O livro Conhecer para Dominar. A Antropologia ao Serviço da Política Colonial Portuguesa em Moçambique, da autoria de Rui Pereira (1957-2020), publica na íntegra e sem modificações a tese de doutoramento defendida por este antropólogo em 2005, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (Universidade Nova de Lisboa). Esta tese foi o culminar de uma pesquisa iniciada nos anos 1980 sobre as relações entre antropologia e colonialismo em Moçambique (onde Rui Pereira viveu entre 1958 e 1972). Trata-se de uma publicação póstuma. Rui Pereira faleceu prematuramente em 2020, sem que lhe tenha sido possível rever e atualizar a tese (como provavelmente era seu objetivo). Esta situa-se em campos disciplinares - história do colonialismo português, história da antropologia, a relação entre colonialismo e antropologia - que conheceram desenvolvimentos significativos nos últimos anos. Se tivesse tido oportunidade de rever a tese, Rui Pereira - que, até à sua morte, ensinou “Antropologia e Colonialismo” na licenciatura em Antropologia da FCSH (UNL) - teria certamente integrado nela esses desenvolvimentos.
Isso não significa, entretanto, que não se deva sublinhar a grande importância de Conhecer para Dominar. O livro debruça-se sobre a história da antropologia colonial portuguesa em Moçambique ao longo do século XX, com particular enfoque no período do Estado Novo. Segundo o autor, Moçambique seria “a colónia portuguesa que mais ‘atenção antropológica’ suscitou” (p. 169), sendo essa uma das razões para a sua escolha como estudo de caso suscetível de ilustrar, para o caso português, a relação entre antropologia e colonialismo.
O livro tem uma organização clara. Depois da “Apresentação” (capítulo I), Rui Pereira procede a um enquadramento geral das articulações entre antropologia e colonialismo na história das antropologias europeia e norte-americana (capítulo II), para se focar depois nas formas genéricas que essas articulações assumiram no caso português (capítulo III). Os capítulos IV a VIII - que constituem o âmago do livro - passam sucessivamente em revista diferentes momentos da história da antropologia e do colonialismo português em Moçambique. O capítulo IV foca as políticas de codificação dos “Usos e costumes indígenas” que deram origem à Missão Etognósica de Moçambique. O capítulo V - centrado na Missão Antropológica de Moçambique - trata a importância da antropologia física - de recorte racialista - nas pesquisas conduzidas nos anos 1930 e 1940. O capítulo VI desenvolve a temática da “Etnografia administrativa” e o capítulo VII - centrado na Missão de Estudo das Minorias Étnicas do Ultramar Português, dirigida por Jorge Dias - debruça-se sobre a emergência tardia, a partir de final dos anos 1950, da antropologia cultural e social em Moçambique e das suas relações com o colonialismo português.
Na realidade, são duas as antropologias de que Rui Pereira fala no seu livro. Uma primeira - tratada no capítulo V - é a antropologia física dominante em Moçambique entre 1936 e 1955. Rui Pereira identifica os seus principais protagonistas e produções, com destaque para Santos Júnior, um discípulo de Mendes Correia que conduziu seis campanhas no âmbito da Missão Antropológica de Moçambique. Nesse período, segundo Rui Pereira, num total de 44 estudos sobre Moçambique, 30 versavam tópicos relacionados com antropologia física, particularmente com a antropometria (p. 255). A etnografia ou a antropologia cultural e social eram consideradas irrelevantes. Tal ficar-se-ia a dever, segundo o autor, à “dominância obsessivamente biológica da ‘Escola do Porto’, cujo mais insigne representante, Mendes Corrêa ocupava lugares-chave nos organismos de investigação científica colonial portuguesa”. Esse facto, ao mesmo tempo que dificultou “o desenvolvimento de uma perspetiva cultural e social nas ‘missões antropológicas e etnológicas’”, contribuiu também “para a cristalização da imagem dos povos colonizados como ‘raças’ mental e civilizacionalmente atrasadas” (p. 290). Os pressupostos claramente racialistas dessa antropologia física - expressos na citação anterior -, assim como o seu carácter anacrónico, são postos em evidência por Rui Pereira, que sublinha a sua simultânea adequação a algumas linhas de forças da política colonial portuguesa, relacionadas com a avaliação da capacidade de trabalho das populações indígenas e associadas à política de concentração das populações indígenas em “aldeamentos” e à implementação da cultura obrigatória do algodão (pp. 271-272).
