasil, é também percetível que não houve ainda uma reorientação significativa face a um modo de aprendizagem tecnológica que foi anteriormente qualificado como “passivo”, isto é, com o país seguindo uma estratégia tecnológica sobretudo orientada para a assimilação de capacidades tecnológicas a partir do exterior (Viotti, 2008).
Recordemos que, em concordância com a teoria do subdesenvolvimento à luz da abordagem de Celso Furtado (1974), as origens da dependência radicam em “malformações sociais”, sendo que o desenvolvimento neste contexto não deve ser visto meramente como um processo de constituição de capacidades produtivas, mas sim como um processo social e cultural, de mobilização de forças sociais, iniciativa e inventividade (Furtado, 1983).
Para além dos aspetos institucionais referidos no parágrafo precedente, os resultados verificados decorrem também de especializações internacionais de Brasil e de Portugal nas quais os setores de maior intensidade tecnológica e maior propensão a patentear têm menor expressão relativa. Naturalmente que a estrutura económica e o perfil da especialização constituem dados de base e que condicionam, também, a incapacidade registada de ambos os países se situarem, no capítulo das dinâmicas de produção de conhecimento tecnológico, minimamente ao mesmo nível do que ocorre em relação ao conhecimento científico.
Mas certamente que o tipo de incoerências institucionais a que Celso Furtado se referia persistem na atualidade, tendo-se, porventura, em alguns aspetos, agravado e continuado a determinar o desempenho registado. A este respeito, por exemplo, constitui uma constatação central do estudo sobre o sistema nacional de inovação do Brasil feito por Mazzucato e Penna (2016): a falta de integração entre políticas macroeconómicas e os objetivos das políticas e dos programas específicos dirigidos à inovação. Esse estudo também constata a existência de ineficiências ao nível da regulação e das políticas públicas, dando como exemplo o complexo sistema tributário ou as restrições persistentes que impedem a concretização de políticas de aquisições públicas (public procurement) com objetivos de promoção da inovação.
Estas observações sugerem uma necessidade premente de aperfeiçoar as políticas públicas de C e T, mormente no que à sua própria coordenação diz respeito, mas também na sua coordenação com um leque diversificado de outras políticas setoriais. Claramente que, nos dois países, o desempenho em inovação e em tecnologia se encontra ainda a um nível aquém daquele que a capacitação científica já alcançada poderia sugerir ser possível. Será, portanto, necessário definir políticas que permitam superar essa deficiência persistente.
Para finalizar, há a destacar que, dada a amplitude retrospetiva deste estudo, a pesquisa realizada constitui um contributo para a análise histórica, embora evidentemente com atualidade e relevância para as políticas de pesquisa e inovação de Brasil e de Portugal. A discussão da interação entre as dinâmicas de publicação científica e de inovação tecnológica está de algum modo expressa nos parágrafos precedentes, sendo que uma questão central seria saber se, numa perspetiva de desenvolvimento, e considerando tudo o resto igual, a competência científica que os dois países já adquiriram não seria suficiente para os impulsionar para um nível de competência tecnológica superior ao refletido no indicador que estudámos. O facto de nos dois casos especialmente observados não se ter verificado ainda um envolvimento mais firme no patenteamento, apesar da razoável competência científica adquirida, constitui testemunho que existe um evidente potencial por explorar.
Na sequência deste estudo, haverá que aprofundar a linha de investigação aqui iniciada. Fará sentido: ter cálculos detalhados da evolução de SIGMA e CV ano a ano; ter períodos de análise mais longos, para ter uma perspetiva histórica maior; usar dados de patentes de outros escritórios que não apenas o USPTO ou mesmo dados agregados de famílias de patentes; verificar se resultados similares se registam caso se use outras bases de dados e unidades de contagem de atividades científicas. Será também interessante que se façam estudos similares que observem determinadas classes tecnológicas de patentes ou certas áreas disciplinares do conhecimento científico. Evidentemente, a expectativa é que se progrida também para um quadro de análise causal mais estruturado.