Introdução1
A Ciência, Tecnologia e Inovação (CTI) assumem-se hoje em dia como pilares fundamentais de processos de desenvolvimento no mundo contemporâneo. Representam também diferentes culturas e prioridades, sendo objeto de visões estratégicas distintas. Tendo-se tornado objeto de interesse político e económico das nossas sociedades, são desde o século passado alvo explícito de visões políticas tanto de parte do Estado como do próprio setor privado. Concomitante, visível nas mais elementares situações do nosso quotidiano, o século XX trouxe o discurso da inovação - i. e., o “viés pró-inovação” das nossas sociedades (Blok e Lemmens, 2015) -, aquilo que Oliveira (2011, 2013) também apelidou de “inovacionismo”. Torna-se, portanto, fundamental à economia política contemporânea debruçar-se sobre esta temática, levando-nos além das modas e interpretações intuitivas na compreensão dos temas da inovação na contemporaneidade, apelando inclusive a uma perspetiva histórica.
Desde o Relatório Charpie (U. S. Department of Commerce, i. e., Charpie et al., 1967), a inovação passou a estar inserida na lógica da gestão da C&T contemporânea (Fougère e Harding, 2012, p. 27). Atualmente, o apelo à inovação está em todo o lado - na academia, no discurso político, nos espaços quotidianos, nas indústrias criativas. Dada a centralidade atribuída à inovação nas sociedades contemporâneas, acreditamos que se tornou necessário examinar criticamente o fenómeno, questionando as narrativas dominantes sobre inovação, ampliando os espaços de discussão e oferecendo abordagens alternativas (Godin e Vinck, 2017; Godin, Gaglio e Vinck , 2020).
Precisamente, nesta medida, importa examinar um exemplo paradigmático do inovacionismo contemporâneo, colocando-se o foco deste artigo na análise do conceito de inovação aberta, crescentemente influente desde que foi proposta pelo guru dos estudos de administração Henry Chesbrough, em 2003, no seu livro Open Innovation: The New Imperative for Creating and Profiting from Technology. Desde então, a inovação aberta tornou-se numa tendência no campo dos estudos de inovação (Figura 1).
Pretendemos, assim, com este contributo em forma de ensaio bibliográfico, dar sentido ao crescimento exponencial registado nesta área de produção epistémica, buscando, ao mesmo tempo, colmatar a ausência de uma visão crítica (e de perfil mais histórico) sobre a emergência do conceito de inovação aberta - o que vem sendo sentido por diversos colegas, que apontam a falta de análises qualitativas (e. g., Gao, Ding e Wu , 2020). Nessa medida, o que se procura com este trabalho é entender o surgimento do conceito de inovação aberta, incluindo uma referência ao enquadramento político-ideológico dessa tendência discursiva e das suas práticas na gestão contemporânea. Pretende-se, também, saber que problematizações suscita e em que sentido se tem vindo a verificar o seu desenvolvimento e as eventuais ressignificações à sua conceptualização nuclear.
Na primeira secção, observamos a génese do conceito de inovação aberta, proveniente de uma literatura de gestão, em relação com a economia da inovação mais recente, mas frequentemente alheada de outros contributos, inclusive prévios, demonstrando o contexto oportuno da sua disseminação nos meios do pensamento empresarial. Na segunda secção, buscaremos recordar a trajetória tecnológica prévia à emergência da retórica da inovação aberta, apontando dois fenómenos convergentes: por um lado, o aparecimento da empresa em rede e a economia da informação com o papel crescente das TIC; e, por outro, a promessa de possibilidades derivadas da era digital (e. g., web 3.0 e a indústria 4.0). Demonstra-se, ainda, como o viés da economia digital é componente importante da disseminação do conceito nos meios europeus, cunhando-se aí a expressão “inovação 2.0” e apontando-se para a necessidade de refletir sobre o seu deslocamento e/ou ressignificação política, mormente sob pressão de think tanks próximos da União Europeia. Por fim, fechamos aludindo a alguns dos principais pontos controversos em torno da inovação aberta, procurando uma reflexão clarificadora do seu significado enquanto pensamento empresarial e quanto a práticas recorrentes nos meios corporativos, desconstruindo-se, por último, aquilo que poderão ser interpretações mais intuitivas em torno da policy-framework da inovação aberta.
