Introdução
A juventude tem sido um objeto altamente escrutinado por um conjunto de instituições, sendo que a academia participa neste esforço coletivo para diagnosticar, narrar e projetar a juventude. Neste sentido, a academia também contribui para o processo de construção social da juventude enquanto categoria social. Não por acaso, as pesquisas espelham os tópicos mais salientes, frequentemente alimentados pelo alarme social ou pelas imagens mais proeminentes da condição juvenil. Esta categoria socioetária tende, assim, a ser hiperdiagnosticada, mercê dos recorrentes medos (presentes) e esperanças (futuras) que sobre ela recaem. Perante a evolução demográfica que se verifica, o valor de raridade da juventude tenderá, provavelmente, a alimentar ainda mais esta pulsão. No campo dos estudos juvenis os domínios do lazer, das sociabilidades e da cultura, bem como o dos processos de transição, têm sido particularmente relevantes, dando origem a duas correntes fundamentais dos estudos juvenis (Woodman e Bennett, 2015). O domínio da política, apesar de não ter constituído um objeto de destaque na pesquisa sobre a juventude, não deixou de estar presente, mesmo que subliminarmente. Nos últimos anos, no entanto, a condição e ação política juvenil tem vindo a ganhar uma saliência maior.
A condição política da juventude decorre, em grande medida, do estatuto que lhe é atribuído. A juventude é marcada pela subalternidade e pela condição passageira. Este estádio de transição para o estado adulto é caracterizado pela ambivalência e pelo gradual distanciamento da infância, período da vida em que os sujeitos ocupam uma posição de completa dependência e sujeição à autoridade das instituições sociais sendo, consequentemente, seres destituídos de agência política (Sarmento, Fernandes e Tomás, 2007; Kallio e Häkli, 2011). Ser jovem é, então, experimentar esta condição liminar, marcada pela experimentação, por um vai-e-vem entre a infância e a idade adulta. Este percurso, para uma vida mais autónoma e menos dependente das instituições sociais família e escola, é assinalado pela descoberta e exploração da realidade a níveis distintos: sociais, afetivos, sexuais, económicos e políticos. Ou seja, ser jovem é aprender a ser adulto. É, também, adquirir agência política, participar na vida em comunidade e tomar parte das suas decisões. Ainda assim, não sendo reconhecidos enquanto adultos plenos, os jovens são representados como politicamente ineficientes/insuficientes, uma vez que ainda não detêm as capacidades e competências sociais reconhecidas como válidas (Campos e Sarrouy, 2022; Campos, 2023; Skelton, 2010).
Importa, por isso, pensar a juventude enquanto sujeito político. Como se constitui a agência política na juventude e como esta se situa perante as estruturas de poder e os atores que o exercem é uma questão de fundamental importância para entender os seus modos de participação no mundo. Neste artigo discutiremos, em primeiro lugar, as formas contemporâneas de participação política. Verificamos que os jovens têm sido socialmente representados de formas distintas e, por vezes, antagónicas, facto que se encontra espelhado, igualmente, na literatura académica. Na esfera pública sobressaem as narrativas que apontam para uma crise do sistema. O problema reside, aparentemente, na acentuada letargia e falta de participação juvenil que coloca em causa a saudabilidade da democracia. A academia tem vindo a debater este assunto, nomeadamente porque existe uma visão normativa que tende a olhar para esta questão como um problema que exige diagnóstico e intervenção pública (Weiss, 2020; Garcia-Albacete, 2014; Chou et al., 2017; Lynn, Attoh e Mitchell, 2013). Neste âmbito, as visões oscilam entre as que vislumbram ora jovens apáticos e desinteressados, ora jovens voluntariosos, rebeldes e ativistas, que se movem num campo de ação extrainstitucional, marcado pela flexibilidade e impermanência, a individualidade, a horizontalidade ou o hibridismo (Pitti, 2018; Costa et al., 2022; Pickard, 2019; Kennelly, 2011; Loader, Vromen e Xenos, 2014; Soep, 2014; Chou et al., 2017).
Apesar de aparentemente antagónicas, estas imagens espelham diferentes facetas da juventude enquanto sujeito político. Ou seja, quais as peculiaridades da sua condição social e existencial que determinam uma forma particular de se relacionar com o poder e as suas estruturas? Esta é a questão de partida para debater um sujeito político que é marcado por uma condição liminar e subalterna. Neste sentido, e em linha com o sugerido por outros autores (Pitti, Mengilli e Walther, 2023; Wood, 2012), entendemos que a liminaridade, numa aceção alargada, não revela apenas um certo posicionamento do sujeito na estrutura social, como também se apresenta como uma condição que oferece determinadas oportunidades para a agência política.
