Introdução
Trabalhar com literatura científica e especializada é fundamental para qualquer atividade científica, independentemente da área disciplinar. A apresentação de uma revisão de literatura é, geralmente, o ponto de partida do trabalho num projeto de investigação ou numa publicação científica. Esta constitui-se como um exercício de reconhecimento do campo de estudos e dos seus atores e abordagens, representando, desde logo, uma manifestação do requisito ético e científico de considerar a ciência (social ou outra) como um corpo coletivo e cumulativo de conhecimento (Paré e Kitsiou, 2017). Constitui-se ainda, recorrentemente, como um exercício de autolegitimação para a entrada numa determinada área: provando conhecer-se o que foi dito, comprovado e debatido sobre um certo tema e a distribuição desse conhecimento por autores e correntes, o que permite o autoposicionamento nesse mesmo espaço de saber.
É com este propósito que as revisões de literatura têm assumido sobretudo um papel ora introdutório, em publicações científicas, ora instrumental, baseado na construção de quadros conceptuais de investigação. No primeiro papel - introdutório -, as revisões de literatura permitem situar a afiliação do autor no campo, com a identificação dos protagonistas e das abordagens consideradas mais revelantes, seja por associação, seja por contraponto. Esta é uma etapa crucial em qualquer investigação, consistindo no enquadramento da relevância do trabalho que está a ser desenvolvido e no diálogo que se pode estabelecer com o conhecimento produzido sobre o tema. No entanto, há um risco subjacente a esta tarefa introdutória do trabalho científico. Se o modo de seleção de referências bibliográficas e ideias seguir um critério de citar apenas os “suspeitos do costume”, isto é, apenas as referências e os autores já muito reconhecidos e mencionados por outros autores e estudos no passado, este tipo de revisão de literatura pode acabar por produzir, em permanência, uma espécie de confirmação da história do campo e contribuir, ainda que involuntariamente, para a consolidação do seu status quo, dos centros e das elites desse espaço, fazendo com que os eventuais avanços, inovações e autores emergentes possam ser mais difíceis de identificar.
No segundo papel - instrumental -, as referências bibliográficas são selecionadas para mais diretamente contribuírem para e/ou confirmarem um argumento, ou ainda para justificarem a necessidade de conduzir uma determinada pesquisa, para acudirem a um determinado nicho temático ou, por vezes post hoc, para sustentarem um resultado obtido. Estes objetivos enquadram frequentemente o desenvolvimento e a apresentação de uma determinada análise empírica, de resultados ou de reflexões. Mas poderão acabar por contribuir pouco para modelos teóricos, para enformar políticas públicas ou para orientar a prática de investigação, consistindo apenas em sumários e estatísticas do que foi dito por outrem (Snyder, 2023).
Assim, as revisões de literatura são geralmente entendidas como um meio para certos fins (de investigação, de publicação ou de financiamento), sobretudo nas ciências sociais, em que as meta-análises do campo de literatura de um tema, as “revisões sistemáticas”, as “semissistemáticas” ou as “integrativas” (Snyder, 2019), são ainda escassas, com relativa exceção da psicologia social, da economia e da investigação política (“policy”). De facto, uma consulta da bibliografia de artigos importantes e reconhecidos sobre revisão de literatura enquanto metodologia de investigação em si mesma indicam as áreas em que esta é predominantemente desenvolvida: marketing, medicina, enfermagem, gestão, estudos de informação (Snyder, 2019, 2023). O facto de não representarem um fim em si mesmas não retira validade, relevância e centralidade ao papel que desempenham em qualquer trabalho científico. No entanto, o nosso argumento é que as ciências sociais têm também a ganhar com novas formas de ler o campo (teórico, metodológico ou temático), que sejam mais inclusivas e panorâmicas, mais sistemáticas e críticas, como, aliás, podemos comprovar com os resultados das análises que aqui apresentamos (Nico, 2021; Caetano et al., 2021; Nico et al., 2021; Carvalho et al., 2021), isto é, têm a ganhar com o uso da análise de literatura como um fim em si mesmo.
