Introdução1
Um crime de paixão ou crime passional constitui um termo em desuso (mas ainda em uso) no domínio jurídico, que, pela sua carga adjectivante, enquadra uma acção de um sujeito na sua motivação, atribuindo uma conduta (frequentemente, um homicídio ou tentativa de homicídio) a uma reacção emocional, intempestiva, irreflectida, arrebatada. Enquanto estado/motivação emotivo-passional, as emoções que se reconhecem na órbita da passionalidade (honra, ciúme, “desgosto de amor”, despeito, desespero, etc.) têm, ao longo da história social, cultural e jurídica, sido convocadas e configuradas ora como causa justificativa do facto, ora como uma atenuante (modificativa do crime ou da pena), ora como uma circunstância especialmente censurável e perversa.
O estado emocional, em particular o desespero, enquanto atenuante do homicídio remonta à lei penal de 1852, inspirada no Código Penal (CP) francês de 1810, que previa um regime atenuado, e até justificado, para a prática do crime quando havia um facto prévio capaz de suscitar uma resposta marcada pela ira e cólera do agente. Seria este o esboço da doutrina da provocação, que se manteria no Código Penal de 1886 - aquele que mais tempo vigorou em Portugal e que seria substituído quase cem anos depois, após diversas revisões, pelo Código Penal de 1982. Nestes articulados penais de 1852 e de 1886, consta que o homem casado que encontrasse a sua esposa em adultério e a matasse, a esta ou à pessoa com quem ela estivesse, ou a ambos, seria punido com desterro para fora da comarca por seis meses. A mesma pena sofreria a mulher casada que, encontrando na casa conjugal o seu marido e a “concubina, teúda e manteúda”, matasse o marido ou ambos. Enquanto causa justificativa do facto, a previsão normativa da provocação decorrente do adultério em flagrante delito (originando a justificação do facto através de um mecanismo de não exigibilidade) seria revogada em 1975 - após a Revolução do 25 de Abril de 1974.
Ainda na vigência do Código Penal de 1886, o Decreto-Lei n.º 262/75, de 27 de Maio, propôs-se “pôr termo a semelhante aberração”, “um autêntico ‘direito de matar’”, remetendo o enquadramento de práticas por quem sofreu “um choque emocional que o leve à violência” para a parte geral do normativo penal. O ordenamento jurídico português passa, então, a sustentar a provocação - em que se inclui a “ofensa directa à honra” (n.º 4 do artigo 39.º do CP de 1886) ou o “súbito arrebatamento despertado por alguma causa que excite a justa indignação pública” (n.º 14 do mesmo artigo 39.º do CP de 1886) - no estado emocional do agente da infracção ou no motivo que o levou à acção, rompendo com a premissa dos legisladores de 1852 e de 1886 (que se abstraía inteiramente da verificação da emoção violenta que levara à produção dos factos). Seria em função da gravidade do facto injusto provocado pela vítima e da justa emoção provocada no agente que se enquadraria a conduta e se avaliaria a responsabilidade criminal do agente. Enquanto forma, fórmula e formulação jurídica, a provocação passa a ser objecto da disputa doutrinária e jurisprudencial, compreendendo-se, na flutuação histórica deste critério da proporcionalidade - entre o facto injusto do provocador e o facto ilícito do provocado - e dos critérios que se lhe seguiram - de “homem médio” (figura legal de adequação social) e “inexigibilidade” (condição de razoabilidade da conduta perante as circunstâncias do caso, isto é, perante a provocação e a forte perturbação daí decorrente, não ser razoável exigir ao agente um comportamento diferente) -, a elasticidade cultural do direito.
Na ressaca de um longo regime ditatorial, o Código Penal de 1982 passa a prever (no seu artigo 72.º) condições para uma atenuação especial da pena quando existam circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena. Entre outras circunstâncias (como ter actuado sob influência de ameaça grave ou ter havido actos demonstrativos de arrependimento, nomeadamente de reparação dos danos causados), prevê-se “ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida”. A provocação da vítima continuaria, portanto, a orientar, a enquadrar e a justificar muita da argumentação jurisprudencial. Nesta matéria, a teoria da designada “precipitação da vítima”, objecto de densa recensão (entre nós, por exemplo, Matos, 2006, pp. 62-64) e repositório de prolíficas ilustrações, ao obrigar a discutir o contexto e o significado das coisas, demonstra, além de mais, o modo como a provocação tem tido diferentes leituras e acolhimentos, dependendo de quem a invoca.
A plasticidade da equivalência entre emoção e motivação, a permeabilidade jurídica ao entendimento cultural de provocação e a disputa entre uma compreensível emoção violenta ou a especial censurabilidade ou perversidade decorrente dessa emoção são os tópicos que orientam este texto. Para tal, procedemos à análise de 163 processos judiciais (com decisões de primeira instância e de recurso) por homicídio nas relações de intimidade,2 desde o ano 2000, das 23 comarcas portuguesas. Procedemos, ainda, a uma análise de acórdãos, posteriores a 1982, dos tribunais superiores.3
A compreensível emoção violenta
O Código Penal de 1982 não regulou especificamente a provocação, mas criou um tipo de crime de homicídio cujo fundamento de atenuação consiste num intenso estado emocional, que tanto pode ser causado por provocação como por outra circunstância de relevante valor social ou moral. O homicídio privilegiado (previsto no artigo 133.º) enquadra “quem for levado a matar outrem dominado por compreensível emoção violenta ou por compaixão, desespero ou outro motivo, de relevante valor social ou moral, que diminua sensivelmente a sua culpa”. Este facto ilícito justificaria uma pena mais reduzida - de um a cinco anos de prisão. Desde a sua redacção original, a única alteração que este artigo sofreu foi efectuada em 1995,4 passando o tipo penal a ser formulado do seguinte modo: “Quem matar outra pessoa dominado por compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral, que diminua sensivelmente a sua culpa, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos.”