Da literatura de gestão às lógicas da “empresa em rede”
No seu entendimento original (ou nuclear), a inovação aberta refere-se a um conjunto de estratégias (ou práticas) que as empresas têm vindo a adotar para adquirir tecnologias externas e complementar, assim, a sua base interna de conhecimento (por exemplo, através de alianças estratégicas ou licenciamento, envolvendo a aquisição do direito de uso de conhecimento externo). O entendimento proposto por um grupo entusiasta da área da gestão é que a maioria das empresas que, alegada e historicamente, perseguiam estratégias de inovação relativamente “fechadas, com base em departamentos de I&D, estão hoje em dia buscando interações com o ambiente externo” (Lichtenthaler, 2011, p. 75). É neste sentido que a definição de Chesbrough (2003, p. 43; itálicos nossos) deve ser entendida: “Open Innovation means that valuable ideas can come from inside or outside the company and can go to market from inside or outside the company as well”.
Importa principiar por estabelecer uma genealogia correta das ideias e autores que contribuíram para a constituição da inovação aberta enquanto policy-framework, desde os primeiros anos do novo milénio. Nomeadamente, pontuar, por um lado, que mesmo antes da obra seminal considerada pela gestão e economia da inovação, sugestivamente intitulada Open Innovation: The New Imperative for Creating and Profiting from Technology (2003), há um conjunto de influências, e trabalhos precedentes, que nem sempre são reconhecidas pelos meios proponentes deste conceito - inclusive pelo próprio Henry Chesbrough.
Desde logo, a trajetória histórica das tecnologias associadas ao paradigma digital, que marcam a moda da inovação aberta, intimamente associada à terceira vaga de transformação digital (a web 3.0) e à própria indústria 4.0. Por outro lado, do ponto de vista dos autores e das correntes da literatura académica, os meios da gestão interessados nestes assuntos raramente reconhecem o papel dos estudos anteriores de organização empresarial (Penrose, 2009 [1959]; Teece, 1986; Cohen e Levinthal, 1990; March, 1991). Também não consideram outras abordagens de caráter mais histórico sobre a evolução das políticas e das dinâmicas do R&D empresarial, considerando o papel e mesmo a dependência relativamente ao financiamento das autoridades públicas. Estes estudos incluem contributos variados sobre história económica, história da tecnologia, a história empresarial e os trabalhos de história intelectual e conceptual em torno da ideia de inovação no século XX (Rothwell et al., 1974; Rosenbeg, 1982; Mowery, 1983; Godin, 2015, 2019, para mencionar apenas alguns). Lembrando-se aqui, em particular, a relação evidente do conceito precursor de “inovação pelo usuário / utilizador” (user-driven innovation) com alguns dos pressupostos da inovação aberta, quando buscam, por exemplo, a integração de utilizadores e fornecedores no processo inovativo das empresas (von Hippel, 1988, 2005).
Com efeito, se olharmos para as influências precursoras da inovação aberta, como a “inovação centrada ou dirigida pelo utilizador” [user-driven innovation], conforme Eric von Hippel (1988), encontrávamos já algumas das prerrogativas atribuídas à inovação aberta. Por exemplo, a “inovação pelo utilizador” foi vista como uma maneira de encontrar, nas palavras de Clayton Christensen, “novos métodos para forjar crescimento em novos produtos e mercados”, ou seja, para sustentar a dinâmica inovadora da empresa ( Christensen apudvon Hippel, 2005). Além disso, como afirma Söderberg (2017, p. 116), “a abertura dos processos de inovação aos usuários atrai muito interesse, notavelmente de formuladores de políticas e atores corporativos”. O mesmo acontece com o já mencionado Christensen (2011 [1997]), um dos recorrentes gurus da gestão da inovação e autor da teoria da inovação disruptiva, noção que se apresenta também como autoexplicativa, num estilo semelhante ao conceito de inovação aberta. Ambos os conceitos, inovação “pelo utilizador” e inovação aberta, apresentam-se como conceptualizações que pretendem impactar modelos de negócio estabelecidos, e ambos devem ser vistos com precursores da framework atualmente em voga da inovação aberta, longe, assim, de ser plenamente original.