Simultaneamente, Conhecer para Dominar - e aí reside a sua maior importância - procede a um levantamento muito completo das marcas e dos sinais deixados em Moçambique por uma segunda antropologia, mais interessada na cultura e na organização social (mesmo que num registo meramente descritivo). Esse interesse começa por ser abordado no capítulo IV, dedicado à Missão Etognósica de Moçambique, dirigida por José Gonçalves Cota, cujo “objetivo principal” era, não apenas “lançar as bases jurídico-etnológicas para um direito civil e penal indígena adaptado aos [seus] ‘usos e costumes’ ” (p. 201), mas também a publicação final de um estudo etnológico “capaz de transmitir aos funcionários coloniais uma ideia sobre a mentalidade das populações africanas” (p. 207). A Missão defrontou-se, entretanto, com dificuldades, decorrentes da “falta de conhecimento sobre as sociedades africanas” e “da ignorância absoluta das línguas locais” (p. 206) dos funcionários coloniais que deveriam fornecer a informação. A atitude contemporizadora de Gonçalves Cota em relação aos “usos e costumes indígenas” enfrentava também a oposição da Igreja Católica, e, no seguimento da publicação, em 1954, do Estatuto dos Indígenas Portugueses das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique, Silva Cunha - que viria a ser ministro do Ultramar de Salazar - demarcou-se da política de contemporização de Gonçalves Cota, não promulgando os “trabalhos da Missão Etognósica de Moçambique” (p. 244).
Um segundo momento no desenvolvimento de uma perspetiva etnográfica sobre Moçambique ocorre nos anos 1950 e prende-se com o desenvolvimento - tratado no capítulo V - de uma “etnografia administrativa” a cargo de funcionários coloniais. Rui Pereira fornece um bom enquadramento dessa etnografia - responsável por 30 monografias publicadas entre 1950 e 1960 - resultante, em particular, de novos requisitos para a progressão na carreira dos administradores coloniais. Embora a maioria dessas monografias seja caracterizada por Rui Pereira como “medíocre” (p. 342), o autor abre - e bem - uma exceção para o etnólogo António Rita-Ferreira, a quem dedica a parte final do capítulo V. Começando por ser, segundo Rui Pereira, o típico “etnólogo do governo”, Rita-Ferreira publicou assiduamente. Conhecia bem o que se fazia na antropologia africanista da época e o seu modo de encarar os problemas foi-se alterando, de tal modo que - como sublinha Rui Pereira - “na segunda metade da década de 1950 […] ganhou sentido crítico e cientificidade suficientes para, por mérito próprio, poder reivindicar o estatuto de ‘o etnólogo’” (p. 337). Embora Rui Pereira não acompanhe - compreensivelmente - a obra de Rita-Ferreira no período posterior à independência de Moçambique, é certamente um dos grandes méritos da sua tese ter dado visibilidade a um dos mais importantes antropólogos portugueses que escreveu sobre Moçambique.
O período em que Rita-Ferreira se torna “o etnólogo” de Moçambique é marcado por mudanças na política colonial portuguesa, movidas pela vontade de contrariar os ventos independentistas que começavam a soprar em África. Embora realizadas contra esses ventos - para citar o feliz título do livro de Valentim Alexandre, Contra o Vento: Portugal, o Império e a Maré Anti-Colonial (1945-1961) (2014) - essas mudanças criaram um novo quadro para a pesquisa colonial. Um dos protagonistas dessas mudanças foi, como é conhecido, Adriano Moreira. Figura central da “corrente reformadora da situação colonial” (p. 354) - e mais tarde ministro do Ultramar de Salazar - Adriano Moreira foi nomeado, em 1956, diretor do Centro de Estudos Políticos e Sociais da Junta de Investigações do Ultramar, onde criou, entre outras, a Missão de Estudo das Minorias Étnicas do Ultramar Português (MEMEUP), cuja direção foi confiada a Jorge Dias. Como escreve Rui Pereira, “mais do que saber gerir os meios de produção colonial, tratava-se agora de saber gerir politicamente as consciências das populações africanas” (p. 353). A antropologia física perdia a sua importância e “estava aberto o caminho para a prática de uma investigação assumidamente etnológica” (p. 358).