É em torno desta compreensível emoção violenta, ou motivo de relevante valor social ou moral, e da sua valoração para efeitos do privilegiamento do homicídio ou de atenuação da culpa em geral, que se concentrará a discussão jurisprudencial e doutrinária, criando divergências sobre a influência de determinados factores exógenos e endógenos, sobre conceitos como anomalia psíquica ou perturbações da consciência e sobre a apreciação do relevo jurídico-penal dos estados passionais.5
Na jurisprudência portuguesa, as primeiras duas décadas após a entrada em vigor do Código Penal de 1982 foram, segundo Nuno Sotto Maior (2012, pp. 65-66), de clara opção pelo critério da proporcionalidade, entendendo-se que a existência de emoção compreensível requeria uma adequada relação de proporcionalidade entre o facto injusto da vítima (por exemplo, adultério, infidelidade) e o facto ilícito do agente. Na doutrina, ou em trabalhos doutrinários, pelo contrário, o entendimento era o oposto, contestando o recurso ao critério da proporcionalidade para aferir a compreensibilidade da emoção violenta, uma vez que, como argumenta Jorge Figueiredo Dias, “tomada no seu teor puramente literal, é obviamente errada uma tal jurisprudência: nunca pode existir proporcionalidade, em qualquer dos sentidos possíveis em que este princípio releva juridicamente, entre uma qualquer emoção e a morte dolosa de outra pessoa” (1999, p. 51). A aproximação do novo milénio assistiu a uma convergência dos entendimentos jurisprudencial e doutrinário, afastando o critério da proporcionalidade e passando a recorrer-se ao critério do padrão do “homem médio” e à figura da inexigibilidade (que lhe é intrinsecamente associada).
Também a interpretação e o preenchimento da compreensível emoção violenta se foram alterando, abandonando-se progressivamente o seu automatismo a partir da invocação, por exemplo, do ciúme ou da angústia do abandono. Como se lê num acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), de 1996: “Também não nos repugna admitir que praticou os factos num momento ‘de desnorte’, por gostar da esposa e querer que ela voltasse a viver com ele […]. É plausível que assim seja, embora ‘desnorte’ não possa confundir-se com o requisito da ‘emoção violenta compreensível’” (STJ, acórdão de 18 de Setembro de 1996). Já mais recentemente, o STJ, acolhendo o mesmo sentido sobre o estado emocional, viria argumentar, na linha daquela que tem vindo a ser a tendência jurisprudencial, que o facto que origina a emoção - na perspectiva do artigo 133.º - assenta não em juízos de ponderação ético-jurídicos dos valores conflituantes, mas na valoração da situação psíquica que leva o agente ao crime (ou seja, tratar-se-ia de constatar - e não de julgar - uma emoção). Neste sentido, interessaria ao tribunal compreender esse estado psíquico, no contexto em que se tenha verificado, a fim de se poder, simultaneamente, compreender a personalidade do agente manifestada no facto criminal e, assim, efectuar sobre a mesma o juízo de (des)valor que afinal constitui o juízo de culpa (um exercício que, em última instância, implica o “juízo de ponderação ético-jurídico” de que supostamente se afastaria).
É nesta linha que a fundamentação do privilegiamento de um homicídio, estabelecida em dois núcleos basilares (personalidade do agente e análise das circunstâncias), tem crescentemente exigido a sua validação técnico-científica. Por um lado, através do recurso a relatórios periciais sobre a personalidade do agente, o seu trajecto pessoal, os padrões de valores e princípios que nortearam o percurso de vida, os relacionamentos intrafamiliares, a actividade profissional, a situação económica, o investimento familiar. Por outro lado, através da confluência deste mapa pericial da disposição psíquica do agente no expediente da catarse e na reconstituição dos momentos que precederam o crime de homicídio (genética da emoção que invadiu o agente): quer pela provocação da vítima (por exemplo, ofensas, depreciação, humilhação, escárnio, ameaças, agressões), quer pela génese da emoção violenta (por exemplo, perturbação emocional, distúrbio mental). E, portanto, não foram necessariamente o acolhimento ou a compreensibilidade da passionalidade que se alteraram, mas o significado forense do facto passional. Como se pode acompanhar na linha metodológica e interpretativa do STJ:
É impossível estabelecer uma relação de causalidade entre a emoção violenta e o crime quando aquela mesma emoção não se demonstrou. Independentemente de tal circunstância, é admissível, face às regras que decorrem da experiência de vida, que, perante a negação à prática de relações sexuais e o anúncio do fim do casamento, exista uma alteração do estado emocional do [agente] e a eclosão duma erupção de sentimentos contraditórios que se conjugaram no apontar do fim dum projecto de vida. Porém, em função da forma de estar e de reagir do homem médio, a questão que se coloca é a de saber se é compreensível que tal estado emotivo induza a conclusão de que é expectável uma reacção tal como empreendida pelo arguido. Admite-se que as circunstâncias fizeram surgir o despeito e o despoletar de sentimentos extremos. Tal, porém, nunca poderá objectivamente levar à conclusão, num juízo de probabilidade normal, que é expectável uma reacção homicida. Mesmo admitindo o estado emocional, nunca o mesmo contém o requisito da compreensibilidade que fundamenta o privilegiamento. Face aos factos provados, a invocação de tal tipo de argumentário tenta justificar o que é injustificável. [Supremo Tribunal de Justiça, acórdão de 7 de Setembro de 2016]
Se o facto passional perdeu, enquanto tal, o automatismo jurídico-penal, a estratégia de defesa dos arguidos assenta crescentemente no relevo jurídico-penal da sua matriz axiológica,6 fundamentando nessa matriz (pauta de compreensibilidade) o estado de perturbação emocional - cuja perturbação ou inibição da consciência da ilicitude cumpriria um critério de exclusão da culpa. Um percurso argumentativo cujo parco acolhimento judicial, selectivo e casuístico, se circunscreve a uma combinação de tipos-ideais: quer em relação ao agente do crime (vítima da circunstância), quer em relação à vítima do crime (promotora da circunstância), quer em relação ao modus vivendi da conjugalidade (num exercício constante e público de dominação da vítima e de rebaixamento do agente). Isto é, resulta de uma disposição interpretativa sobre quadros estruturais e as suas manifestações relacionais, e de um salto dedutivo sobre dinâmicas explicativas ou justificadoras do fenómeno criminal - popularizadas na academia como “síndrome da mulher agredida”,7 sem expressão na jurisprudência portuguesa,8 e a sua mutação jurisprudencial, a qual precariamente se poderá designar por “síndrome do homem humilhado” ou “abatido”.