Uma das principais características da inovação aberta é que emerge dos estudos de gestão. Vários estudos bibliométricos sobre inovação aberta confirmam esse perfil (Gao, Ding e Wu, 2020; Le et al., 2019; Hossain, Sayeed e Kauranen, 2016; Kovács, Looy e Cassiman, 2015; Santos, 2015; Dahlander e Gann, 2010; Huizingh, 2011). Segercrantz, Sveiby e Berglund (2017, p. 291), por exemplo, realizaram uma análise sistemática dos estudos de gestão, indicando que esta literatura produz “um círculo de auto-reforço”, um discurso de “mudança exponencial e aceleração”, reforçada por um comportamento escolar “autorreferencial que mantém um viés pró-inovação”. Esse viés é visível nas nossas sociedades, que atribuem “significados positivos quase exclusivos” à inovação (Godin, 2015, 2019) e a sua “natureza omnipresente”, que já demonstrou consequências sistémicas (menos positivas) nos contornos de economias pretensamente globais (Segercrantz , Sveiby e Berglund, 2017, p. 291).
Ao olharmos para a história empresarial, por seu lado, sob uma perspetiva sociológica, verificamos a tendência a diminuírem os proprietários familiares, surgindo os empresários profissionais, gestores, CEO, a profissionalização (e legitimação) de um determinado perfil de quadros - isto é, quadros empreendedores, um staff de gestores. É o protagonismo de um novo corpo social de gestores e administradores assalariados que, por si só, justifica o aumento da produção de um determinado tipo da literatura. Um dos objetivos centrais em torno da intensa produção de estruturas conceptuais é fornecer uma doutrina administrativa, em que os estudos de gestão se têm empenhado, categorias conceptuais que apostam propositadamente em sustentar um dinamismo inovador - um corpo de literatura que é performativo nas suas intenções, arriscando defender mudanças e perspetivas transformadoras. Não que não seja possível assumir práticas de gestão de forma ética e criticamente séria (e. g., Blok, 2022), mas desencobrir o caráter ideológico dessa literatura tornou-se um dos principais desafios da contemporaneidade.2 O historiador Fernand Braudel, na sua obra The Wheels of Commerce (1983 [1979], p. 453), sabiamente percebeu que se deve pensar “mais do que uma vez” quando estamos a lidar com promessas relativas àquilo que, algo ironicamente, apelidou de “modelo de negócio do futuro”.
Como tivemos oportunidade de ver com maior detalhe anteriormente (Brandão, 2021), vários dos pressupostos desta proposta conceptual da inovação aberta derivam de contributos anteriores, não apenas da literatura de gestão, mas de estudos que fornecem evidências e elementos importantes que precedem a literatura proponente da inovação aberta (Kovács, Looy e Cassiman, 2015, p. 15). História económica, sociologia, economia e gestão, representam âmbitos disciplinares que, desde as décadas de 1980 e 1990, trabalham em temas que alimentaram o surgimento da atual framework da inovação aberta, olhando-se, já desde então, com assinalável solidez empírica, as trajetórias tecnológicas e organizacionais centradas na empresa (Penrose, 2009 [1959]; Rothwell et al., 1974; Teece, 1986; entre outros).
Em concreto, é visível que, a partir da década de 1990, a literatura de gestão já caminhava em direção a um modelo que retratava a empresa como uma rede de parcerias estratégicas. Seguindo Cantwell (2001, p. 19), essa “empresa em rede” era “[um] subproduto […] da cooperação interempresarial entre grandes firmas […] cada vez mais motivada pela necessidade de trocas mútuas baseadas em tecnologia e aprendizagem coordenada, indo além do tradicional conluio de garantir o exercício conjunto de posições de poder no mercado”.