Juventude, democracia e participação política
Campos políticos e formas de participação
Para refletirmos sobre a juventude enquanto sujeito político, é imprescindível não perder de vista o seguinte pressuposto: a capacidade para definir o que é a política e a esfera pública é privilégio dos adultos, sendo que, obviamente, estes detêm a condição e os capitais que lhes permitem ocupar e regular este campo e as suas instituições. Wood (2012), na sequência da abordagem crítica feminista, refere que, tradicionalmente, a política é concebida a partir da noção de esfera pública, um domínio tipicamente masculino, enquanto a esfera privada, terreno socialmente atribuído às crianças, jovens e mulheres, sempre foi desprezada enquanto domínio com potencial político:
Feminist critiques draw attention to how such (often unstated) binaries set up a divide in which adult-centred forms of Politics are the dominant, and the alternative ‘other’ child/youth-framed forms of politics are an inferior or soft version of Politics (Kallio, 2008; Skelton, 2000). Moreover, they highlight how such binaries obscure the political in mundane, habitual and taken-for-granted arenas of everyday life, which can also operate “as an arena for the contestation and transformation of dominant, often oppressive modalities of citizenship”. [Wood, 2012, pp. 338]
Logo, tal como a ontologia política emana das ações e discursos dos adultos, também o jogo político, naquilo que tem de mais mundano, é dominado por estes. Podemos invocar aqui o conceito de “campo”, com particular relevância e tradição sociológica, bem como evidentes benefícios heurísticos para esta discussão. Bourdieu (2011) entende o campo político como o microcosmos da política institucional, com relativa autonomia, envolvendo regras, procedimentos e uma cultura particular. Este é o campo socialmente legitimado para o exercício da política e para a atribuição de cargos políticos, sendo dominado por adultos e, historicamente, um território essencialmente masculino. O facto de o campo político institucional ser forjado à imagem dos adultos e dominado por estes impede a participação das crianças e jovens e limita, também, a esfera de ação e os modos de participação das gerações mais jovens.
Porém, o mundo político, entendido como um território social vasto onde se intervém, no sentido de debater ideias e projetar o futuro, mas também de regular e negociar recursos, práticas e papéis sociais, não se resume ao campo da política institucional. Podemos, assim, considerar a existência de um campo mais difuso, denominado de extrainstitucional, que incide sobre formas de participação não-eleitoral (Pickard, 2019) ou não-convencional (Pitti, 2018), gerido por outros atores e processos. Neste campo podem situar-se, por exemplo, associações, coletivos ou grupos ativistas, mais ou menos formais. Um conjunto de práticas específicas, como os protestos e manifestações, as acampadas e ocupações, os debates públicos, os atos de desobediência civil, etc. podem ser identificados como típicos deste campo. Em muitos casos são modos de participação que envolvem reportórios de ação inovadores e que manifestam valores heterodoxos (Pitti, 2018). Este é um campo de ação cuja legitimidade é constantemente questionada em função dos atores e das práticas desenvolvidas. É por isso, também, geralmente considerado um reduto contra-hegemónico, que se estabelece por contraste e oposição à política institucional, alimentando uma dinâmica de atrito relativamente a esta. De referir, todavia, que ambos os campos são permeáveis e permitem transições e sobreposições.
Esta distinção entre os dois campos é relevante para debatermos as formas de engajamento dos mais jovens, na medida em que é uma dicotomia que permite leituras distintas da participação juvenil, como veremos no ponto seguinte.
Visões divergentes da participação política juvenil
Encontramos com alguma frequência alertas para uma eventual crise dos sistemas democráticos. A última década parece revelar, de facto, um conjunto de tendências. Por um lado, assistimos à perigosa ascensão em países democráticos dos extremismos políticos, autoritários, conservadores e nacionalistas, colocando em causa os princípios elementares do Estado de direito e dos direitos humanos mais básicos, reconhecidos internacionalmente. Por outro lado, e em clara associação com a tendência anterior, parece estar a crescer uma descrença generalizada no sistema e nos seus atores principais, que se têm mostrado incapazes de lidar com as complexidades de um mundo marcado pela globalização, pelo crescimento das desigualdades sociais, pela precaridade e desemprego dos mais jovens, pelo enfraquecimento do Estado social e fragilização da oferta de serviços públicos, pela crise climática, etc. Os jovens são, como tem sido apontado por diversos autores (Ferreira, 2018; Carmo e Matias, 2019; Carmo e Simões, 2020; Pickard e Bessant, 2018), os mais afetados por este rol de problemas. Mas estes têm sido, também, frequentemente retratados como uma das causas da crise democrática (Garcia-Albacete, 2014). A juventude tem sido apontada pelos media e pelos poderes públicos como especialmente alienada, situação que não deixa de estar em consonância com a reiterada tendência para representar este grupo socioetário como “problemático” (Cohen, 1972; Kennelly, 2011; Quapper, 2012).
Existe uma abordagem dual da juventude que tem ressonâncias ao nível da forma como se entende a sua intervenção pública. Por um lado, fabricou-se uma imagem da idade dourada, em que a juventude é tida como a melhor fase da vida ou é imaginada como a solução para os problemas e mal-estar da sociedade. De alguma forma, a juventude prolonga a condição infantil, marcada pela “ingenuidade, a bondade natural, a criatividade, o espírito sonhador, o sentido lúdico da vida” (Sarmento e Tomás, 2020). Tal não invalida, porém, que persista uma visão da juventude associada ao risco (Woodman e Leccardi, 2015), à crise (Feixa, 2020) e à alteridade (Pickard, 2014; Flórez e Cárrion, 2002). Como se revela esta dualidade em termos de participação política? Por um lado, fabrica-se uma imagem algo romantizada do jovem politicamente dinâmico, protagonista da mudança social. A figura de Greta Thunberg é, a este propósito, emblemática. Por contraste, perdura outra imagem que remete para uma juventude problemática na sua intervenção, quer por excesso, quer por defeito. Ou seja, a juventude ora parece ausente e indolente, ora aparenta envolver-se de forma desmedida e radical, constituindo, em ambos os casos, um problema. Quando os mais jovens agem na esfera pública e se expressam politicamente, o seu universo de ação privilegiado é recorrentemente menorizado, ridicularizado ou censurado pelas instituições e pelos atores dominantes (O’Brien, Selboe e Hayward, 2018).