É esse o pretexto empírico que permite, no seguinte caso, conceber o privilegiamento do homicídio: no dia dos factos, o arguido estava no jardim da residência de amigos, a almoçar. A sua esposa surge abruptamente, começa a discutir com o arguido, chamando-lhe ladrão e calão, entre outros impropérios, e despeja-lhe uma garrafa de vinho em cima. Ameaça que irá vandalizar o seu automóvel e, logo em seguida, dirige-se a este em passo acelerado. O arguido corre no seu encalço e coloca-se entre ela e o veículo. A vítima começa a bater-lhe com um capacete, defendendo-se o arguido com empurrões. É então que ele retira uma machada do carro e desfere vários golpes contra a vítima. Entenderia o tribunal de comarca haver fundamento para a integração da conduta do arguido no crime de homicídio privilegiado:
O que dizer da situação de pressão que desde há algum tempo vinha o arguido sentindo por causa das atitudes da assistente? Não terá sido o desespero a condicionar e a guiar o estado de afecto do arguido no momento da prática dos factos? Será que a factualidade descrita desencadeou o efeito de uma menor exigibilidade no comportamento do arguido e foi susceptível de uma diminuição sensível da culpa do mesmo? Crê-se que sim. Mais, pensa-se que o caso denota como que uma dupla fonte de privilegiamento dos factos. Por um lado, a sua emoção violenta, no momento, surge como uma pauta de compreensibilidade se tivermos em conta a atitude genérica da assistente para com ele, em frente a terceiros (chamando-lhe ladrão, entornando-lhe o vinho, batendo-lhe com o capacete). Por outro lado, parecem existir os factos inerentes a uma humilhação sofrida de modo continuado: pense-se no específico percurso conjugal mantido entre o arguido e a assistente ao longo dos anos e concluir-se-á pelo encurralamento emocional e psíquico do arguido, a carecer de uma evidente libertação. Por muito que (humanamente) lhe custasse, não poderia ( rectius, não deveria) o arguido adoptar outra atitude? É que a diminuição sensível da culpa pressupõe um necessário abrandamento do juízo de censura em que a culpa, afinal, se traduz por o agente ter agido como agiu. In casu, o grau de humilhação, revolta e desespero foi tal que só a morte da assistente o poderia libertar dessa mesma humilhação? Pensa-se que a resposta, embora complexa (e porventura não é pacífica), é positiva, pois a situação vivida pelo arguido acabou por corresponder ao seu encurralamento em um manto férreo e inexorável de humilhação, revolta e desespero, que não pode deixar indiferente, de um modo objectivo, o comum dos cidadãos ‘fiéis ao direito’. [Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, sentença de 18 de Setembro de 2009]
Eis, portanto, uma combinação dos tipos-ideais anteriormente mencionados: o agente do crime (que é arrastado para a circunstância), a vítima do crime [assistente, no processo] (que causa aquela circunstância) e o modus vivendi da conjugalidade, no caso “marcado por uma conjugação de forças desiguais, com um pendor evidentemente notório a favor da assistente, tudo levando a que o arguido se sentisse sob tensão psicológica permanente, motivada também pelo medo de desagradar à assistente, a qual pesava cerca de 130 kg e amiúde expressava (também) verbalmente a sua supremacia física” (como consta na mesma sentença da comarca de Coimbra). Este enquadramento sociopsicológico permite remeter juridicamente a conduta do arguido para um estado de afecto emocional (de violento desespero), que diminui sensivelmente a sua culpa e que, por ser “objectivamente compreensível”, leva a que seja diminuída a exigibilidade de um comportamento diferente daquele que o arguido adoptou (o de tentar matar a sua esposa com uma machada).9
A uma conclusão diferente chegariam tanto o Tribunal Colectivo do Círculo de Oliveira de Azeméis, em acórdão de 14 de Janeiro de 2002, como o stj, chamado a pronunciar-se sobre o recurso da arguida do processo - no qual alegava que o seu comportamento consubstanciava a prática do crime de homicídio privilegiado, na forma tentada, e não o de homicídio (simples), pelo qual foi condenado, uma vez que agiu em estado de desespero e sob forte e compreensível emoção violenta, circunstâncias que diminuíam consideravelmente a sua culpa.
Neste caso, o relacionamento entre a arguida e o ofendido vinha-se deteriorando, com discussões e ofensas frequentes, por vezes em frente a terceiros. Na madrugada do dia dos factos, a GNR tinha sido chamada à residência do casal, após uma nova discussão. Já durante a tarde, cerca das 14h, a arguida e o ofendido desentendem-se novamente, na fábrica de calçado que geriam e que se localizava no rés-do-chão da casa que habitavam. Na presença das empregadas da fábrica, o ofendido impede a entrada da arguida, insultando-a e agredindo-a com estalos, empurrões e pontapés, mesmo depois de esta se encontrar caída no chão. Após esta última agressão, a arguida, percorrendo poucos degraus, dirige-se ao primeiro andar (parte da casa que servia de residência) e agarra numa pistola. Com a arma na mão, desce as escadas e dirige-se ao pequeno escritório da fábrica, onde se encontrava o marido. A cerca de três metros deste, diz-lhe “Vim aqui para me pedires desculpa”, ao que o ofendido responde, abrindo os braços e dando um passo na sua direcção: “Se queres matar-me, mata-me, filha da puta.” A arguida, então, de braço esticado e arma empunhada na direcção do peito do marido, dispara a arma premindo o gatilho.
Dado como provado ficou o facto de a arguida, perante a agressão de que foi alvo, na fábrica, diante das suas empregadas, se ter sentido diminuída, humilhada e envergonhada, razão que a levou a ir buscar a arma ao primeiro andar. Também seria dado como provado que a arguida suportou e ocultou situações de violência física e verbal ao longo do casamento.