Outro aspeto é a recorrência de alguns temas, como o da procura do consumidor, ou o apelo ao usuário/utilizador (e. g., von Hippel, 1988). Da mesma forma, as críticas às burocracias e estruturas hierárquicas e verticais também são proeminentes; práticas como o planeamento começaram também a descartar-se desde então, ao mesmo tempo em que já se desenhava um novo modelo de negócios, apostando em garantir “flexibilidade” e em promover arranjos horizontais entre empresas, startups, universidades e governo. É todo um conjunto de práticas de gestão que tomaram forma com o aparecimento da “empresa em rede”, “[um]a empresa magra [lean], ‘simplificada’ [streamlined], ‘reduzida’ [slimmed down] [que] perdeu a maior parte de seus graus hierárquicos, mantendo apenas entre três e cinco [níveis hierárquicos], e consignando camadas inteiras de hierarquia ao desemprego” (Boltanski e Chiapello, 2007 [1999], p. 73). Essa é a mesma empresa que Manuel Castells (2010 [1996]) descreve para a sociedade da informação e aquilo que se tem vindo a designar, desde os anos 1990, como uma nova economia. Mais uma vez, as telecomunicações e a revolução da informação permitiram que a “empresa em rede” se tornasse real.
Essa é a empresa hoje, cercada por um conglomerado de fornecedores, subcontratados, prestadores de serviços, pessoal temporário, uma força de trabalho dispersa, de diversos atores operando em rede. A rede envolve fornecedores, clientes, consultores e especialistas externos. Com a rede, os limites da firma contemporânea ficaram difusos. Este é o longo processo de reengenharia da organização de produção em massa (com seus grandes laboratórios de I&D), que provém das últimas décadas do século XX.
A realidade das práticas empresariais antecipou, de facto, o que Chesbrough e os gurus da gestão da inovação aberta propõem hoje em dia:
[…] the ideal team… by definition is innovative, multiple, open to the outside world, and focused on the customer’s desires. Teams are a locus of self-organization and self-monitoring. Thanks to these new mechanisms, the hierarchical principle is demolished, and organizations become flexible, innovative and highly proficient. […] It must therefore keep in-house only those operations where it possesses a competitive advantage - its core business - and outsource the other operations to subcontractors who are better placed to optimize them. [Boltanski e Chiapello, 2007 [1999], p. 75]
Trajetória/s da inovação aberta: da revolução eletrónica à “inovação aberta 2.0”
Muito comum à inovação aberta, e um contexto semelhante ao surgimento de outas conceptualizações correlatas (i. e., “inovação orientada para o utilizador”, “inovação disruptiva”, shared value), é que se trata(m) de conceito(s) profundamente marcado(s) pela era digital que estamos a viver. Como reconhece Darryl Cressman (2019, p. 20), em sua apreciação crítica sobre a “inovação disruptiva”, estamos a falar de “conceitos usados para descrever processos pelos quais as tecnologias e plataformas digitais em rede são dotadas de [excecional] capacidade de transformar setores inteiros de indústrias e instituições vistas como anacrónicas e ineficientes”. Há que reconhecer, portanto, que, no cerne deste alvoroço das últimas décadas, em torno da cultura empresarial, de teorização e proposição de “novos” modelos de negócio baseados na retórica da “inovação aberta”, encontramos uma revolução tecnológica que é já histórica, em telecomunicações e processamento de dados, e que segue alimentando promessas e distopias tecnológicas que compõem o imaginário da economia política contemporânea.3
Tal como o historiador David Reynolds (2000) notou, durante a Guerra Fria, segurança nacional e status incentivaram o investimento de uma grande quantidade de recursos para certas áreas em que a revolução eletrónica se baseou - avanços de física do estado sólido, como tubos de vácuo, semicondutores, microprocessadores, entre outros avanços em componentes eletrónicos e materiais. Avanços tecnológicos que deram origem à era digital nas décadas de 1990 e 2000 (Chandler, 2005 [2001]; Castells, 2010 [1996]). A revolução nas comunicações teve amplas implicações, incluindo uma abertura das sociedades ocidentais, assim como o desequilíbrio da própria disputa ideológica dos blocos políticos, no sentido, por exemplo, de favorecer medidas económicas ultraliberais, seguindo as pressões de corporações multinacionais, “ fornecedores” rivais, médias-pequenas firmas e novas empresas de start-ups, participando num crescente lobby pela desregulamentação, favorável a explorar as oportunidades proporcionadas por um mercado de TIC em expansão.