Centremo-nos, em primeiro lugar, na falta de participação dos jovens, situação que supostamente intensifica a crise do sistema democrático. Estudos demonstram, de facto, que os jovens se envolvem cada vez menos na política partidária e eleitoral (Lobo, Ferreira e Rowland, 2015; Costa et al. 2022; Pickard, 2019). No entanto, esta tendência não significa, necessariamente, um desinteresse pela realidade social ou pela participação cívica e política. Superando uma abordagem exclusivamente centrada “no problema”, diversos autores adotam uma leitura assente em facetas menos evidentes da participação política (Pickard, 2019; Pitti, 2018; Chou et al., 2017; Menezes, 2011). Encontramo-nos, então, perante duas perspetivas, aparentemente antagónicas, que podemos rotular de pessimistas e otimistas (Sloam e Henn, 2019).
A falta de envolvimento dos jovens na política institucional leva a que esforços consideráveis sejam dirigidos à educação e à formação dos jovens cidadãos, no sentido de os encaminhar para dinâmicas de participação que se enquadrem no registo dos comportamentos legítimos e apropriados. Em grande parte dos discursos públicos e da agenda política institucional encontramos uma tendência para procurar estratégias para solucionar o “deficit democrático” dos jovens (Farthing, 2010; Kennelly, 2011), mas também no sentido de edificar um modelo de cidadania e de participação política consentânea com uma ideia de civismo e do “bom cidadão” que não desafie o status quo e o Estado (Lynn, Attoh e Mitchell, 2013). Deste modo, o tipo de estratégias, de políticas e discursos públicos fomentados pelas instituições obedecem a um modelo de cidadania de natureza normativa, que permita uma integração do jovem (futuro adulto) num determinado sistema social, económico e político. Esta abordagem tem sido questionada por alguns autores que criticam a visão estritamente normativa e adultocêntrica destes mecanismos (Chou et al., 2017).
Os estudos revelam, então, um gradual afastamento dos jovens do sistema político institucional, materializado na sua pouca adesão aos partidos políticos e na elevada abstenção. As causas desta aparente rutura são variadas e têm sido destacadas por pesquisas desenvolvidas em diversos países (Weiss, 2020; Lobo, Ferreira e Rowland, 2015; Costa et al. 2022; Pickard, 2019; Pitti, 2018; Garcia-Albacete, 2014). No entanto, também há evidências de que determinadas circunstâncias sociais e económicas ou a emergência de novos agentes políticos podem suscitar maior engajamento dos jovens com a política institucional (Sloam e Henn, 2019; Pickard, 2019).
A segunda corrente, dita otimista, destaca o potencial político dos jovens, distanciando-se das abordagens mais normativas e formalistas. Por um lado, encontramos aqueles que entendem a negação da política institucional como um gesto puramente político. É o caso de Farthing (2010, p. 190) que, inspirado na obra de Beck (2001), nos diz o seguinte:
Young people who refuse to engage in traditional politics […] are perhaps unintentionally acting very politically - by depriving politics of their attention and labour, and ultimately challenging its monopoly of power. Issues of power, the core of politics, are effectively dealt with by simply staying away. […] Rejection is a powerful new form of action.
As causas desta rejeição têm sido apontadas para uma gradual mudança de valores e estilos de vida, como o aumento dos níveis de escolaridade das gerações mais novas (Sloam e Henn, 2019), que se traduz numa busca por novas esferas de envolvimento político. Também tem sido salientado o crescente descrédito do sistema, que leva a uma perda de confiança nos atores políticos tradicionais, alimentada pelas crises mais recentes e por um sentimento de injustiça em crescendo (Pickard e Bessant, 2018 ). Outro fator que tem sido apontado é o facto de os jovens serem permanentemente ignorados pelo sistema político e relegados para um plano secundário (O’Brien, Selboe e Hayward, 2018).
Muitos daqueles que se têm debruçado sobre as formas de envolvimento político dos jovens adotam uma visão da política enquanto universo de ação abrangente e poroso que está longe de se resumir à participação eleitoral e partidária (Campos et al., 2022; Campos, 2023; Pickard, 2019; Pitti, 2018; Pitti, Menguilli e Walther, 2021; Menezes, 2011; Wood, 2012; Skelton, 2010; Malafaia, 2022). A perspetiva otimista desvela áreas de intervenção e comunicação que se encontram na penumbra e que podem configurar-se como espaços de expressão dos sujeitos políticos. Os jovens enquanto sujeito político movem-se particularmente no campo da política não-institucional, que pode ser entendida como micropolítica (Müller-Bachmann, Chorvát e Mefalopulos, 2023) ou política com “p” minúsculo (Skelton, 2010), um campo desconsiderado por parte dos atores que dominam o campo político institucional. Tal situação pode, em parte, explicar a necessidade de os jovens constituírem universos políticos alternativos, regimes de debate e expressão pública que mobilizam aquilo que são as suas competências diferenciadoras, empregando os recursos que lhes são mais acessíveis e que podem capitalizar em seu benefício. Podemos, inclusive, colocar a hipótese do potencial político dos jovens se constituir, precisamente, à margem e em oposição ao poder adultocêntrico e às suas instituições.
Daí que, como referimos, a participação dos jovens seja recorrentemente descrita ora como inócua ou superficial, ora como radical e indecorosa. Os juízos de valor que servem para qualificar certos gestos políticos resultam de um olhar moralizador e disciplinador que o mundo adulto exerce sobre esta população. Mais uma vez, o que está aqui em causa é uma representação social das crianças e jovens como seres incivilizados, a necessitar não apenas de vigilância, mas principalmente de uma assimilação dos valores e competências sociais que os convertam em adultos (civilizados).