Numa consideração prévia, admitiria o STJ que, através do tipo legal do homicídio privilegiado, se criou uma censura mais suave para o homicídio, em função dos motivos que determinaram a sua perpetração - sendo, aliás, no motivo que reside, em parte importante, a significação da infracção. Na ponderação do STJ, este circunstancialismo, fonte de humilhação para a arguida - quando as ofensas eram praticadas perante terceiros -, não traduz, ainda assim, uma situação de desespero ou de compreensível emoção violenta, na medida em que a arguida mostrou
conseguir tomar iniciativas nessa relação, como fechar a porta da residência do casal para impedir a entrada do ofendido, que já dormia separado, e ir buscar a pistola para exigir desculpas e, perante a atitude de recusa do marido, disparar um tiro visando o peito deste e perseguindo-o, depois do disparo, de arma empunhada, dizendo que o queria matar, que dispararia para quem pedisse ajuda, dando-lhe pancadas com duas achas de madeira, apontando a arma para a carrinha duma testemunha, para onde o ofendido entrou e saiu. [Supremo Tribunal de Justiça, acórdão de 26 de Setembro de 2002]
Este quadro de facto, em que se inclui a capacidade de acção (a tal agency) demonstrada pela arguida, não se revelaria, de acordo com o STJ, suficiente para preencher o tipo legal do crime privilegiado de homicídio. Seria, ainda assim, relevado no domínio do homicídio simples (na sua forma tentada), dentro da regra de que a culpa concreta do agente constitui o limite da punição: pugnando por excessiva a pena aplicada em primeira instância (de quatro anos e seis meses de prisão), o STJ teria por justa e adequada a pena de dois anos e dez meses de prisão, suspensa na sua execução.
Se, em ruptura com os regimes penais anteriores, o elemento essencial deste tipo criminal já não é a provocação em si, mas a emoção do agente, isto é, a emoção violenta compreensível e que diminua a culpa, independentemente da causa que a provocou, então, do confronto destes dois casos, destacamos diferentes aspectos relacionados com o conteúdo e as ilações do conceito de culpa jurídico-penal, que correspondem a diferentes ordens interpretativas e interpelativas da razão jurídica.
Apesar das considerações jurídico-penais em torno da observação de elementos objectivos e subjectivos do tipo de ilícito a partir do tipo de culpa dos autores, as penas a que foram condenados foram bastante semelhantes, tendo sido a pena da arguida até ligeiramente inferior. Não é inédito ou incomum. De qualquer forma, e num exercício comparado, não deixamos de notar que a uma ilicitude do facto e a uma culpa consideradas mais acentuadas é atribuída (a necessidade de) uma pena mais leve. Por outro lado, na mecânica judicial, esta vem sendo a solução mais frequentemente encontrada: perante o impasse, afasta-se o homicídio privilegiado (atenuante modificativa), entendendo-se que o comportamento da vítima constitui, ainda assim, uma “provocação que colocou o agente em estado enervado de modo a diminuir-lhe, por forma acentuada, a ilicitude do facto e a culpa”, como consta no acórdão de 28 de Julho de 1987 do STJ. Impunha-se, desta forma, uma atenuação especial da pena do crime de homicídio simples, a qual se tornava sensivelmente equivalente à prevista pela moldura penal do homicídio privilegiado.
Além disso, a intimidade que se pressupõe entre os agentes e as vítimas aparenta servir, na esteira da denúncia de Myrna Dawson (2016), para mitigar em vez de agravar a censura penal. De acordo com a autora, as pessoas que matam (ou tentam matar) as companheiras ou os companheiros são entendidas como menos culpadas e menos perigosas do que as que matam (ou tentam matar) pessoas que não conhecem ou com quem têm relacionamentos distantes. Uma vez que a determinação da medida da pena é ponderada em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, é lógico que assim seja; mas qual é, então, o papel que a intimidade e os papéis desempenhados nessa intimidade têm na determinação da responsabilidade e na punição?
Quanto ao fundamento social ou à eficácia justificativa das “emoções atenuantes”, importa aqui recuperar a ideia, empiricamente observada, de que a frequente discussão em torno do ciúme, do desespero ou do “desgosto de amor” - nomeadamente sobre se são, ou não, susceptíveis de levar a uma atenuação da pena, seja por via do privilegiamento dos factos (isto é, por integração dos factos no crime de homicídio privilegiado), seja por via da atenuação especial da pena - não é, em regra, trazida pelo próprio tribunal. É trazida pela defesa, como estratégia de defesa de um arguido, o qual, invocando o seu ciúme, o desespero ou a responsabilidade moral e ética da companheira/ofendida, alega ter agido com uma culpa menor e que, logo, deve ser punido menos severamente. Deste modo, a defesa de um arguido tem a habilidade de determinar, ou pelo menos de contaminar, os termos pelos quais a emoção que está na origem da acção será enquadrada e julgada. Acompanhando as implicações que Dawson identifica na justiça criminal, ao nível da culpabilidade de um arguido, esta (invocação de) emoção forte é um dos estereótipos sobre intimidade e violência que interferem com a aferição da culpa moral e penal de um agente (atenuando-as); um segundo estereótipo decorre da participação (ou grau de envolvimento) da vítima. Embora, note-se, explícita ou implicitamente, estas dimensões acabem por estar sempre ligadas, tendo em conta que a noção de intimidade é geneticamente relacional.
O critério tantas vezes invocado da compreensibilidade das emoções, e que encontra especial respaldo no que se delega ou confia à intimidade, é também aqui entendido a partir da interpretação ético-afectiva dos sujeitos. A humilhação, o ultraje e o aviltamento a que as/os arguidas/os dos processos são sujeitas/os não recebem o mesmo acolhimento. A humilhação a que a ofendida sujeita o arguido tem uma eficácia justificativa superior à humilhação e à violência a que o ofendido sujeita a arguida. A expectativa e a antecipação sobre os papéis (de masculinidade e de feminilidade; de autoridade e de alteridade) que desempenham nas relações amorosas e o lugar que essas relações ocupam na construção e na confirmação das identidades e subjectividades - que justifica e tantas vezes é invocada e reivindicada como merecedora de especial tutela estatal e criminal - comportam imensas implicações sociojurídicas, de que a literatura tem vindo a dar conta.10
Relativamente à participação (ou grau de envolvimento) da vítima, sobressaem duas dimensões: a primeira recupera e ilustra o argumento, anteriormente enunciado, em torno das diferentes leituras e acolhimentos da invocação da provocação. Anette Ballinger (2016), analisando o caso de Ruth Ellis e do homicídio do companheiro, pelo qual foi condenada à pena de morte,11 argumenta que, apesar de o caso de Ellis ter todos os “gatilhos” que enquadram e justificam a defesa da provocação quando homens matam as suas companheiras - infidelidade, ciúme possessivo, tentativa de terminar a relação -, no caso de Ruth Ellis as circunstâncias prévias não foram aceites como evidência da provocação a que fora sujeita. O argumento da autora é que, perante um homicídio-retaliação por parte de uma arguida, não existe forma de esta ser, ao mesmo tempo, responsabilizada e culpada pelo seu acto e de, tendo em conta os motivos contra os quais retaliou, ver a sua culpa diminuída sem perder ou, aliás, sem deixar de lhe ser atribuída (ou provada a) falta de capacidade de acção (agency). Em harmonia com a tese da autora, a atribuição de capacidade de acção à arguida (noção sociológica de acção), por parte do colectivo do STJ - nomeadamente, a sua capacidade para enfrentar o marido (noção jurídica de conduta) -, afastaria a condição da vitimação e, desse modo, o expediente jurídico da diminuição da culpa. Esta ponderação da proporcionalidade e inconciliabilidade entre vitimação e capacidade de acção, amplamente recenseada, não se coloca no caso do arguido. A este não seria exigida uma demonstração da falta de capacidade de acção como fundamento para a vitimação a que vinha sendo sujeito.