Se, no passado, por exemplo, o jornal televisivo foi profundamente afetado pela transmissão via satélite (Reynolds, 2000, p. 500), os computadores e a eletrónica de hoje, bem como a revolução da internet, tiveram um tremendo impacto nas mentalidades atuais. Conforme apontado por Gassmann (2006, p. 223), um autor de referência na literatura sobre inovação aberta, “[a]s novas tecnologias de informação e comunicação (TIC) reduziram as distâncias percebidas entre os atores do processo de inovação, permitindo a integração de clientes e fornecedores no processo de design e desenvolvimento”. É o ponto de partida donde se constitui a “economia informacional” de Castells (2010 [1996]), o pilar central da civilização em que vivemos e da tão mencionada “nova economia” (Godin, 2004). Nessa medida, Manuel Castells (2010 [1996], p. 163-164) não escreveu apenas sobre a economia informacional, mas também sobre a “empresa em rede”, enquanto “nova lógica organizacional”. Cantwell resume de forma brilhante não apenas as trajetórias tecnológicas, mas as próprias tendências empresariais que as acompanham, do final do século XX ao início do século XXI:
The old paradigm until around 1970 was based on energy and oil-related technologies, and on mass production with its economies of scale and specialized corporate R&D. In recent years this has gradually been displaced by a new paradigm grounded on the economies of scope as distinct from scale, and derived from the interaction between flexible but linked production facilities, and a greater diversity of search in R&D. Individual plant flexibility and intra-company network linkages both depend upon the new information and communication technologies (ICT). [Cantwell, 2001, pp. 20-21]
Neste caldo cultural inclui-se mesmo uma atitude benigna perante o discurso de “abertura”, interpretando-o além das implicações económicas e do viés empreendedor de um ethos de laissez-faire que, desde o início o liberalismo, já se apresentava como definidor ideológico de uma corrente de pensamento. Com efeito, hoje em dia, os usos mais recentes do “aberto” são “decorrentes do advento de tecnologias em rede, incluindo a Internet e tecnologias móveis” (Smith e Seward, 2017). As trajetórias tecnológicas e os propalados sucessos da inovação nas nossas sociedades aumentam assim o apelo retórico do discurso de “abertura” (Pomerantz e Peek, 2016).
O pano de fundo histórico das trajetórias tecnológicas (e empresariais) da Guerra Fria e do final do século funde-se, então, com a “transformação digital” contemporânea, na qual vivemos e que, de acordo com Bogers, Chesbrough e Moedas (2018, p. 8), chegou à terceira onda:4
This is when digital technologies and the Internet leave the traditional infrastructure and finally move to the highly regulated sectors of health, energy, transport, or finance. This is the world of Machine Learning, Quantum Computing, Blockchain, the Internet of Things (IoT), the world of sensors, and the world of “big data”. It is the world where bits, atoms, and even cells combine in new and interesting ways.