A incompreensão, e mesmo choque, perante as diferentes práticas e hábitos juvenis tem sido uma constante ao longo da história, fruto de colisões geracionais que espelham visões distintas do mundo. Os critérios e valores adultocêntricos, que compõem a cultura dominante e se exprimem na esfera pública revelam-se incapazes, muitas vezes, de encontrar uma justificação para os comportamentos juvenis. Razão pela qual os jovens são frequentemente considerados “o problema”, depositando-se neles o ónus de quebrarem certos contratos sociais (a sempre propalada “crise de valores” que os assola como uma peste). Deste modo, a juventude é frequentemente tida como desviante, constituindo uma ameaça à ordem social.1
Apesar dos discursos pessimistas persistentes, encontramos evidências recentes de que os jovens se envolvem na esfera pública, sendo, aliás, protagonistas principais de algumas causas. O caso eventualmente mais relevante, em termos internacionais, diz respeito à mobilização em torno das alterações climáticas que tem sido fortemente marcada por figuras como Greta Thunberg e pelo movimento Fridays for Future (Malafaia, 2022; O’Brien, Selboe e Hayward, 2018; Neas, Ward e Bowman, 2022). Muitos outros exemplos recentes da enérgica participação dos jovens em movimentos sociais e episódios de protesto distribuídos pelo mundo podem ser citados (Feixa e Nofre, 2013; Carmo e Simões, 2020; Ancelovici, Dufour e Nez, 2016). De salientar os casos do Movimento Indignados, em Espanha, da Geração Rasca, em Portugal, do Movimento Ocupa em diversas partes do globo (2011), dos protestos em Istambul (2013), do movimento de ocupação de escolas secundárias no Brasil (2013-14), ou do Umbrella Movement em Hong-Kong (2014). Em alguns casos, estas situações evoluem para revoltas que culminam com mudanças de regime, como aconteceu com a denominada Primavera Árabe, em que os jovens assumiram especial protagonismo (Honwana, 2012).
Neste ciclo de protesto, na segunda década do milénio, destacaram-se um conjunto de tendências que parecem caracterizar novas formas de participação. De ressaltar, desde logo, o papel fundamental que os media digitais assumiram, em formas de protesto e mobilização de índole cada vez mais híbrida (Campos et al., 2019; Loader, Vromen e Xenos, 2014), bem como o surgimento de novos coletivos de índole horizontal e não-institucional que ofuscaram os atores tradicionais (Ancelovici, Dufour e Nez, 2016; Dahlgren, 2013; Sánchez, Ballesté e Feixa, 2018). Estas são formas de ação em que a esfera do público e do privado se confundem, em que a dimensão lúdica, gregária e festiva se interseta com a luta política. Acrescente-se, por último, o acentuar de uma intervenção pública cada vez mais orientada para causas específicas (crise climática, antirracismo, direitos de minorias, direitos lgbtqi+, direitos dos animais, direito à habitação, feminismo, etc.), mais próximas daquilo que tem vindo a ser descrito como valores pós-materialistas (Farthing, 2010; Henn, Sloam e Nunes, 2022).
Em suma, as abordagens ditas otimistas, conduzem-nos à reavaliação de paradigmas e conceitos básicos. Por um lado, levam-nos a questionar a forma como se concebe a política, mas igualmente o que podemos considerar como participação política, uma vez que a definição deste conceito está longe de ser consensual (Weiss, 2020). Por outro lado, permitem-nos rebater o diagnóstico dominante e reiteradamente expresso. Ou seja, a juventude longe de se constituir como protagonista da crise do sistema, revela-se como agente de renovação da democracia. Esta interpretação faz sentido se entendermos que o conceito de democracia é plural, dinâmico, não está refém do status quo e do enquadramento institucional, podendo englobar múltiplas práticas, sendo que estas, por vezes, podem colidir (Gagnon, 2017; Pitti, Menguilli e Walther, 2021; Pickard e Bessant, 2018; Malafaia, Ferreira e Menezes, 2021). A tensões são, deste ponto de vista, o sinal de vitalidade de um regime democrático saudável.
Consideramos que para debater o papel e a participação dos jovens na democracia, mas de uma forma mais genérica naquilo que é o político enquanto universo em que operam relações de poder, se discutem ideias, regulam e negoceiam recursos, práticas e papéis sociais, teremos de partir da condição social da juventude. Isto remete para a sua posição na estrutura social, que dá enquadramento aos papéis sociais que lhe são atribuídos. Consideramos, precisamente, que esta condição específica, marcada pela liminaridade e subalternidade se revela particularmente vocacionada à germinação de certas formas de intervenção política. É o que discutiremos na secção seguinte.
Liminaridade e agência política
A condição subalterna e liminar
As ciências sociais têm vindo a debruçar-se sobre a juventude há mais de uma centena de anos. As abordagens são múltiplas, contudo é consensual a ideia segundo a qual a juventude é uma construção social cujas variações dependem dos contextos sociohistóricos, geográficos e culturais. Consequentemente, a juventude está longe de se definir enquanto categoria universal (Pais, 1993; Feixa, 2006; Frith, 1984). Tal equivale, também, a afirmar que a juventude não é um dado adquirido, uma determinação natural ou biológica.2 As comunidades representam e classificam distintas etapas da cronologia dos indivíduos de acordo com um conjunto de expectativas e papéis sociais. Importa, por isso, ter em atenção que a condição juvenil é sempre o resultado de uma articulação entre condições objetivas e representações sociais. Consequentemente, olhar para a juventude contemporânea implica ter em conta a sua realidade objetiva, muito diferente daquela que foi vivida pelos seus pais e avós. Vários autores têm destacado, por exemplo, as circunstâncias cada vez mais difusas, tardias e intermitentes de transição para o estádio adulto. A erosão de um conjunto de rituais de passagem (casamento ou serviço militar obrigatório), a crescente precariedade laboral e o desemprego, e as transformações ao nível de valores e expectativas são algumas das explicações mais amplamente invocadas ( Ferreira, 2018; Pais, Bendit e Ferreira, 2011; Woodman e Bennett, 2015; Pais, 2021; Honwana, 2012).