Uma análise de literatura deste tipo permite reconhecer e caracterizar de forma mais compreensiva e abrangente as principais arenas, evoluções e aplicações de um campo científico, de um conceito ou de um tema. Possibilita igualmente identificar os vieses, as fragilidades e as áreas subdesenvolvidas. Estas potencialidades de conhecimento podem ser úteis para o desenvolvimento de novos projetos, perguntas de investigação e estratégias analíticas, ou para o desenho mais lato de agendas científicas. Usar a análise de literatura como uma metodologia de investigação autónoma, como um fim em si mesmo, tem, no fundo, a grande vantagem de se “identificar mais facilmente os vazios na investigação, em vez de se continuar repetidamente a fazer as mesmas investigações; desenvolver mais e melhores questões e hipóteses concretas de investigação, e, assim, aumentar a qualidade da investigação enquanto comunidade” (Snyder, 2019, p. 339, tradução nossa). No nosso entender, isso é ainda mais válido nas ciências sociais, em que o chamado “avanço científico” se faz, ou deve fazer, precisamente pela pluralidade de argumentos, correntes, escalas de análise e paradigmas teóricos, de que só uma análise de literatura mais ampla, aberta e sistemática pode dar conta.
Neste artigo, começamos por apresentar de forma breve a diversidade de análises bibliográficas que existem para além da revisão de literatura mais tradicionalmente conhecida e usada nas ciências sociais, através da apresentação das análises bibliométrica, sistemática, semissistemática e integrativa, e das proximidades e distinções entre elas. Com base na experiência de dois projetos de investigação, são então apresentados de forma prática e operacional os aspetos e os critérios que regeram as várias fases da análise da literatura: recolha dos textos, seleção final dos documentos, organização da base de dados, definição de dimensões e variáveis, codificação, tratamento e análise dos dados. Concluímos com as vantagens e potencialidades de desenvolver análises de literatura mais complexas e panorâmicas nas ciências sociais, apesar das limitações e dos desafios encontrados.
Análises de literatura: diversidade e complementaridade
Existem várias formas de desenvolver análises de literatura. Não pretendemos, com este artigo, criar rankings ou contribuir para rivalidades entre formas igualmente legítimas de conhecer o campo científico (seja ele teórico, temático ou metodológico) e de responder a questões de investigação. Nem pretendemos, tão-pouco, apresentar uma minuta para os procedimentos e passos de uma análise de literatura, a ser seguida à risca, de forma automática ou acrítica, sem ter em conta os aspetos da investigação e as particularidades de cada campo ou o objeto em análise, como é comum encontrar-se na literatura sobre o tema (Onwuegbuzie e Frels, 2016; Paré e Kitsiou, 2017; Cronin, Ryan e Coughlan, 2008). Aliás, fazer uma análise de literatura implica montar o aparato metodológico necessário para cobrir as particularidades do objeto (da literatura). Este desenho pode ser mais simples ou mais complexo, podendo ter elementos de diversas análises de literatura, combinados de diferentes formas e sequências ou com pesos distintos (ver tabela 2).1 Nestes desenhos de análise de literatura, que podem ser variados, também se combinam e conciliam leituras quantificáveis e qualitativas da literatura. Ao mesmo tempo que se requer algum conhecimento sobre o campo, exige-se também abertura face ao que ele ainda tem de novo para revelar.
Análise bibliográfica e análise bibliométrica
A primeira e mais importante distinção a fazer no âmbito das análises de literatura é entre a análise bibliográfica e a análise bibliométrica. Esta distinção ecoa a divisão, nas ciências sociais, entre as abordagens mais qualitativas e as mais quantitativas - e é provavelmente com base nesta mesma diferenciação que se gera uma certa aversão (implícita) por uma leitura quantitativa dos textos e das publicações. No entanto, estes dois tipos de análise não só não são antagónicos como não têm de ser mutuamente exclusivos, existindo entre eles várias nuances e combinações possíveis e eficazes.