Como Cantwell (2001, p. 22) também destaca: “a capacidade de combinar as TIC com outras tecnologias como um meio de fundi-las e criar novas combinações”; esse é o cerne desta “terceira onda” e da transformação digital que estamos a viver. Nessa medida, o discurso de “inovação aberta” está notavelmente marcado por tendências prévias e por correntes da sociedade da informação e, acentuadamente, pelas trajetórias tecnológicas da cultura do computador e da internet. Podemos afirmar que o momento de inseminação das práticas da inovação aberta antecede, assim, consideravelmente o início dos anos 2000, momentum propriamente de emergência do discurso da inovação aberta, sendo que, como têm vindo a apontar vários autores, alguns dos seus elementos e motivos contextuais remontam às décadas de 1960 e 1970 (Trott e Hartmann, 2009; entre outros).
Vários destes elementos da trajetória histórica de construção da inovação aberta, enquanto estrutura conceptual e conjunto de práticas em voga nos meios da gestão empresarial, tornar-se-ão mais explícitos com o segundo momento de inseminação do conceito de inovação aberta, correspondendo à sua difusão nos círculos europeus. Regista-se mesmo uma convergência do discurso da inovação aberta com a visão estratégica dos meios europeus, a partir de 2010, quando, por exemplo, foi criado o Grupo de Política e Estratégia de Inovação Aberta (OISPG - Open Innovation Strategy and Policy Group),5 que propôs unir grupos industriais, academia, governos e setor privado para apoiar políticas de inovação aberta na Comissão Europeia. Apesar de se afirmar que não havia ligações oficiais com as instituições europeias, o grupo trabalha em estreita colaboração com a Comissão da UE. Em sintonia com Martin Curley (ex. 2016), diretor da Intel Labs Europe e presidente do OISPG, este think tank afirma que a “nossa filosofia [de economia política, diríamos] abraça o paradigma da ‘inovação aberta 2.0’, perspectivando-se uma ‘nova geração de inovação aberta’”.
Posteriormente, em 2014, foi constituído outro grupo, o RISE - Research, innovation and science expert group,6 -, como grupo de especialistas em políticas de alto nível que assessorou o comissário para a Investigação, Ciência e Inovação, o português Carlos Moedas. O grupo concluiu o seu mandato em 2019 e o resultado do seu trabalho é um relatório idiossincrático, intitulado Europe’s Future: Open Innovation, Open Science, Open to the World - Reflections of the RISE Group (European Commission, 2018). Este relatório ficou conhecido como o relatório dos three opens, mostrando como o pensamento liberal e o seu discurso de “abertura” estão enraizados nos círculos de formulação de políticas da UE.
O culminar desta mobilização da intelligentzia política (e empresarial) europeia aconteceu com a publicação de uma obra do próprio Curley (e Salmelin, 2018), que cunhou na literatura o termo “inovação aberta 2.0”, atualizando e ampliando a proposta de Chesbrough (2003). A “inovação aberta 2.0” apresenta-se aí como um novo paradigma para extrair os benefícios da nossa era digital para a recém-reatualizada “nova economia”, um outro conceito frequente desde os círculos da OCDE dos anos 1990 (Godin, 2004). A visão é a de que existe um novo paradigma, ou um “novo modo” (de inovação), que “confunde as linhas entre universidades, indústria, governos e comunidades” (Curley e Salmelin, 2018). Este novo modo baseia-se nas tecnologias de “conectividade digital”, como a computação “em nuvem”, a chamada “internet das coisas” (i. e., web 3.0) e o big data. Curley e Salmelin (2018, p. xiii) afirmam que a “Inovação Aberta 2.0 (OI2) [seria] o novo paradigma e a metodologia [adequada] para a Inovação Digital”. A promessa é “uma vida inteligente e sustentável” numa era em que “as inovações impulsionam o crescimento económico e melhoram a qualidade de vida” (Curley, 2016, p. 314).