Como referem Sarmento e Tomás (2007, pp. 184), a infância constitui “o único grupo social verdadeiramente excluído de direitos políticos expressos”. A inclusão numa comunidade política, atestada desde logo pela atribuição de um direito maior, o poder de voto, corresponde a um destes rituais de passagem para o estado adulto. Participar na vida política, através do ato eleitoral, é uma forma de legitimação das capacidades políticas do sujeito que, deste modo, se afasta do mundo infantil. Consideramos, no entanto, que a inserção no universo político não se esgota neste registo de carácter formal. Importa, por isso, pensar os jovens enquanto sujeitos políticos, entendendo-os como agentes de participação na vida cívica e na transformação social da comunidade. Todavia, é impossível pensar esta questão sem nos envolvermos numa análise mais profunda sobre a sua condição social, sobre os papéis sociais que lhes são outorgados e sobre as expectativas e representações sociais que sobre eles recaem. Estas questões endereçam-nos para a forma como o poder está distribuído na sociedade, revelando assimetrias de diversa ordem que se traduzem na estrutura social. Sabemos que o poder está repartido de forma desigual pelas distintas classes, géneros ou grupos étnicos. O mesmo se aplica aos grupos etários, sendo que poucos duvidarão da posição de subalternidade detida pelos jovens e, principalmente, pelas crianças (Sarmento e Tomás, 2007; Frith, 1984).
Pensar a juventude enquanto sujeito político implica, em primeiro lugar, partir do lugar que esta ocupa na estrutura social. Há que ter em consideração que a juventude ocupa uma posição, do ponto de vista estrutural, que é caracterizada pela subalternidade, justificada pela natureza última desta categoria socioetária.3 Como demonstra a literatura (Frith, 1984; Sarmento e Tomás, 2007; Quapper, 2012; DeJong e Love, 2015) a infância e a juventude são categorias frequentemente sujeitas a processos de exclusão espacial e simbólica, marcados por mecanismos de apartamento do mundo adulto mas, também, de submissão e opressão, controlo e cuidado. Como tal, numa escala de poder, os jovens e principalmente as crianças, são sujeitos destituídos de poder e capacidade de agência em muitas esferas da vida. A juventude atravessa um processo de aquisição gradual de um conjunto de atributos tidos como necessários à sua inclusão plena na sociedade. A preocupação das instituições sociais é, precisamente, a de socializar os mais novos de acordo com um determinado modelo de cidadão.
Segundo esta perspetiva hierárquica das relações socioetárias, a infância e a juventude são categorias marcadas pela ausência (de certos atributos sociais), o que as coloca numa posição de fragilidade e inferioridade, facto que justifica a supervisão por parte do mundo adulto. Aquilo que separa a infância da juventude é que esta última se encontra numa situação de gradual aquisição de autonomia e de direitos. A liminaridade é a base ontológica da sua condição. O conceito de liminaridade, frequentemente invocado no que respeita à juventude, procede dos trabalhos antropológicos de Arnold van Gennep (1909) e Victor Turner (1967, 1969). Este é um conceito que faz referência à condição de passagem, de transição entre mundos sociais e estatutos distintos, estando associado a determinados ritos de passagem. Importa, aqui, reter a dimensão de transitoriedade e tudo aquilo que esta comporta e que tem sido detalhado na literatura. Esta remete para situações de incerteza, ambiguidade e hibridismo. Corresponde a uma negociação entre dois mundos, permitindo um vai-e-vem entre condições e estatutos sociais distintos, envolvendo fenómenos de inclusão e de exclusão (Wood, 2016). Deste modo, a liminaridade invoca a proximidade a zonas de fronteira, bem como um constante jogo de transposição das mesmas, na medida em que a condição social ambígua dos sujeitos admite (ou promove) esta constante mobilidade. Como refere Wood (2016, pp. 492) “liminality focuses attention not on either structure or agency but the fuzzy state of ambiguity that might sit in between these positions”.
Thomassen (2009), defende que o conceito de liminaridade, pode aplicar-se a sujeitos (indivíduos, grupos), mas também a dimensões de ordem temporal (períodos, momentos) e espacial (lugares, espaços). Esta abordagem ampla do conceito tem consequências para o nosso entendimento da juventude. Os jovens circulam entre espaços sociais, simbólicos e físicos liminares, facto que acarreta um conjunto de constrangimentos, mas também de oportunidades.
Vários autores que trabalham sobre a participação política da juventude têm-se debruçado, precisamente, sobre a liminaridade como elemento fundamental para pensar estas questões (Skelton, 2010; Wood, 2012; Pitti, Menguilli e Walther, 2021). Skelton (2010), por exemplo, defende que é precisamente a posição liminar da juventude que permite um engajamento singular com a política, na medida em que possibilita uma sobreposição e circulação constante entre a política institucional e a não-institucional, envolvendo ainda os territórios da micropolítica do quotidiano. Ou seja, estas fronteiras, por mais imprecisas e porosas que sejam, enquadram mundos sociais que são constantemente sobrepostos e atravessados por parte dos jovens, que questionam as categorias aprioristicamente determinadas pela cosmovisão adultocêntrica. A liminaridade está associada, por isso, a processos de inversão, de desestruturação da ordem simbólica, gerando atrito (Pais e Blass, 2004). Não é, então, de estranhar que, como defendem Pitti, Menguilli e Walther, (2021), a liminaridade fomente a criatividade e que, por consistir num espaço-tempo menos regulado pelos poderes e hegemonia, permita o despontar de novas formas de agir fronteiriças. Ou seja, a liminaridade dá origem e aloja práticas que, tantas vezes, são desconsideradas, socialmente não legitimadas e mesmo reprimidas, mas que envolvem uma potência política.4
Agência política juvenil em contextos liminares
Estruturalmente, dada a situação de dependência e subalternidade, a agência política juvenil é, não apenas condicionada, mas, também, geralmente menorizada. O condicionamento revela-se, desde logo, no quadro legal que impõe limitações ao direito à participação, seja no direito ao voto, seja na candidatura a certos cargos públicos. Porém, também parece certo que as causas e formatos de ação privilegiados pelos mais jovens são recorrentemente secundarizados pelas instituições e pelos atores dominantes, reprodutores de uma visão eminentemente adultocêntrica (e, por sinal, maioritariamente masculina e branca).