Vários são os aspetos que contribuem para a distinção entre estes dois tipos de análise (tabela 1). Desde logo, pela autonomia que assumem no processo de investigação. Uma análise bibliográfica, vulgo revisão de literatura, é frequentemente uma etapa inicial da investigação, que precede a recolha ou a análise de dados, enquanto a análise bibliométrica, apesar de poder igualmente assumir um papel introdutório numa pesquisa (um meio para um fim), pode também ser uma análise em si mesma. Estas abordagens distinguem-se ainda pelos seus objetivos. Uma análise bibliográfica pretende geralmente construir um estado da arte, no sentido em que se procura apresentar o que se sabe até um certo momento de tempo sobre um determinado tema, permitindo identificar os autores, as abordagens e os resultados que mais contribuem para pensar o tema em estudo. É também uma forma de posicionar a investigação que está a ser desenvolvida no campo, identificando as lacunas no que já foi feito e sustentando a singularidade e os contributos do trabalho em curso. Uma análise bibliométrica, por outro lado, centra-se num objetivo de recenseamento da literatura (nem sempre atingido, mas sempre ambicionado): registar o que existe, por quem foi produzido, em que contextos institucionais e em que proporção, qual o impacto e quais as inter-relações temáticas - o que permite identificar tendências de evolução e/ou perfis teóricos ou metodológicos do saber sobre um tema, bem como redes de colaboração e de produção de conhecimento.
Tabela 1 Principais diferenças entre análise bibliográfica e análise bibliométrica.

Fonte: elaborado pelas autoras.
Estas análises também se diferenciam pelo modo como se operam, desde logo, a pesquisa e a seleção das referências. Numa análise bibliográfica, essa escolha é geralmente mais circunscrita, em algumas plataformas diferentes ou apenas com base em processos de bola de neve que advêm da leitura total, parcial ou indireta (por via do que outros escreveram sobre os textos) de obras. Nestes casos, há uma seleção qualitativa (pessoal, mas também formal e instrumental) das publicações consideradas mais relevantes para um conhecimento prévio do tema e/ou para preparar a análise empírica posterior. Por outro lado, numa análise bibliométrica, é efetuada uma pesquisa extensiva e sistemática, com recurso ao uso de palavras-chave que abarquem a diversidade do tema em estudo, que segue critérios e regras pré-estabelecidos e conta com o alcance, o carácter automático e a eficiência das buscas e dos filtros das bases de dados bibliográficas disponíveis (predominantemente online).
Por fim, o modo como a análise é realizada e apresentada decorre também de estratégias distintas. Numa análise bibliográfica, é geralmente feita uma leitura aprofundada de um grupo de textos selecionados, que dá origem a uma descrição cronológica e/ou temática desses conteúdos e da forma como se relacionam. É frequentemente uma forma de colocar em diálogo os objetivos do estudo em causa e o conhecimento que já foi produzido sobre o tema, identificando eventuais lacunas e o contributo que a investigação poderá dar nesse sentido. Numa análise bibliométrica, pelo seu cariz extensivo, não seria possível, na maior parte dos casos, pôr em prática o mesmo tipo de leitura aprofundada, pelo que é normalmente efetuada uma leitura parcial. No entanto, são lidos todos os textos, mesmo que não de forma integral. Só assim é possível uma codificação comparável e padronizada de todas as publicações, com o objetivo de produzir meta-análises ou desenvolver abordagens mais panorâmicas, usando predominantemente uma metodologia sistemática, com recurso a softwares de pesquisa bibliográfica (sites, bases de dados, repositórios, bibliotecas), de gestão bibliográfica (como, por exemplo, o Mendeley, o EndNote ou o Zotero), de análise bibliométrica (como o vosviewer ou o Scimat) e de análise de dados (quantitativos e/ou qualitativos, como o spss ou o MaxQda), assim como a editores gráficos (como o spss, o Excel ou editores de nuvens de palavras).
Diversidade na análise de literatura
Apesar de a distinção entre análises de cariz mais bibliográfico e de cariz mais bibliométrico ser provavelmente a mais comummente referida, ambas se inscrevem no que pode ser designado por um conceito de âmbito mais alargado: análise de literatura. A sua pluralidade e a sua abrangência refletem-se na diversidade vocabular dos seus diferentes tipos e subtipos (tabela 2).
Tabela 2 Diversidade na análise de literatura.

Fonte: Elaborado pelas autoras com base em Snyder (2019). * Tradução das autoras de parte da tabela 1 de Snyder (2019).