De acordo com Bogers, Chesborugh e Moedas (2018, p. 10), é, de facto, no mundo digital que há uma mudança de paradigma, onde as inovações físicas e digitais se combinam, “colocando os usuários no centro, e onde os recém-chegados com novos modelos de negócio entrarão e criarão rapidamente mercados inteiramente novos”. Martin Curley, Fundador e codiretor do Innovation Value Institute, um amplo consórcio de pesquisa de inovação aberta do setor académico, acredita que o sucesso é apenas uma questão de confiança e mudança cultural em direção aos valores de inovação aberta:
OI2 [open innovation 2.0] is a new mode of innovation based on principles of integrated collaboration, co-created shared value, cultivated innovation ecosystems, unleashed exponential technologies, experimentation and focus on adoption and sustainability. OI2 is rooted in a vision of sustainable intelligent living where smart solutions are developed and diffused meeting needs while being resource and environmentally efficient. OI2 also promises significant improvements in the pace, productivity, predictability, and profitability of our collective innovation efforts. [Curley e Salmelin, 2018, p. 3]
Ou seja, um dos valores da OI2 é o das práticas colaborativas, baseadas em princípios e métodos de “valor partilhado” [shared value], com o objetivo de forjar parcerias dentro de uma outra estrutura conceptual hoje em voga, a “Hélice Quadrupla” (Carayannis e Campbell, 2009). Este aparato conceptual da “neogestão” compõe, por exemplo, o quadro ideológico do capitalismo de plataforma (apoiado em software de apps - i. e., aplicações eletrónicas) e uma metodologia de gestão baseada no modelo de negócio de “escala” (sob o mantra “falhe rápido, escale rapidamente”), orientado para o usuário/utilizador, para a resolução de problemas, entre outros lemas frequentes do jargão de gestão.
Com estes desenvolvimentos mais recentes, o entendimento original da inovação aberta, enquanto modelo empreendedor, parece estar em processo de fusão com valores de domínio público, políticas públicas e prestação de serviços aos cidadãos, incluindo responsabilidade social, atividades sem fins lucrativos e acesso aberto ao conhecimento, da educação à publicação científica, cobrindo uma miríade de diferentes efeitos. As “três aberturas” (the three opens), conforme o relatório da União supracitado, exploram assim a conjetura de que “[o] advento das tecnologias digitais está tornando a ciência e a inovação mais abertas, colaborativas e globais” (Bogers, Chesbrough e Moedas, 2018, p. 6). Ao nível da política europeia, portanto, a “inovação aberta” parece incorporar um vasto leque de expectativas, não só prometendo benefícios económicos de melhores serviços e produtos, mas também alegando que dará contributo para a coesão (e inclusão) social na Europa. Acima de tudo, significaria que os cidadãos se tornariam de alguma forma capazes de moldar o futuro com as suas próprias mãos.
A evolução deste pensamento sobre inovação aberta faz-se acompanhar por uma clara atividade de lobby, colocada em marcha desde cedo.7 Diversos países têm vindo a promover, inclusive com assiduidade, eventos sobre inovação aberta, congregando diferentes propósitos e ênfases de análise, desde uma perspetiva organizacional às práticas empresariais mais disruptivas, sobre como recrutar ideias e modelos de negócio com potencial inovador, até como pretexto para incluir o debate de temas candentes, da economia circular ao planeamento territorial.
Pode observar-se, deste modo, que a inovação aberta está a ser capaz de “viajar”, como um “conceito amplamente utilizado na academia, negócios e na formulação de políticas”, na “intersecção de investigação, prática e política” (Bogers, Chesborough e Moedas, 2018, p. 5). Com este “movimento de deslocamento” (Schon, 1963), estão claramente em curso extrapolações baseadas numa compreensão intuitiva; embora, por exemplo, a maioria dos pressupostos associados à inovação aberta tenham como base conclusões tiradas de análises e estudos de caso baseados no desenvolvimento de hardware de computador, software de código aberto [open-source] e em empresas de alta tecnologia dos setores de comunicações e informação. Sendo ainda as exceções normalmente assinaladas o setor de biotecnologia e a indústria farmacêutica, que se acredita estarem a abraçar o paradigma da inovação aberta.8
Considerações finais
Um conceito como o de inovação aberta, como vimos, só surgiu recentemente (2003), e, apesar das suas diferentes utilizações, a sua génese forjou-se no âmbito dos estudos organizacionais de estratégia corporativa, decorrendo claramente de preocupações específicas do meio empresarial (i. e., lucro imediato, corte de despesas correntes, etc.). No seu sentido original (e nuclear) a “inovação aberta” representa uma visão paradigmática de ambientes corporativos que lidam com departamentos de I&D e que, antes de mais, buscam encontrar novas formas de absorver boas ideias além dos seus limites internos, mesmo tempo evitando os inconvenientes dos monopólios - não num sentido de liberalização, “quebra” ou suspensão de patentes, ou num sentido de alienação de direitos de propriedade intelectual, mas antes de exploração do potencial de mercado, por meio de licenciamentos e de transações que geralmente apenas aconteciam entre empresas afiliadas (Chesbrough, 2003, p. 157).