Defendemos, no quadro desta reflexão, que talvez se revele mais útil pensar em “agência” política e não tanto em “participação”, uma vez que este último conceito parte de uma abordagem tendencialmente normativa e institucional. O conceito de agência é polissémico e problemático no âmbito da sociologia da juventude, como apontam Coffey e Farrugia (2014). Estes autores (2014, p. 462) afirmam que o termo “is typically used to refer to active subjectivity, intentional action or ‘free will’, and may also be drawn upon to discuss choices or decision-making and forms of self-expression”. O conceito de agência revela-se, então, mais amplo, integrando predisposições para ação e práticas efetivas, articulando dimensões de foro emocional, cognitivo e pragmático. A agência política é, assim, de índole mais difusa e irregular, aberta à criatividade, ao inusitado e à mudança, longe da ideia de uma participação circunscrita a determinados espaços e tempos de exercício político. A crescente reflexividade da vida social (Giddens, 1992, 1994), a fragmentação e individualização da ação, bem como a gradual perda de importância das instituições tradicionais (Giddens, 1992, 1994; Lash e Friedman, 1998; Hall, 2004; Beck, 2001) parece acentuar, de facto, a necessidade de pensarmos a ligação dos jovens à política envolvendo um novo quadro conceptual e heurístico.
Como vimos, existe um discurso comum que tende a entender que a agência política dos mais jovens, especialmente das crianças, é inexistente. A questão que merece ser colocada é: será a agência inexistente ou é, apenas, invisível/menos visível? No caso da infância, investigadores defendem que esta existe, apesar de não descortinada enquanto tal pelos adultos, que entendem o mundo infantil como apolítico (Kallio e Häkli, 2011). Porém, a agência política assoma e prolifera em ambientes intersticiais, longe da supervisão das instituições (Wood, 2012; Pitti et al. 2021). Esta adquire particular vitalidade nestes ambientes, tirando partido do potencial da liminaridade da sua condição.
Neste sentido, o poder político dos jovens pode emergir da sua condição liminar enquanto Outro, da energia que se encontra no desregramento, na disrupção, no desafio e ameaça ao status quo. Não por acaso, estes estão frequentemente associados à irrupção de novas práticas e formas de ação, ao excesso e ao carnavalesco, ao lado primitivo das “pulsões noturnas”. Pina Cabral (2000) fala-nos precisamente de aspetos diurnos e noturnos da vida social, estando os primeiros associados à hegemonia e os segundos às dimensões liminares e periféricas da vida social:
Tal como o inconsciente para Freud, aos aspectos da vida social que são reprimidos pela hegemonia é negada uma expressão diurna, mas eles continuam a ter uma expressão nocturna; não encontram formas legítimas de ser formulados, mas não desaparecem pura e simplesmente - continuam a fazer parte da experiência dos agentes sociais. Desta forma, sou levado a sugerir que devemos diferenciar entre um aspecto diurno da vida sócio-cultural, ao qual correspondem as pessoas, coisas, processos e significados que recebem maior legitimação, e um aspecto nocturno, que corresponde aos que são reprimidos e não encontram uma forma óbvia de expressão. Urge, porém, insistir em que tal não significa que os últimos cessem de existir ou que não façam parte da vida social e cultural. [Pina Cabral, 2000, pp. 875]
A intervenção da juventude, dirigida à transformação das agendas públicas resulta com frequência, em ações com características disruptivas, que desafiam os bons costumes, as autoridades e, muitas vezes, a legalidade. Lembremo-nos do movimento contracultural e hippie dos anos 60 e 70 ou do Maio de 68. Os exemplos são muitos, mas gostaria de destacar um caso nacional que me parece exemplar. Recorro aqui a um episódio que marcou a geração daqueles que agora têm cerca de cinquenta anos. O epíteto de Geração Rasca, sendo criado por um reconhecido jornalista,5 colou-se a toda uma geração precisamente por ter empregue um conjunto de gestos políticos considerados não apenas pouco convencionais, mas mesmo chocantes e pouco condizentes com uma conduta política decorosa.6 Machado Pais (2014, pp. 80), a propósito desta situação afirmava o seguinte:
A exibição dos traseiros sugere que a resistência estudantil às provas globais ganhou formas de transgressão, transformou-se numa insurreição corpórea por um desmantelamento da linguagem do corpo, sedimentada pelo “convencional”, ou seja, a ostentação da bunda correspondeu a um uso instrumental do corpo como arma de luta. O jovem manifestante substituiu-se por um significante, metonomizou-se: o traseiro surgiu como metáfora do protesto.