Como já foi referido, a bibliometria define-se de forma genérica por uma análise tendencialmente sistemática (baseada numa recolha também sistemática e abrangente), de âmbito mais quantitativo, da literatura e das publicações sobre um determinado tema, de uma questão de pesquisa ou de uma determinada disciplina ou área de estudo. Permite identificar, sintetizar e avaliar o corpo de publicações existente, para retratar o estado e a evolução da investigação (publicada) de um dado campo de conhecimento. Esta visão panorâmica - mais inclusiva e até mais democrática, pelo seu cariz extensivo e não necessariamente apenas focado nas publicações mais paradigmáticas e centrais - favorece de forma evidente o conhecimento sobre um campo, contribuindo com uma visão (mais próxima) do todo, que é impossível ter quando, no decorrer de uma revisão de literatura mais clássica, se está muito perto do objeto.
Quando o enfoque é nas métricas de ciência, que incluem análises de sistemas de informação, política científica ou metaciência, e que se direcionam, assim, para os próprios sistemas científicos e para a evolução da ciência, falamos de cientometria (scientometrics). Há, por outro lado, análises focadas em indicadores estatísticos de bibliometria (bibliometrics), que se centram em aspetos relativos ao número de citações ou ao fator de impacto das publicações. Estes indicadores são recolhidos automaticamente nas bases de dados especializadas. Entre a cientometria e a bibliometria, a fronteira é ténue e fluida, devido ao facto de ambas usarem indicadores e bases de dados idênticas e de os objetivos serem similares ou mesmo complementares.
Considerando ainda a diversidade interna à análise bibliométrica, é possível distinguir as revisões sistemáticas ou semissistemáticas (systematic reviews), que reúnem sumários exaustivos de campos ou temas usando uma abordagem quantitativa e/ou qualitativa. Nestes casos, já interessa claramente o conteúdo dos textos, ao invés das dinâmicas de receção das publicações em campos de conhecimento temático, no sistema editorial ou no sistema científico como um todo. No caso da análise semissistemática, importa sobretudo conhecer a evolução de um determinado campo de conhecimento ao longo do tempo, enquanto numa análise sistemática o enfoque é mais o de sintetizar e comparar resultados.

Figura 1 Exemplo de representação gráfica de análises de literatura (unidade de análise a publicação) Fonte: Hanappi et al. (2014).
Nas ciências sociais, as análises integrativa, sistemática e semissistemática são as que melhor vão ao encontro do seu âmbito de ação, das suas especificidades, mas também da sua heterogeneidade. A análise integrativa é já bastante usada, em estreita articulação com revisões de literatura mais clássicas, geralmente como introdução de uma investigação, de um projeto ou de uma publicação. As análises sistemática e semissistemática têm sido pouco mobilizadas e valorizadas nas ciências sociais. No entanto, cada uma destas análises, de forma isolada ou combinada, pode contribuir para complexificar o conhecimento sobre um determinado tema, campo ou sistema científico. Argumentamos, aliás, que a combinação, adaptada à questão de investigação, pode constituir uma mais-valia nas ciências sociais. Os resultados de investigação que aqui apresentamos pretendem, precisamente, ilustrar essas mais-valias analíticas.
Ainda no âmbito da diversidade interna à análise de literatura, podemos encontrar mais uma camada de diferenciação: o tipo de unidade de análise considerada. Na figura 1, de Hanappi, Bernardi e Spini (2014), a unidade de análise é a publicação; na figura 2, de Giupponi e Biscaro (2015), a unidade de análise é o autor; e na figura 3 (Nico, 2021), as unidades de análise usadas foram as palavras dos títulos dos artigos recolhidos.

Figura 2 Exemplo de representação gráfica de análises de literatura (unidade de análise o autor) Fonte: Giupponi e Biscaro (2015).

Figura 3 Exemplo de representação gráfica de análises de literatura (unidade de análise a palavra nos títulos das publicações recolhidas) Fonte: Nico (2021).
