Introdução: “donde veio, como veio e a que veio a análise social ?”
Em 1988, aquando do lançamento do número 100 da Análise Social, Adérito Sedas Nunes fazia um balanço da história da revista que havia fundado em finais de janeiro de 1963, perguntando “donde veio, como veio e a que veio a Análise Social?” (Sedas Nunes, 1988, p. 12). A resposta que Sedas Nunes nos oferece nas páginas do número 100 da revista é complexa e rica em detalhes, abarcando em justificações sensatas e ponderadas a multiplicidade de fatores históricos, sociais e políticos por detrás do nascimento da Análise Social. Em jeito dialético, oferece-nos uma resposta liminar para a questão que havia colocado. Diz-nos que a Análise Social nasceu de uma dualidade que misturava o gosto com o interesse. Nas suas próprias palavras: “O interesse era o interesse pelos problemas sociais, numa acepção lata que abrangia os problemas do desenvolvimento; o gosto era o gosto de conhecer e dar a conhecer as realidades sociais” (Sedas Nunes, 1988, p. 19). Para Sedas Nunes, as duas motivações profundas - gosto e interesse - constituíam a marca da Análise Social. Fazendo-nos lembrar as lições de Platão, que na República entrelaça espírito, razão e gosto, Sedas Nunes via no apetite pelo conhecimento e no gosto em compreender os problemas do desenvolvimento sócio-económico português uma associação inquebrável. Como escrevia na altura: “Esta compenetração do interesse pelo gosto e do gosto pelo interesse situou a Análise Social no melhor dos campos possíveis” (Sedas Nunes, 1988, p. 20), abrindo terreno fértil para um espaço de construção das ciências sociais em que investigadores sociais ombreavam com historiadores.
A Análise Social, desde o início, assumiu a sua vocação multidisciplinar, estimulando a publicação de textos de várias disciplinas e unindo o espírito sociológico com os contributos da história. Afinal o gosto e o interesse transportam-nos para uma problemática de cariz sociológico, enfatizando a importância das motivações (assim lembrando a sociologia de Pierre Bourdieu, e, em particular, a sua obra sobre a distinção de 1979). A Análise Social revestia-se de motivações singulares e isso era - e continua a ser! - importante. O que se passou, afinal, nestes 60 anos de existência? A pergunta de Sedas Nunes continua a ser tão oportuna hoje como o era em 1988. Procuraremos responder-lhe a partir das lentes que herdámos de Sedas Nunes. As motivações continuam a ser a nossa base de análise. Para sabermos “a que veio a Análise Social” temos de conhecer o que nela, ao longo do tempo, escreveram os seus autores. É nas suas palavras - reflexos de motivações mais profundas - que podemos encontrar pistas para uma história da Análise Social. São essas palavras, cada uma fazendo parte de uma unidade discursiva coletiva, que tecem, a cada número publicado, a memória histórica da revista. É também nesse número já imenso de artigos publicados e lidos, que a história ganha vida própria, materializada em textos, papel e meios digitais.
Em 1925, Maurice Halbwachs cunhava o termo “mémória coletiva,” falando-nos da importância dos “quadros sociais da memória.” Para Halbwachs, o pensamento individual situava-se nestes quadros sociais, assim participando na memória coletiva. Fundamentalmente, a memória individual e a memória coletiva partilham os mesmos quadros sociais. Por outro lado, sabemos igualmente que, como alertava Halbwachs, a memória é sempre uma reconstrução do passado baseada na visão atual da sociedade. Qualquer análise do muito que se escreveu nas páginas da Análise Social será sempre uma interpretação a partir do presente. Ao propormos lançar um olhar para um retrato de uma história da revista a partir dos temas dos artigos publicados convocamos os quadros sociais da memória, ou seja, fazemos dos textos instrumentos da memória coletiva e da memória individual, utilizando-os para recompor uma narrativa do passado.