Quanto à segunda dimensão, no primeiro caso apresentado, a ofendida, além de estar a agredir o arguido, ameaça um bem jurídico também protegido - o da propriedade (veículo); a conduta do arguido é, assim, enquadrada como um meio de (legítima) defesa e de protecção desse bem (jurídico). Ao passo que, no segundo caso, o ofendido não estaria a ameaçar um outro bem jurídico; a reacção da arguida ocorre após terem cessado as agressões de que fora alvo e não decorre de uma tentativa de protecção de um bem tutelável. Esta ameaça de um mal futuro poderá, deste modo, concorrer como critério de proporcionalidade; ou poderá igualmente ilustrar o argumento de Clara Sottomayor (2011, p. 287) sobre a histórica protecção da propriedade (cujo valor não afasta a necessidade de tutela),12 de que os automóveis serão porventura o superlativo absoluto, e deste modo funcionar como pretexto supralegal.
Além de uma visão isolada do facto criminal, o contexto familiar, social e económico do agente do crime afecta a medida da pena ao fazer corresponder-lhe necessidades de socialização. Deste modo, como vêm defendendo autores como Jorge de Figueiredo Dias (1993), em situações em que tais necessidades de socialização ou reintegração não se verifiquem (designadamente, porque a conduta criminosa é ocasional), a pena terá uma função de simples advertência, devendo aproximar-se do limite mínimo da moldura, fazendo coincidir as exigências de prevenção geral com o limiar mínimo de defesa do ordenamento jurídico. A partir do exercício sobre a mensurabilidade das exigências de prevenção geral e especial,13 e esta é também uma implicação identificada por Myrna Dawson (2016) na administração da justiça criminal, as proposições psicossociológicas de que estas condutas (explosivas) constituem uma situação pontual, ou um acto isolado (afastando o critério da continuação da actividade criminosa), encadeiam proposições normativas ou juízos jurídico-conclusivos sobre uma minorada necessidade do papel dissuasor do direito penal. Além disto, é comummente entendido que estes agentes representam um perigo reduzido para a comunidade em geral, sendo tantas vezes dados como provados (a partir de testemunhos de vizinhos, colegas de trabalho, familiares, etc.) certos factos, como ser um bom pai de família, um trabalhador responsável e/ou um vizinho/cidadão respeitável, gozar de boa imagem, estar perfeitamente enquadrado na sociedade e até ser “querido por aqueles que com ele privavam” (Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, sentença de 3 de Março de 2011). Em suma, estes crimes são eminentemente entendidos como crimes “privados”; crimes que não ameaçam a ordem social.
Um último aspecto reporta-se ao pragmatismo judicial. A prevalência destes crimes “privados”, sobretudo na forma de violência doméstica, como também argumenta Dawson (2016), leva a que estes casos sejam tratados como “incidentes mais ou menos normais”, “crimes comuns”, processos habituais e rotineiros, cuja investigação não é especialmente complexa (afinal, os autores são geralmente conhecidos, e as condutas e motivações repetidamente relatadas), procurando-se (os órgãos de polícia criminal, o Ministério Público, a magistratura judicial e até as/os advogadas/os, sobretudo oficiosas/os) formas mais expeditas de os despachar - nomeadamente, a partir de repertórios processuais: as “chapas n.º 5”, facilmente rastreáveis por comarcas ou juízos criminais. Será este repertório processual que, pelo menos em parte, justificará o padrão, várias vezes assinalado nas decisões judiciais, de o Ministério Público, sobretudo nos últimos anos, enquadrar estes casos a partir da sua especial censurabilidade e perversidade e acusar pelo crime de homicídio qualificado (consumado ou na forma tentada). Se a magistratura judicial critica o Ministério Público por, a partir do que entende ser um automatismo, transformar o homicídio qualificado no crime-matriz, certo é que, entre os 163 processos analisados, apenas em quatro processos o Ministério Público não acusa por homicídio qualificado - um deles é o caso do “homem abatido”, em análise. Destes, cerca de ⅔ dos arguidos seriam condenados pelo crime de homicídio qualificado, na forma consumada ou tentada; ⅓ seria absolvido dessa qualificativa.
Mais do que apontar distintas implicações de ordem criminológica, hermenêutica ou funcional, estes dois casos permitem ilustrar condições jurídicas, esquemas interpretativos e concepções axiológicas, neste percurso reconstitutivo da emoção e do seu sentido jurídico no enquadramento do homicídio, e no carácter sociologicamente indiciário da tensão entre homicídio privilegiado e homicídio qualificado - questão de que nos ocuparemos em seguida.