Etapas e critérios na realização de uma análise de literatura
A análise de literatura, ao poder constituir-se como uma metodologia de investigação em si mesma (Snyder, 2019), pode e deve seguir um conjunto de regras que, habitualmente, se concretizam em etapas (Onwuegbuzie e Frels, 2016; Paré e Kitsiou, 2017; Cronin, Ryan e Coughlan, 2008), que devem ser respeitadas de forma flexível e adaptada à questão de investigação. Seguindo esta lógica sequencial, apresentamos, explicamos e exemplificamos em seguida os vários passos seguidos nas duas análises de literatura desenvolvidas nos projetos “Vidas vinculadas: análise longitudinal, mista e multinível do curso de vida da família” e “Ecos biográficos: triangulação no estudo dos percursos de vida”. A natureza e os objetivos dos diferentes projetos implicam necessariamente estratégias, mas não etapas, de análise de literatura também distintas. Esta distinção comprova, em si, a criatividade, a flexibilidade e a sistematicidade (mas não a padronização) que podem e devem estar associadas a cada análise de literatura desenvolvida. Afinal, a revisão de literatura deve ser entendida como uma metodologia de investigação (Snyder, 2019), e é uma etapa que deve ser “comandada pela teoria” (Almeida e Pinto, 1975).
A natureza de cada um dos projetos é importante para entender essas diferenças. “Vidas vinculadas” é um projeto de investigação que se centra no princípio teórico das vidas vinculadas do curso de vida. Assim, explora a forma como eventos de vida ou transições podem ter impacto nas trajetórias, transições ou adaptações nos cursos de vida de outros relacionados. A aplicação deste conceito tem sido particularmente útil nos estudos de família e intergeracionais. No entanto, apesar de ser um princípio valorizado e promissor, sobretudo no contexto familiar, o seu uso tem sido limitado a uma premissa geral: é dado como princípio teórico, mas tem sido pouco explorado como hipótese de investigação. A realização de uma análise bibliométrica tornou-se, então, crucial para caracterizar o campo de estudos em torno do princípio//conceito das vidas vinculadas, mapear a sua trajetória, as tendências e a evolução, tentando retratar os âmbitos e as diversidades dos seus usos (Nico et al., 2021; Carvalho et al., 2021).
O projeto “Ecos biográficos” tem por objetivo analisar biografias com base na combinação de testemunhos de vários interlocutores. Cada história de vida é analisada a partir da autonarrativa biográfica de uma determinada pessoa, em articulação com a perceção de quem lhe é próximo e conhece a sua biografia. Dada a singularidade do desenho metodológico do projeto, uma leitura mais tradicional e seletiva de referências bibliográficas não permitia situar inteiramente este estudo na diversidade e na complexidade do campo de pesquisa biográfica, para lá das abordagens e dos autores mais paradigmáticos e citados. Neste sentido, optou-se por atribuir um estatuto autónomo à análise de literatura, com um duplo objetivo: instrumental (na construção do modelo analítico); e de mapeamento do campo da pesquisa biográfica, tanto a nível nacional, em Portugal, como em termos internacionais. Pretendia-se identificar padrões temporais, geográficos, conceituais e metodológicos de evolução deste campo, numa ótica de complementaridade com as já numerosas reflexões sobre as principais tendências e tradições da pesquisa biográfica nas ciências sociais (Caetano et al., 2021; Caetano et al., 2023).
Pesquisa e recolha sistemática de referências bibliográficas
O primeiro passo envolve a pesquisa e a recolha de referências bibliográficas, isto é, uma seleção de literatura e de publicações relacionadas com um determinado tópico e/ou numa disciplina ou área de estudos. As fontes para esta pesquisa podem e devem ser variadas: bibliotecas e repositórios universitários, bases de dados bibliográficas, editoras, revistas e centros de investigação. Devem ser selecionadas as fontes mais relevantes para a área ou para o tópico central do estudo.
A pesquisa nestas fontes pode ser feita de duas formas distintas e complementares. A primeira, via termos de busca, em que se pesquisa por palavras-chave, isoladamente ou de forma combinada, que remetem para conceitos do objeto central da pesquisa. Estas palavras podem ser procuradas nos títulos, resumos e/ou no corpo do texto, devendo ser guiadas pelos objetivos da investigação. A segunda, via recenseamento, em que todos os conteúdos (títulos, resumos, etc.) são percorridos e lidos. A primeira via será mais útil para repositórios grandes e gerais; a segunda, para fontes mais circunscritas e tematicamente direcionadas, como, por exemplo, as listas de publicações de autores centrais para o campo em causa, séries ou coleções específicas de livros, handbooks e outros manuais sobre o tema e revistas temáticas.