A Análise Social faz parte da memória de muitos e muitas, estando enraizada em memórias individuais e colectivas (veja-se a sua centralidade para a história das ciências sociais e da sociologia em Portugal [Silva, 2015]). A história da revista tem sido frequentemente revisitada, analisada e contada a várias vozes (veja-se, neste número, o artigo de José Luís Cardoso, entre vários outros, em particular, Barreto, 1999; Lains, 2008; Pereira, 2011; Pina-Cabral, 2011; Vala, 2011; Ferreira, 2013). Nas páginas que se seguem vamos também contá-la. Fazêmo-lo, contudo, a partir de uma análise textual e de discurso (Fairclough, 2003). Partimos da premissa de que os autores e autoras da Análise Social usaram o texto e as palavras com motivações específicas e visando atingir objetivos particulares: os gostos e interesses de que nos falava Sedas Nunes. Tal discursividade, submetida aos constrangimentos impostos pela ditadura antes do 25 de Abril de 1974, é mediada pelo trabalho editorial das sucessivas equipas de investigadores que, ao longo dos anos, assumiram a responsabilidade pela direção editoral da revista. A representação dos principais temas e problemas publicados na revista emerge dessa análise de texto, em que damos primazia às palavras escolhidas para dar título a cada artigo. Damos assim conta de uma história dos “mundos do texto” (Gavins, 2007).
Análise dos títulos dos artigos publicados na análise social (1963-2022)
Levantámos a questão de saber quais foram as palavras mais frequentemente mencionadas nos textos publicados pela Análise Social ao longo dos seus primeiros 60 anos de existência. Procurámos responder a esta questão realizando um levantamento do conteúdo dos títulos dos artigos publicados em conjunto neste período, bem como segmentados por décadas. Para isso, elaborámos uma base de informações na qual incluímos os títulos dos artigos disponibilizados no site da Análise Social para o período compreendido entre 1963 e 2022. De seguida, organizámos a análise dos conteúdos dos títulos de forma sistematizada pela década de publicação: década 1 (1963-1969); década 2 (1970-1979; não houve publicação em 1974, ano da Revolução dos Cravos e do início do Processo Revolucionário em Curso); década 3 (1980-1988; não houve publicações no ano de 1989); década 4 (1990-1999); década 5 (2000-2009); década 6 (2010-2019 + 2020-2022).
A base de informações assim estruturada foi submetida a um balanço descritivo, que nos forneceu uma nuvem de palavras, uma exploração de associações entre palavras (designada “análise de similitude”) e uma análise de correspondências múltiplas (ACM) entre as palavras para explorarmos os conteúdos latentes nas associações entre elas. Utilizámos o software Iramuteq (Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires). Para as análises descritivas, considerámos todas as palavras usadas pelos autores nos títulos dos artigos, o que significa que não foi necessário empregar critérios morfológicos de exclusão. Para as análises subsequentes, isto é, análise de similitude e ACM, foi necessário aplicar um critério morfológico de inclusão, de modo que apenas nos foi possível considerar as palavras classificadas lexicalmente como substantivos. Desse modo, descartámos as formações verbais, pronominais e adverbiais usadas nos títulos. Além disso, na análise de similitude, considerámos apenas as associações entre as palavras que foram fortes o suficiente para atingirem o nível de significância nos valores de qui-quadrado, o que nos forneceu um dataset com aproximadamente 36 palavras em cada análise.
Apresentamos a seguir os resultados da análise de todo o escopo de publicações (ou seja, o conjunto das informações contidas em todo o período de 1963-2022). De seguida, descreveremos os resultados obtidos nas análises realizadas por década. Por fim, exploramos as relações entre as décadas e os conteúdos mais distintivos que emergiram nas associações mais fortes e significativas entre as palavras.
O léxico da análise social
A Figura 1 ilustra as palavras mais frequentemente usadas pelos autores nos títulos dos textos publicados ao longo dos 60 anos de história da Análise Social e a representação gráfica das suas relações em forma de árvore de associações. Em relação às palavras mais usadas, os resultados são claros: sem grande surpresa, “Portugal” foi a palavra mais frequentemente usada. Como na célebre caricatura de João Abel Manta de 1975, na qual grandes pensadores e homens políticos do mundo inteiro olham atentamente um mapa de Portugal desenhado num quadro, Portugal foi um “problema difícil” sobre o qual várias gerações de investigadores se debruçaram. De seguida, temos “social”, “política”, “século”, “económico”, “novo”, “desenvolvimento”, “história” e “análise”. Os demais vocábulos são mais ou menos indistintos relativamente à maior frequência dos que aparecem com mais destaque na figura.
A análise da associação entre as palavras oferece-nos uma pista valiosa sobre os prováveis conteúdos temáticos presentes nos textos publicados. De facto, a representação gráfica da análise de similitudes mostra dois grandes conjuntos temáticos nos quais o emprego das palavras esteve ancorado em dois núcleos estruturados pelas palavras “Portugal” e “Social”, as quais, postas juntas por ordem das suas frequências, permitem-nos formular uma imagem global dos textos como um corpus integrado do que poderíamos designar como o “Portugal Social” publicado nos 60 anos de história da Análise Social.