A especial censurabilidade ou perversidade
O Código Penal de 1982 tipificaria também o homicídio qualificado (no artigo 132.º), cuja pena seria agravada face ao crime de homicídio14 - de 12 a 20 anos (e de 12 a 25 anos, após a revisão penal de 1995) -, no caso de a morte ser causada em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente. Este critério generalizador (previsto no n.º 1 da norma) - a morte ser causada em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente - é acompanhado (no n.º 2 da mesma norma) por um conjunto de circunstâncias susceptíveis de revelarem a especial censurabilidade ou perversidade do agente; circunstâncias essas que têm, desde então, sofrido várias alterações.15 Somente 25 anos depois, o articulado penal passaria a contemplar a circunstância de o facto ser praticado contra um cônjuge, um ex-cônjuge, uma pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, ou contra o progenitor de um descendente comum em primeiro grau (introduzida na alínea b), pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro). Em 2018, os crimes cometidos no âmbito de uma relação de namoro passam a integrar explicitamente a previsão de qualificação do homicídio.16
A técnica legislativa dos exemplos-padrão, objecto de ampla discussão doutrinária e jurisprudencial, assenta na delimitação de tipos constitutivos de culpa, na qual uma das circunstâncias qualificativas é sujeita ao crivo que consta do proémio da mesma disposição legal (Serra, 1995): a morte ser produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade. Deste modo, a verificação de qualquer uma das circunstâncias previstas não implica, per se, a qualificação do crime de homicídio, exigindo-se a verificação dessas ou de outras circunstâncias que revelem a tal especial censurabilidade ou perversidade do agente (Dias e Brandão, 2012, p. 47 e ss.). Neste sentido, a norma incriminatória, ao elencar, exemplificativamente, causas para a qualificação do tipo-base, não encerra tipos de ilícito; pelo contrário, estes ficam sujeitos à interpretação do/a aplicador/a do direito, a quem caberá ponderar se a conduta do agente, pelas circunstâncias concretas, estando ou não previstas no elenco das circunstâncias qualificativas, se revelou uma actuação especialmente censurável e perversa que legitime a imputação do homicídio qualificado.
Especificamente sobre esta circunstância de o facto ser praticado contra (ex-)cônjuge, (ex-)namorado/a ou companheiro/a em relação análoga, nos processos analisados é maioritário o entendimento de que a existência dessa relação não basta para que se verifique a qualificação do crime de homicídio. Ou seja, a relação (actual ou passada), contratualizada ou não, de intimidade não qualifica automaticamente um homicídio. Ainda assim, em mais de metade das condenações por homicídio qualificado constava a circunstância agravante derivada da relação entre o agente e a vítima (e também, na sua maioria, esta era a única circunstância imputada). O sentido atribuído a um acrescido desrespeito pelos padrões axiológico-normativos, nomeadamente a partir de lugares como o de “a mãe dos filhos”, será, porventura, uma das condições que contribuirão para captar a especial censurabilidade ou perversidade da conduta de um agente. Como se lê numa sentença de 18 de Abril de 1991, proferida pelo Tribunal de Viseu, “o arguido ao matar a esposa não privou apenas uma pessoa da sua vida, bem máximo, como privou três crianças, irremediavelmente, da própria mãe, numa idade (2, 4 e 6 anos) em que, como se diz: ‘quem tem mãe, tem tudo, quem não tem mãe, não tem nada’ ”. Ou ainda, e cumulativamente, da longevidade dessa relação - “mesmo que, no momento da prática, há muito que não subsistisse qualquer relação amorosa entre o arguido e a ofendida, sempre aquele deveria guardar respeito à mãe dos seus filhos, com quem chegou a celebrar as ‘bodas de prata’” (Tribunal de Viseu, sentença de 12 de Julho de 2013); ou de momentos particularmente ignóbeis, como terem ocorrido na manhã de Natal, enquanto a vítima assistia à missa na televisão (Tribunal de Viseu, sentença de 20 de Fevereiro de 2019).
Além das distintas leituras atribuídas a uma relação, contratualizada ou não, de intimidade, e do quanto revelam sobre o domínio familiar e conjugal (tutelado ou tutelável), a constelação de emoções que se reconhecem na sua órbita (ciúme, desgosto, etc.) entram nesta ponderação a partir do apelo de elementos estritamente subjectivos, relacionados com a especial motivação do agente. Se tais emoções já não constituem um expediente moral e jurídico que permita tipificar um homicídio como privilegiado, e dificilmente preenchem os critérios do expediente da atenuação da pena, sê-lo-ão para o qualificar? O “ciúme ligado à paixão” (como consta no Comentário Conimbricense, Dias e Brandão, 2012, p. 63), um estado asténico de desespero, o desgosto, a frustração ou a inconformação perante a ideia de perda de alguém que reclamavam como seu ou como sua poderão ser, em simultâneo, um motivo especialmente repugnante e um motivo fútil (técnica jurídica e percurso metodológico e argumentativo a partir dos quais a jurisprudência e a doutrina têm accionado a qualificação de um homicídio)? A ressonância individual do significado e da aspiração social à parelha romântica, e da sua ruptura, é, nos seus sentidos moral e jurídico, um motivo fútil? Um motivo fútil que, como consta na decisão do Tribunal de Leiria,
é um motivo de importância mínima, um motivo sem valor, frívolo e insignificante para explicar ou tornar aceitável, dentro do razoável, a actuação de um arguido; motivo fútil é aquele que não chega a ser motivo ou que não tem qualquer relevância, que não pode razoavelmente explicar e, muito menos, justificar a conduta do agente, sendo que é no subjectivismo do agente que terá que ser encontrada a natureza da motivação do crime para efeitos de apreciação da futilidade do motivo. [Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, sentença de 25 de Maio de 2016]
De forma convergente e a partir de argumentos coincidentes, a doutrina e a jurisprudência entendem que não. Ainda que, em cerca de ⅓ dos casos, o Ministério Público tenha acusado o arguido ou a arguida elencando esta circunstância qualificativa, o colectivo de juízes/as considerou apenas relativamente a um arguido estar-se perante um motivo fútil17 - e, em relação a um outro, estar-se perante um motivo torpe. Se as pistas que a história social, cultural e jurídica do ciúme expõe a seu propósito tornam problemático, se não paradoxal, o seu enquadramento no preceito de “motivo fútil”, o modo como os tribunais enquadram, descrevem e respondem a este nó axiológico e epistemológico, de forma particularmente expressiva nos casos das relações de namoro, revela ainda assim os equívocos e as ficções atreladas à função de justiça.