Mais recentemente, mercê da visibilidade mediática que alcançaram, não podemos ignorar as práticas adotadas pelos jovens ativistas climáticos. Estes desenvolveram um reportório de ação que é caracterizado por episódios de natureza disruptiva e performativa que têm causado múltiplas reações públicas de crítica e repúdio por parte de diversos comentadores e políticos. Em 2022 e 2023, diversos espaços escolares e académicos foram ocupados por ativistas, em alguns casos resultando em intervenção policial. Vários atos públicos têm sido interrompidos por estes ativistas, com intervenções altamente performativas.7 Esta dinâmica encontra-se em linha com aquilo que, globalmente, tem sido a prática destes ativistas, com gestos de desobediência civil, ataque a alvos estratégicos, procurando o impacto mediático.
Esta é uma política contenciosa marcada por excessos vários, mas também pelo desdém pelas normas sociais, enquanto símbolos de poder. A inversão das estruturas simbólicas surge enquanto forma de desafio, manifesta no humor e sarcasmo dirigido ao poder, no choque e na disrupção. O humor tem sido apontado como uma eficaz arma de combate por parte dos mais fracos (Hart, 2007).8 Associado a esta questão está, como salienta Skott-Myhre (2015), o domínio do jogo e da brincadeira (play) que se revela como elemento crucial para a agência política dos mais novos, englobando práticas que celebram o afastamento do mundo adulto. Estes são cenários que envolvem uma certa carnavalização da política (St John, 2008), misturando festa, disrupção e crítica social.
No entanto, a agência não se esgota em situações episódicas de protesto e manifestação pública. Podemos igualmente incluir, na agência juvenil, formatos de participação quotidiana de índole personalizada, que não se inscrevem propriamente no campo de política não-institucional e seus agentes. Pickard (2022) refere precisamente uma dinâmica mais individualizada no âmbito da DIO Politics (Do-It-Ouselves Politics), associada, por exemplo, às identidades e estilos de vida (veganismo, uso de bicicleta, hortas urbanas, etc.) e ao consumo ético e consciente. Estas constituem-se enquanto formas de engajamento que se situam no âmbito da chamada micropolítica ou política do quotidiano (everyday politics) (Yates, 2022), encontrando-se à margem da ação coletiva, sobrepondo diferentes esferas de ação (lúdico, sexual, afetivo, simbólico, etc.), tornando difícil, senão mesmo inútil, destrinçar a dimensão prática da dimensão ideológica. Este é o universo da vida ordinária, das relações íntimas, das identidades pessoais e sociais, que se pode converter num campo de resistência e de construção da cidadania.
A agência política pode eclodir em espaços e tempos liminares, entre o público e o privado, o permitido e o proibido, o visível e o invisível. A condição liminar da juventude expressa-se na sua busca por espaços e tempos intersticiais, fora do (ou em oposição ao) controlo institucional. Ou seja, há potência política em muitos gestos, mesmo que estes não detenham uma carga ideológica consciente e assumida. Muitas alterações ao nível dos costumes e da vida íntima, com profundo impacto social e político partiram dos mais jovens. Várias ações juvenis representam uma resposta ao poder e à forma como os seus agentes e instituições agem no sentido da regulação das suas vidas. Neste âmbito, não empregando as ferramentas políticas convencionais, os jovens colocam em causa, rebatem, resistem ou transgridem normativos sociais e a força da hegemonia, empregando o corpo, a tecnologia, a imagem ou determinados bens estéticos e culturais como recursos na criação de gramáticas simbólicas e ideológicas singulares. Estas são arenas com um duplo sentido político.
Por um lado, ao revelarem-se como territórios aparentemente não-políticos e marcadamente juvenis, impõem uma rutura com o status quo adultocêntrico e com as suas instituições. Constituem-se enquanto espaços de liberdade e emancipação, com capacidade para inverter hierarquias simbólicas. Os domínios lúdicos, dos lazeres, das sociabilidades e prazeres juvenis representam áreas frequentemente impenetráveis ao olhar dos adultos. São territórios em que os jovens navegam competentemente, dominando certos capitais (simbólicos, corporais, técnicos, etc.). A música, o uso do corpo, a visualidade, os conteúdos das indústrias culturais ou os media digitais servem como ferramentas para a construção das suas identidades, mas também dos sujeitos políticos. Uma das áreas em que a agência juvenil tem sido mais enfatizada é a da estética e dos estilos de vida (Hall e Jefferson, 1976; Muggleton e Weinzierl, 2003; Bennett e Kahn-harris, 2004; Hebdige, 1979; Pais, 1993; Pais e Blass, 2004; Feixa, 2006; Ferreira, 2004; Simões, 2010; Carrión, 2007). A natureza insondável destes territórios, justifica o temor e, muitas vezes, a estigmatização e o pânico moral, preliminares a uma ação mais vigilante por parte dos poderes. Historicamente existem vários casos que podemos aqui evocar como paradigmáticos. O punk, por exemplo, que foi largamente demonizado pelos media e pelos discursos oficiais, tido como uma manifestação desbragada e indecorosa, atentatória das regras de civilidade e dos bons costumes. Ora, o punk constituía-se enquanto poderoso dispositivo de confronto político empregando a música e o estilo enquanto recursos de comunicação. No mesmo sentido, o graffiti, gerou temores e acusações diversas. A esta manifestação estão associadas as ideias de poluição e contágio, como bem demonstrou Cresswell (1992). Esta é uma prática ameaçadora das regras de convivência e uso do espaço público, desafiando a “estética da autoridade” (Ferrell, 1996) e o “vocabulário visual da ordem moral” (Austin, 2010). Este tipo de discursos encontramos atualmente dirigidos a outras expressões juvenis, como a pixação ou o funk no Brasil (Facina et al., 2021). O uso dos aparatos digitais também se tem revelado como particularmente relevante, dado o elevado nível de conectividade e proficiência dos mais jovens. É sabido que, neste domínio, detêm competências superiores aos mais velhos sendo este, por isso, um território em que se sentem empoderados. Não sendo um exclusivo dos mais jovens, certo é que o ativismo digital, nas suas mais diversas vertentes, se converteu numa arena muito eficaz para a sua intervenção pública (Soep, 2014; Loader, Vromen e Xenos, 2014; Campos et al., 2019; Campos e Simões, 2024).