Convidado para chefiar a MEMEUP, Jorge Dias - que até então pisara exclusivamente terrenos “metropolitanos” - irá então reorientar a sua pesquisa para África. O resultado mais conhecido dessa sua reorientação são as monografias que escreveu - duas delas em conjunto com a sua mulher, Margot Schmidt Dias - sobre os macondes do norte de Moçambique. Mas foram-lhe também confiadas tarefas mais “políticas”, de levantamento e estudo dos desafios enfrentados pelo regime colonial português em África, mais especificamente em Moçambique. Dessas tarefas resultaram quatro Relatórios de Campanha da MEMEUP que Jorge Dias escreveu entre 1958 e 1961. Esses Relatórios - também assinados por Margot Dias e Manuel Viegas Guerreiro (também ele colaborador do MEMEUP e autor do IV volume de Os Macondes) - não constam da bibliografia oficial de Jorge Dias. Tinham sido referenciados, de forma algo genérica, no livro de Donato Gallo, O Saber Português: Antropologia e Colonialismo (1988). Coube a Rui Pereira o mérito de, ainda nos anos 1980, ter escrito sobre eles de forma informada e completa.
Não é por isso de estranhar que o capítulo VII de Conhecer para Dominar seja o mais importante capítulo do livro. Por um lado, porque se debruça sobre uma faceta menos conhecida - mas muito importante - da obra daquele que, para todos os efeitos, foi o mais importante antropólogo português do século XX. Por outro lado, porque analisa, de forma informada e produtiva, essa faceta de inteligence colonial de Jorge Dias.
Não cabe aqui fazer um resumo do conteúdo dos Relatórios e da abordagem que deles faz Rui Pereira. Construídos sobretudo a partir de Moçambique, eles basearam-se também em deslocações de Dias ao então Tanganhica, à África do Sul e a Angola. Mas talvez valha a pena sublinhar o modo como eles revelam algo que Jorge Dias - acho - nunca conseguiu resolver satisfatoriamente. Por um lado, como sublinha Rui Pereira, “Jorge Dias acreditava, no geral, na excelência do modelo colonial da administração portuguesa, das suas boas intenções, e desde que educado, nas boas qualidades do povo português, que o habilitava para o desempenho das tarefas de colonização” (p. 380). Em particular, Jorge Dias acreditava na “feição especial” (p. 364) do colonialismo português, que via com as lentes do luso-tropicalismo. Mas, simultaneamente, Jorge Dias foi, nos Relatórios, um acerado crítico do colonialismo e dos colonos portugueses em Moçambique, a quem criticava - entre muitas outras coisas - os “excessos racistas” (p. 370). Para Jorge Dias, de facto, o racismo dos colonos portugueses de Moçambique “estava perigosamente próximo da absoluta segregação racial, que ele viria a conhecer durante as suas deslocações à (então) União Sul-Africana” (p. 395) e que criticou de forma violenta num dos seus Relatórios (p. 397). A sua deslocação ao Tanganhica levá-lo-ia mesmo a elogiar a colonização inglesa, por contraponto à colonização portuguesa (o que contradizia explicitamente a sua crença no “excecionalismo” luso-tropicalista da colonização portuguesa). Rui Pereira refere a esse respeito que esta deslocação “contribuiu para o desenvolvimento do sentido crítico de Jorge Dias” (p. 392) em relação ao colonialismo português. Creio, entretanto, que a contradição de base entre o colonialismo “ideal” que defendia e o colonialismo “real” que encontrou no terreno, não parece ter sido resolvida por Jorge Dias.
Embora privilegie os Relatórios, o capítulo que Rui Pereira consagra a Jorge (e Margot) Dias aborda outros temas, com particular incidência para as monografias que ambos escreveram sobre os macondes. Mas é talvez pela sua abordagem aos Relatórios que o capítulo VII se notabiliza. Este pode, assim, ser visto como o ponto alto de um livro que - como sublinhei - tem muitas outras razões para ser vivamente recomendado. Com ele ficamos a saber bastante mais sobre a história da antropologia portuguesa e do colonialismo português e sobre antropologia e colonialismo em Portugal.