Com a “inovação aberta”, a abertura do processo de inovação inclui, assim, várias perspetivas no contexto da estratégia empresarial: (1) globalização corporativa do valor e discurso estratégico da inovação; (2) terceirização das atividades de I&D; (3) integração antecipada do fornecedor e/ou do consumidor; (4) inovação pelo utilizador (nichos de utilizadores-líder ou comunidades de prospeção para recrutamento de talentos); e (5) comercialização externa e aplicação de tecnologia (Gassmann, 2006, p. 224). Estas práticas, inerentes ao modelo de negócio da inovação aberta, remetem sobretudo para os âmbitos da gestão empresarial, compaginando-se ainda com outras práticas, diga-se ética e socialmente duvidosas, da “maior popularidade entre os gestores, seja como medida de redução de custos ou porque as empresas estão mais em condições de usar tecnologia do que criá-la” (West et al., 2014, p. 808).
Vale sublinhar que a inovação aberta engloba, efetivamente, práticas de gestão baseadas em cortes de recursos humanos e precarização da mão de obra e, consequentemente, desinteresse das médias e grandes empresas pela fixação da investigação e desenvolvimento experimental. Assim, a inovação aberta torna-se a “moeda comum” (Dahlander e Gann, 2010, p. 699) que reflete não apenas trajetórias tecnológicas em curso, mas, igualmente, mudanças sociais e económicas, inclusive nos padrões de trabalho do setor privado. A inovação aberta surge em aparente sintonia com a nova economia e a era digital, uma autêntica economia intangível (alegadamente imaterial) que caracteriza a era “pós-industrial”, mas em que as antigas relações de trabalho estão em precariedade e deslocamento, fruto de um “mercado de trabalho flexível” (Mayer, 2010, p. 208) habilmente engendrado pelas narrativas de “abertura” e de inovação. A sincronia do culminar destas trajetórias tecnológicas com os discursos de inovação aberta não deve, pois, ser vista como mera coincidência, havendo motivos de sobra para desconfiarmos de oportunismos diversos associados à estratégia empresarial da inovação aberta (i. e., transferência de risco, deslocalização de departamentos de I&D, despromoção da cultura científica, precariedade das relações laborais, etc.).
Por último, cabe assinalar aquilo que cremos ser o essencial deste contributo, denotando a acentuada carga política das narrativas económicas (i. e., economia política) da nossa contemporaneidade, sublinhando aquilo que acreditamos que são as tendências em torno do uso do conceito de inovação aberta: primeiro, que, na sua génese empresarial, e ao contrário do que uma interpretação intuitiva possa sugerir, a inovação aberta não diz muito sobre democracia ou algum tipo de ideal coletivo (ou mesmo cooperativo); segundo, a inovação aberta não é sobre democracia, é sobre lucro, negócios e soluções organizacionais para as empresas lidarem com o desenvolvimento tecnológico e a inovação; terceiro, que nada disto é inteiramente novo, que há precedentes, inclusive fluxos anteriores da literatura lidaram com estes fenómenos da “empresa em rede”, de diferentes esquemas de parceria e cooperação envolvendo estruturas de R&D, etc., denotando-se sobretudo a variedade e a incerteza em torno das estratégias organizacionais para estimular a inovação.