O núcleo representado pela palavra “Portugal” parece ter organizado os temas mais relacionados com a política, o desenvolvimento económico do país e os aspetos mais importantes que os relacionam. Os elementos que gravitaram em torno do núcleo “Social” sugerem a presença de uma formulação temática mais focada em questões societais, embora elementos dessa dimensão da vida social também tenham aparecido no primeiro núcleo organizado pela palavra “Portugal”. Como nota Raul da Silva Pereira (2011, p. 6): “Em 1963, quando surge a Análise Social, os temas relacionados com o desenvolvimento económico polarizavam muitas atenções.” No contexto português, coube à Análise Social de então preocupar-se com os aspetos sociais do desenvolvimento económico. Essa matriz teve, ao longo do tempo, um peso assinalável e que se destaca nesta análise de palavras.
A Figura 2 apresenta as nuvens de palavras em cada uma das categorias temporais que adotámos. Destaca-se a palavra “Portugal” como a mais frequente em cada uma das décadas, com menor destaque ao partilhar o seu protagonismo com as palavras “análise” e “social” entre 1970 e 1979. Este fenómeno poderia levar-nos a sintetizar os títulos como aludindo meramente à “Análise Social de Portugal”. Interessante notar que a maior frequência relativa de palavras que aludem ao desenvolvimento socioeconómico do país nas primeiras décadas parece ter gradualmente dado lugar a palavras que sugerem uma ligeira mudança de foco, passando a abordar aspetos mais diversificados relacionados com fatores mais político-sociais. Isto pode significar uma maior diversificação temática reportada nos títulos das publicações com o passar do tempo sem perder a referência ao princípio organizador geral representado na palavra “Portugal”. O centramento em Portugal, como espaço privilegiado da investigação científico-social publicada na Análise Social vai, contudo, disputando algum terreno com outros espaços progressivamente relevantes: destacam-se o termos “europeu” na década de noventa e, mais recentemente (período 2010-2022), surgem as palavras “Brasil” e “brasileiro.”
A Figura 3 parece ilustrar melhor esse fenómeno. Enquanto entre 1963 e 1969, anos marcados pelas guerras coloniais, pela emigração maciça, pela industrialização e pela formação da “sociedade dualista” realçada por Adérito Sedas Nunes em 1964, o papel estruturante da palavra “Portugal” funcionava como elo entre o “social” e o “desenvolvimento económico”, nas décadas subsequentes verificamos uma maior quantidade de categorias de palavras com palavras-núcleos que se interligam por meio do eixo-estruturante que tem como centro a palavra “Portugal”.
Destaca-se, entretanto, a década de 1970 a 1979 - durante a qual surge a Revolução dos Cravos, a independência dos países colonizados, a multiplicação de movimentos sociais, o fim da censura e das limitações ao desenvolvimento das ciências sociais e a implantação da democracia -, na qual passa a ser a palavra “análise” o elo fundamental para as demais palavras-núcleo, o que poderia levar-nos a interpretar as publicações nessa década como predominantemente a “análise do desenvolvimento político-económico de Portugal”. A par da continuidade da questão económica, as palavras “operário”, “trabalhador”, “classe social”, “ideologia” ou “revolução” (como se observa claramente na Figura 2) entram no léxico da revista durante os anos 70, tendência facilmente explicável pelo contexto histórico revolucionário de então. De notar que, apesar desse contexto, que envolvia as então designadas províncias ultramarinas, o investimento do Estado português nesses territórios, assim como o facto de vários portugueses e seus descendentes neles habitarem e depois terem regressado a Portugal, o tema colonial, e seus consequentes desafios e problemas, está praticamente ausente nas páginas da Análise Social. Tal ausência pode não significar, contudo, uma omissão, mas uma estratégia para evitar possíveis incómodos relativos a um tema que poderia levantar problemas para a própria permanência da revista. A palavras “colonial” ou “ império” surgem, com mais destaque, apenas a partir de 2010, seguindo tendências atuais que dão maior relevo aos temas coloniais e pós-coloniais nas ciências sociais em Portugal.