Por outro lado, estes são campos onde, efetivamente, se produzem mensagens, artefactos e identidades políticas, na articulação entre as esferas do lazer, da estética, das sociabilidades e das emoções. O facto de serem altamente codificados e sobreporem distintas dimensões da vida pessoal, não condizentes com as regras dominantes de ação política, conduzem à sua permanente desvalorização simbólica. Contudo, como diversos estudos têm demonstrado, o rap, por exemplo, afirmou-se em variados contextos geográficos como um dispositivo de visibilização de uma juventude estigmatizada (Huq, 2001; Simões, 2010; Raposo e Marcon, 2021). Para muitos jovens pertencendo a minorias ou numa situação de exclusão, o rap converte-se numa forma de comunicação fundamental para se exporem e debaterem problemas concretos (racismo, pobreza, violência policial, etc.), contribuindo para a construção de uma identidade coletiva. O mesmo se pode argumentar relativamente a outros formatos musicais com uma matriz identitária e cultural singular, associada a minorias étnico-culturais (Raposo e Marcon, 2021). O graffiti, por outro lado, tem-se revelado como um dispositivo fundamental para a intervenção cívica, particularmente em contextos de maior turbulência política e económica, como aqueles que se viveram durante a crise financeira, há cerca de uma década (Zaimakis, 2015).
Conclusão
A infância, especialmente, mas também a juventude, têm sido historicamente menosprezadas na sua qualidade de agentes políticos. Por um lado, não podemos ignorar que o campo político é socialmente construído, sendo que aquilo que é considerado político resulta de um processo histórico dominado por adultos, nomeadamente homens, que tendem a impor uma determinada cosmovisão do mundo e do funcionamento das instituições políticas. Tal implica que a esfera pública enquanto território de exercício e produção do político tenha sido longamente regido por homens adultos, estando as mulheres, as crianças e os jovens remetidos para a esfera privada, leia-se apolítica. Por outro lado, estes são atores cuja agência política é cerceada dada a sua condição social, marcada pela subordinação ou liminaridade. Tal justifica que estes sejam agentes sob regulação e vigilância, não inteiramente competentes do ponto de vista social. Apesar de socialmente a criança ser considerada um ser apolítico, os jovens ocupam uma posição mais ambivalente, na medida em que se aproximam do estado adulto em que é suposto serem cidadãos politicamente ativos.
Nos últimos anos a academia tem vindo a prestar maior atenção à relação entre os jovens e o universo político (Costa et al. 2022; Pickard, 2019; Pitti, 2018; Chou et al., 2017; Feixa e Nofre, 2013; Sánchez, Ballesté e Feixa, 2018; Sloam e Henn, 2019). As ameaças acerca da falência da democracia, evidente no crescente alheamento público e ascensão de agentes antissistema, criou maiores preocupações acerca do futuro do regime. O olhar depositado nos jovens é de expectativa e receio, face a dados que apontam para o seu afastamento e desinteresse pela política institucional. Não contradizendo as leituras pessimistas, muitos outros autores reivindicam um olhar mais esperançoso, assente numa perspetiva do campo político e da democracia como terrenos dinâmicos e em transformação, marcados por tensões várias. Tem sido atribuído destaque a esferas menos evidentes, onde a política pode existir em potência. Falamos de espaços intersticiais e liminares, atravessando o universo lúdico e afetivo, os estilos de vida, as produções e consumos culturais e estéticos, as práticas de consumo, etc. Estes são territórios em que os jovens têm sido especialmente competentes, empregando de forma criativa determinados recursos que lhes são próximos (a tecnologia, o corpo, o vestuário, o som ou a imagem) criando gramáticas e conteúdos em que se reconhecem e que marcam um distanciamento do mundo adulto.
Neste artigo procurámos distanciar-nos das leituras menos evidentes da participação política juvenil, debruçando-nos sobre a agência política dos mais novos, partindo daquilo que é característico da sua condição social, a liminaridade. Esta não é uma proposta absolutamente original, na medida em que outros têm apontado para esta questão (Wood, 2012; Pitti et al. 2021). Porém, quisemos realçar que a condição liminar traz uma potência particular à causa pública, um território propício à eclosão da subversão e à emergência das pulsões noturnas da vida social que transportam uma vitalidade política que pode servir à revitalização do sistema. O jovem representa a figura do desafio ao status quo, aquele que constantemente questiona a certezas cristalizadas e as estruturas de poder. Ao jovem cabem as políticas do “sexo, drogas e rock-n-roll”, dos levantamentos de calçadas e do grafito, dos traseiros pintados que mereceram o epíteto de toda uma geração como “rasca”. Aos jovens cabe a política “rasca” ou “à rasca”, dependendo do contexto. O carácter turbulento e disruptivo destas ações, rapidamente é alvo de censura e/ou repressão, por parte das autoridades e dos media, animados por discursos de pânico moral (Kennelly, 2011; Pickard, 2014). A política dos jovens é, muitas vezes, a política dos excessos, catalogada como radical, imatura e inócua. No entanto, o choque inicial dá lugar, gradualmente, ao reconhecimento do papel político de muitos destes jovens, que contribuem decisivamente para a mudança social.