Porém, o processo causal que leva à consumação de tal crime, isto é, a dinâmica de emoções e sentimentos que lhe está associada, assume uma policromia por tal forma plurifacetada que, necessariamente, terá de lhe corresponder uma maior ou menor compreensão da sua génese. Pugna a acusação deduzida contra o arguido pela incriminação à luz da alínea e) do n.º 2 do art. 132.º do CP [ser determinado por motivo torpe ou fútil]. Tendo em conta a factualidade provada, não vemos que dela resultem elementos fácticos que permitam concluir pela especial censurabilidade ou perversidade do arguido, assente na determinação por motivo torpe ou fútil. O que levou o arguido a actuar pela forma descrita foi o facto de a vítima, no decurso da discussão que estavam a travar, se ter manifestado no sentido de querer pôr termo à relação entre eles, e de o arguido não se ter conformado com tal decisão da namorada. Configurar a situação [como] “desgosto de amor”, que gerou sofrimento ao arguido e que desencadeou neste uma situação de inconformismo, não é, a nosso ver, de considerar irrisório ou insignificante. É inquestionável que há desproporção entre o motivo da acção e a conduta, mas não poderá ter-se como absurda e sem explicação à luz das concepções éticas correntes da sociedade. Conclui-se pela não qualificação do crime pela alínea e). [Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, sentença de 23 de Novembro de 2010]
Este caso, bastante mediatizado, por se tratar de dois jovens, com 22 e 20 anos, estudantes do ensino superior, e revelar contornos escabrosos - após ter matado a namorada com uma marreta, no meio de um pinhal, o arguido tentou encobrir o crime, colocando o seu corpo na mala do carro e conduzindo até uma barragem, onde o empurrou para um precipício. Em seguida, descalçou-se, tirou o casaco e, numa fria noite de Outono, caminhou até um bar, junto a essa barragem, onde disse ter sido sequestrado e não saber da namorada -, seria, ainda assim, enquadrado como um homicídio qualificado (por o arguido ter agido com frieza de ânimo); e o arguido seria condenado a uma pena de prisão de 18 anos. Esta pena aplicada, que tanto a mãe da vítima (assistente no processo) como o arguido poriam em causa, seria confirmada pelo Tribunal da Relação de Coimbra e pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Num caso com contornos sociográficos semelhantes, um jovem universitário surgiria, junto de uma patrulha da Escola Segura, todo ensanguentado, dizendo que tinha acabado de matar a sua namorada. Com a garganta cortada, deitada no chão de um parque de estacionamento perto da faculdade onde ambos estudavam, no qual se tinham encontrado no intervalo das aulas, ali estava prostrada a vítima. Julgado por tribunal de júri, tanto no primeiro como no segundo julgamento, após a repetição ordenada pelo Tribunal da Relação de Coimbra, concluiria o colectivo de juízes/as e jurados/as:
O arguido declarou que pretendia reatar o namoro, pelo que foi a recusa da vítima que levou ao desencadear pelo arguido do desfecho trágico. O arguido agiu perante a efectiva recusa de reatamento do namoro e não previamente motivado e determinado, incondicionalmente, a matá-la, como punição/castigo ou por simples “birra” por ela o rejeitar ou por ousar ter a pretensão de seguir o seu próprio caminho sem ele. Depreende-se da prova testemunhal que a separação trouxe sofrimento a ambos, pois que ainda gostavam um do outro, sendo da experiência comum que este tipo de processos de separação de afectos transporta normalmente consigo dor e sofrimento. Não se trata de um motivo fútil, mas de motivo passional. [Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, após repetição do julgamento, sentença de 29 de Junho de 2009]
O homicídio, cujo motivo passional não permitiria qualificar, mas cuja frieza de ânimo sim, seria punido com pena de prisão de 16 anos. O Tribunal da Relação de Coimbra absolveria o arguido do homicídio qualificado, condenando-o por homicídio (simples) a uma pena de 12 anos de prisão. Desta decisão recorreriam o Ministério Público - que defendia que o arguido merecia uma pena superior, nomeadamente por estar na sua motivação um motivo fútil, o que revelava especial censurabilidade e perversidade - e o arguido - o qual defendia ter-se tratado de um homicídio privilegiado, uma vez que ele tinha actuado num estado de forte emoção ou, em alternativa, de anomalia psíquica, o que se traduziria numa imputabilidade sensivelmente diminuída. Afastando o preceito do homicídio privilegiado, escreveria o Supremo Tribunal de Justiça, a propósito do motivo fútil, na sua fundamentação:
Em ambos os acórdãos (1.ª instância e Relação) aflora uma relação de causa e efeito entre a previsão (para a 1.ª instância, a convicção) de que não haveria reatamento do namoro, o nervosismo (para a 1.ª instância, o aborrecimento e desgosto) e o crime. De qualquer modo, não há a menor dúvida de que o móbil do crime foi a ruptura de namoro por iniciativa da vítima; ruptura que o arguido não aceitou. Estamos perante um desgosto de amor, perante o sofrimento que ele provocou no arguido. Isto não é de considerar irrisório ou insignificante. Não sendo acção por motivo fútil, não se verifica a qualificativa da al. e) do n.º 2 do art. 132.º do CP. [Supremo Tribunal de Justiça, acórdão de 18 de Março de 2010]
Neste caso, e embora o STJ tenha concluído pelo não preenchimento em concreto de qualquer uma das circunstâncias que permitem qualificar o homicídio, considerou que se estaria perante um crime de homicídio qualificado, atípico, por a conduta do arguido se revelar altamente censurável, condenando o arguido a uma pena de 16 anos de prisão.
Num outro caso, mais recente, os namorados poderiam ser os protagonistas da música “2.º Andar Direito”, de Sérgio Godinho: “Ele, vinte anos, e ela, dezoito/ Há cinco dias sem trocarem palavra/ Lembrando as zangas que um só beijo curava.” Se, como continua a mesma letra, “não é só uma questão de idade, o amor não é o bilhete de identidade”, a imaturidade emocional da arguida e do ofendido, nomeadamente para manterem uma relação conjugal como a que tinham, seria determinante para enquadrar o evento fatídico, determinar a culpa e pensar a função e a finalidade da punição. Do conjunto de factos dados como provados resulta que a arguida e o ofendido
eram um casal apaixonado, que ambos tinham muitos ciúmes um do outro e que, por tal motivo - atenta a juventude dos dois -, sempre que um deles via um gosto (like) (no Facebook e/ou no Instagram) ou uma qualquer atitude, por parte do outro, para com uma terceira pessoa do sexo oposto, de imediato discutiam, pois logo concluíam ou desconfiavam que o outro estava a pensar traí-lo e/ou que existia essa possibilidade (ocorrendo tal situação, na maioria das vezes, por parte da arguida), desconfianças que davam origem a fortes discussões entre ambos, bem como a insultos mútuos e a provocações mútuas, sempre com recurso massivo a SMS […], visando, assim, cada um deles, acicatar o outro. [Supremo Tribunal de Justiça, acórdão de 12 de Novembro de 2020]
Esta conflitualidade, com expressão em diversos episódios e transcrita nas centenas de mensagens que constam do processo - a qual também caracterizava o namoro do primeiro caso referido -, decorria numa pequena cidade do Norte de Portugal18 e culminaria numa madrugada de Outubro de 2017. Durante a noite, a arguida pega no telemóvel do ofendido, que estava a dormir, e encontra uma mensagem dirigida a uma ex-namorada, a dar-lhe os parabéns. Acorda-o e confronta-o com essa mensagem. Discutem. A arguida sai de casa e o ofendido tranca-lhe a porta de entrada. Trocam várias mensagens por telemóvel. A arguida volta a entrar em casa. Continuam a discutir. A arguida pega numa faca de cozinha e desfere um golpe no pescoço do ofendido. Liga em seguida para o 112, voltando a insistir dez minutos depois, uma vez que a assistência médica ainda não tinha chegado. Veio a manhã, e, nesta história, ao contrário da letra de Sérgio Godinho, essa noite foi a derradeira - e os dois que ainda tinham “muito a aprender”… O ofendido viria a morrer na tarde do dia seguinte, “devido a encefalopatia hipóxico-isquémica, decorrente de lesões vasculares traumáticas resultantes, directa e necessariamente, do traumatismo corto-perfurante causado pela utilização da faca”.