Nas décadas seguintes, com destaque para os anos 80, a Análise Social abre-se a mais temas e problemas, o que é visível pela multiplicidade de eixos lexicais estruturantes (Figura 3). Os temas políticos ganham mais relevo ao longo do tempo, como se vê na década de 1990 a 1999. Neste período surge mais evidente a palavra Europa, associada à questão social, ao mesmo tempo que continua presente o nome de Sedas Nunes. De 2000 em diante, os temas da revista continuam a diversificar-se e surgem então, com mais saliência, as menções ao império e à guerra, a Moçambique, Angola e Brasil, às questões de género (com as palavras feminino, mulher, homem, género).
A análise lexical na Figura 4 organiza as associações entre as palavras que foram mais distintivas em cada década e destaca aquelas que mais contribuíram para o processo de transição temática ao longo do tempo, o que nos permite visualizar os temas que mais provavelmente estiveram latentes nas motivações dos autores ao proporem os títulos dos textos. Além disso, mostra-nos a associação desses temas com as décadas, procurando elementos distintivos entre elas. Cada década representa assim um agrupamento específico de palavras que mais a distingue das outras, ainda que com linhas de continuidade temáticas. Estes resultados não analisam simplesmente palavras, mas os conceitos latentes que dão significado aos agrupamentos. De forma simples, deixam entrever os conceitos subjacentes aos agrupamentos de palavras. São, no fundo, pistas para uma interpretação das motivações conceptuais por detrás das palavras. O nosso desafio é desvendar estes conceitos subjacentes, que articulam teoricamente as palavras escolhidas para os títulos dos artigos da Análise Social. Estatisticamente, o programa analisa as correlações entre as palavras mais importantes e a partir destas palavras forma os agrupamentos (Passo 1); por sua vez, os agrupamentos devem ser interpretados em termos de significado global (e não decompondo os seus elementos) (Passo2); finalmente, o programa estima a correlação entre cada década e os conceitos (representados nos vários agrupamentos), mostrando (através de cores distintas) os conceitos comuns a diferentes décadas, que as aproxima, bem como os conceitos mais distintivos, que distanciam as várias décadas observadas.
Como podemos observar, os vocábulos mais distintivos no conjunto de todos os títulos das publicações entre 1963 e 2022 relacionam-se entre si a partir do termo-chave “desenvolvimento.” O termo desenvolvimento formava, aliás, o núcleo estruturante do agrupamento textual das publicações de 1970 a 1979. Isso ocorreu porque a palavra “desenvolvimento” foi a mais importante para diferenciar os termos usados nessa década daqueles usados nas outras décadas. A grande importância do desenvolvimento, tema recorrente na revista, reflete o número de debates que, no período final da ditadura, durante a revolução com vista à democacria e nos primeiros anos do regime democrático, se multiplicou em Portugal, relativamente à inserção do país no sistema económico mundial. A Análise Social foi um dos fóruns destas discussões e alguns atores públicos publicaram artigos na revista tendo, na altura, cargos políticos. É o caso de Mário Murteira, colaborador da revista desde o primeiro número, ministro dos Assuntos Sociais em 1974 e ministro do Planeamento e Coordenação Económica em 1975.
Nas primeiras décadas, a questão do desenvolvimento social e económico foi absolutamente central. Mas existem outros conceitos latentes que já eram relevantes. Por exemplo, na década 1 (1963-1969), um quadro conceptual salientava, de modo latente, alguns “aspectos formais da democracia liberal num contexto de guerra” (algumas palavras distintivas foram liberalismo, justiça, direito, democracia). Esta preocupação emergiu de forma distintiva nesta fase, porque este conceito gerou mais associações do que outros conceitos latentes. Semanticamente, essa década liga-se, aliás, à década 2 (1970-1979), por meio da relação entre as palavras “democracia” (década 1) e “fascismo” (década 2). Nos anos 70 (década 2), as palavras “sociologia”, “ciência” e “ideologia” articulam-se com a questão do desenvolvimento, dando corpo, de forma latente, a uma “sociologia das ideologias de desenvolvimento.” A nossa análise mostra que o tema da ideologia estabelece um elo com a década seguinte (década 3: 1980-1989), destacando a relação entre “ideologia” e “emigração”. Nessa década 3, encontram-se os termos emigração, economia, agricultura, política, sociedade e educação. As preocupações com a estrutura produtiva e os seus problemas alia-se à tematização da questão educativa, outro conceito latente relevado pela análise. Exceto pela ligação com a década 2, o agrupamento de vocábulos da década 3 não faz ligação com nenhuma outra década.
A década 4 (1990 a 1999) distinguiu-se pelo uso dos termos migração, Europa (Portugal aderiu à Comunidade Económica Europeia em 1986), eleição, democracia, crise ou tecnologia. Semanticamente, essa é uma década de interseção entre os diferentes conteúdos publicados. Como ilustra a Figura 4, estes parecem ter sido termos-ponte de transição para a década 5 (2000-2009) através de uma ligação com o termo “democracia.” Com efeito, na transição para a década 5 (2000-2009) destaca-se o léxico político. Aliás, surgem os termos “Portugal”, “político”, “família” e “Brasil”. Importante destacar que, embora o termo “Portugal” tenha sido usado com maior frequência em todo o período analisado, como demonstram as nuvens de palavras, foi menos distintivo na década 5, eventualmente devido à sua menor frequência relativa aos outros termos usados nesta década. A década 6 (2010-2022) segue a tendência de diversificação conceptual e geográfica, apresentando, entre as palavras distintivas que compõem o conceito latente, o termo “África.” O conteúdo da década 6 tem pouco relação com o conteúdo das demais décadas.
Uma vez realizada a análise geral das coocorrências entre os termos, torna-se relevante analisar as relações focais existentes entre os vocábulos. Aparentemente, a relação mais importante visualizada nos resultados ocorreu na parte superior da árvore de similitude. Como demonstra a Figura 4, as palavras “fascismo” (década 2), “democracia”, “eleição” (década 1) e “Europa” (décadas 2 e 4) estiveram mais fortemente relacionadas entre si e parecem ter facilitado a transição temática ao longo do tempo. Em suma, apesar da relevância das questões económicas e sociais do desenvolvimento, é num conceito latente de cariz político que encontramos linhas de transição temporal.
Notas conclusivas
Este artigo empreende uma investigação estatística minuciosa sobre os títulos dos artigos publicados na revista Análise Social, abrangendo um extenso período que se estende de 1963 a 2022. A abordagem adotada consiste numa comparação das palavras utilizadas ao longo de seis décadas, com o objetivo de discernir padrões, continuidades e mudanças temáticas que podem revelar os “mundos do texto” associados a motivações e interesses distintos.
Partindo da premissa de que a escolha lexical é reveladora de contextos históricos específicos e mediada pelas sucessivas equipas editoriais da revista, a análise destaca a interconexão entre as palavras e as diversas realidades sociais que constituem os léxicos da Análise Social. Ao longo das décadas, emergem linhas de continuidade e mudança temática que espelham a evolução da sociedade portuguesa.
Em tom de conclusão, pode afirmar-se que os primeiros 60 anos de história da revista Análise Social se pautaram por um enfoque no estudo da realidade social portuguesa, com variações subtis mas significativas ao longo das várias décadas. Reflexo de um país e de um mundo em mudança, de uma academia que conheceu um importante desenvolvimento, internacionalizando-se, a Análise Social serviu de testemunho dos problemas de desenvolvimento económico, científico e sociocultural, da transição revolucionária para a democracia, do processo de integração europeia e, mais recentemente, das questões da cultura e identidade nacional, assim como da globalização. A centralidade dos temas fundamentais da vida social em Portugal continua a ser uma realidade bem vincada na análise.
Tão importante como a frequência de certas palavras é a ausência de outras palavras. Desde logo, a centralidade do termo “Portugal” coexiste com a ausência de outras formações sociais, quer no espaço europeu, quer no mundo lusófono. Com efeito, ao longo das seis décadas da revista é patente a ausência de um léxico sobre o passado colonial, o racismo e as discriminações que foram produzidas pelo regime, a guerra colonial, a crítica anticolonial e a realidade pós-colonial. Temas como o género, ou a sexualidade, surgem apenas recentemente. Igualmente notória é a ausência de figuras ou de tradições do pensamento sociológico.
Muitas outras ausências se poderiam acrescentar, embora seja importante salientar as limitações de um estudo que apenas analisou os títulos das publicações.
Cumpre, por conseguinte, destacar a importância dos resultados obtidos. A Análise Social tem conseguido, ao longo destas primeiras seis décadas de existência, levar a cabo a sua missão editorial - a de produzir conhecimento científico sobre a realidade social de Portugal e de o disseminar para públicos de distintas especialidades das ciências sociais, chegando hoje a mais países e continentes.