A arguida seria condenada a uma pena de 15 anos de prisão pelo Tribunal de Guimarães. Confirmada pelo Tribunal da Relação de Guimarães, a pena seria reduzida para 13 anos pelo Supremo Tribunal de Justiça, após os recursos interpostos pela arguida - a qual defendia que a sua conduta se enquadraria no crime de ofensa à integridade física qualificada. O STJ considerou que, tendo em conta a matéria de facto provada, outra não poderia ser a subsunção dos factos senão ao tipo legal do crime de homicídio, qualificado pela circunstância da alínea b) (relação análoga à dos cônjuges) do n.º 2 do artigo 132.º do CP. Fazendo corresponder a pena à medida da culpa, o STJ consideraria que a sua actuação tinha consistido na forma do dolo eventual - em que o conteúdo da culpa é menor do que nas demais modalidades do dolo -, enfatizando a sua juventude (à data, 21 anos), a sua personalidade imatura, a natureza da relação com o ofendido, de conflito permanente, e ainda a atitude deste previamente aos factos, ao tê-la impedido de entrar em casa trancando a porta (sendo então noite). Neste caso, o motivo (fútil) não é objecto de discussão - nem a frieza de ânimo - e a natureza da relação constitui a circunstância pela qual o crime é qualificado.
Uma das hipóteses que subjaz a esta decisão poderá ser de ordem pragmática, mais do que hermenêutica, e decorrer dos termos, cumulativos, a partir dos quais a investigação criminal é conduzida e a acusação pública é deduzida, por um/a procurador/a do Ministério Público, e da sua adesão por parte de um colectivo de juízes/as. Uma outra hipótese decorre do automatismo interpretativo ou da competente persuasão (por parte da defesa da arguida) que relacionam esse amor adolescente, a sua centralidade na biografia da arguida e a catastrófica encenação, e frustração, da maturidade (pelo relacionamento conjugal). No mesmo sentido, uma terceira hipótese emerge deste jogo de agravação-atenuação, cujo núcleo material reside no mesmo dispositivo (foucaultiano). Isto é, a natureza da relação, pela qual se agrava o tipo criminal, e a natureza da circunstância (emoção) que faz funcionar a atenuação (especial ou geral) são a mesma: trata-se, ainda que operem em sentidos contrários e divergentes, de um juízo de culpa (que é inevitavelmente moral - com todas as estruturas de poder que se condensam e se atalham neste conceito).
Notas finais
Ao longo da história social, cultural e jurídica, as emoções que orbitam o imaginário da passionalidade têm sido convocadas de formas muito distintas, materializando juízos ético-morais com implicações significativas na sua censura penal: como causa justificativa do facto (prevista nos Códigos Penais de 1852 e de 1886); como uma atenuante modificativa do crime (tipificada como homicídio privilegiado); como uma atenuante especial da pena (por via da conduta-provocação da vítima, que, desencadeando um estado de grande exasperação, diminui, de forma acentuada, a ilicitude do facto e a culpa do agente); ou, mais recentemente, como circunstância especialmente censurável e perversa (a partir do expediente jurídico do “motivo fútil”, o qual permite qualificar o homicídio). Todas estas configurações decorrem e se refugiam nos elementos subjectivos do crime e na dimensão inevitavelmente interpretativa (da aplicação) do direito - abrindo espaço a concepções de amor romântico, de ciúme, de conjugalidade, de intimidade.19
No plano jurídico-discursivo, o modo como esta questão da passionalidade é enquadrada, descrita e fundamentada expõe a maleabilidade da sua forma e do seu conteúdo, embora seja apresentada como uma avaliação técnica e factual. Essa maleabilidade, no entanto, é demonstrável não apenas na análise casuística mas também na evolução da discussão das emoções e do seu efeito na responsabilidade penal, do seu diagnóstico ao seu significado forense: de uma concepção mais clássica e mecanicista, segundo a qual as emoções especialmente intensas diminuem a responsabilidade porque reduzem o controlo sobre a acção e, consequentemente, a culpa, até à asserção de uma acrescida censurabilidade da acção, por ser motivada por uma emoção inapropriada (expediente do motivo fútil), perante a qual se procura saber se, e de que modo, as emoções expressam juízos de valor adequados ou não (Lagier, 2009, p. 152).
Se a verdade judicial, como se lê em vários acórdãos, não é (nem poderia ser) uma verdade “absoluta”, no sentido de uma verdade “ontologicamente” indestrutível, mas sim a verdade possível, perante os factos alcançados - e alcançáveis -, ou, melhor, uma convicção da verdade (possível), assente em juízos de verosimilhança, “a que as normais regras da experiência comum não poderão ser alheias” (como consta no acórdão de 16 de Julho de 2014 do Tribunal da Relação de Coimbra), são estas dimensões infrajurídicas (juízos de verosimilhança e regras da experiência) que determinam a validade jurídica das emoções - uma validade que opera e operacionaliza a culpa dos sujeitos e cuja leitura não é desligável das estruturas de poder que constituem e a partir das quais se interpretam os sujeitos, os factos e as normas.