Nos projetos “Vidas vinculadas” e “Ecos biográficos”, através dos termos de busca específicos de cada pesquisa, assim como de todas as variações destas nomenclaturas, foram pesquisadas referências em bibliotecas e repositórios universitários, bases de dados bibliográficas, editoras e revistas científicas, e em formatos distintos. Estes termos foram usados em inglês, mas também em português nas plataformas nacionais (portuguesas). Via recenseamento, foram ainda selecionados centros de investigação temáticos, revistas especializadas e, por vezes, currículos de autores como fontes privilegiadas de recolha de informação bibliográfica.
No projeto “Ecos biográficos”, por exemplo, pesquisaram-se referências escritas em inglês em bases de publicações como a Web of Science ou a Scopus, entre outras relevantes, e em editoras como a Sage, a Routledge ou a Cambridge University Press, para listar apenas algumas. Foi usado um conjunto de palavras-chave definidas a partir da noção central de biographical research, como biographical method, life stories ou life history, entre outras. Com base nesta pesquisa, foi constituída uma base bibliográfica no software Endnote (n = 1270 referências publicadas entre 1918 e 2019). Optou-se por exportar esta base para o Excel, em que cada referência foi codificada enquanto unidade de análise recorrendo a um conjunto de 20 variáveis relativas. Esta base, com os dados já carregados, foi depois importada para o SPSS, o que permitiu aplicar um conjunto de procedimentos de análise estatística univariada, bivariada e multivariada. No projeto “Vidas vinculadas”, foi definido e usado um conjunto de palavras-chave associadas a life course e linked lives, bem como aos restantes princípios do curso de vida. A pesquisa de literatura foi também realizada em catálogos de bibliotecas universitárias de largo espectro e de acesso aberto, em bases de dados bibliográficas como o Scopus, a Web of Science ou o Jstor, mas em que foi feita uma pesquisa aprofundada e detalhada, sem recurso a buscas automáticas ou automatizadas, em revistas especializadas da área da família e do curso de vida. Dada a existência de vários centros de investigação especificamente centrados no curso de vida, foram realizadas pesquisas nas respetivas publicações (por projeto, autor, e/ou série de working papers).
Seleção e delimitação da base de dados
Depois de as referências estarem recolhidas e organizadas em bases de dados, é importante desenvolver, avaliar e reavaliar os critérios de inclusão das obras de referência, de forma a garantir que as publicações escolhidas constituem um grupo de textos relevante para o tema em estudo, singular na distinção face a outros campos e coerente em termos de critérios usados. As referências são, nesta fase, analisadas qualitativamente, pela leitura e avaliação intelectual dos títulos e resumos (e do texto, se necessário), de modo a garantir que se cumprem todos os critérios pré-definidos, orientados pelas questões e pelos objetivos da análise bibliométrica.
No projeto “Vidas vinculadas” incluíram-se todas as publicações que se enquadrassem nas ciências sociais ou que contivessem uma componente social (fazendo com que as publicações centradas somente nas áreas da saúde ou da psicologia, sem relevância social, não fossem integradas) e todas as que contivessem conteúdo explícito da perspetiva teórica do curso de vida, dado ser esse o contexto teórico e interdisciplinar da pesquisa. No projeto “Ecos biográficos”, as publicações incluídas foram artigos, capítulos, livros editados e monografias em língua inglesa que se enquadrassem no campo disciplinar da sociologia, pois enquadrar o método biográfico nesta área disciplinar era um dos objetivos do projeto.
Definição das variáveis
Depois de as bases de dados de referências estarem finalizadas, a etapa seguinte passa por identificar as variáveis relevantes de caracterização de cada publicação, para a elaboração de um esquema de codificação. Neste âmbito, deve ser dada especial atenção ao número e à natureza das variáveis, tendo em conta que se pretende caracterizar, na sua amplitude, cada documento, mas sem perder de vista o tipo de análise estatística que se pretende realizar. A codificação envolve a transformação sistemática dos dados, baseada em regras, pela extração, agregação e enumeração, para descrever e representar as características do seu conteúdo (Bardin, 2008). Os códigos podem ser determinados antes da análise dos dados e/ou podem surgir do material empírico, podendo ser ajustados e melhorados ao longo do processo de codificação, como é habitual e desejável.
Em ambos os projetos, as definições e as categorias foram debatidas e ajustadas pelas equipas durante todo o processo de codificação. No caso do projeto “Vidas vinculadas”, o primeiro conjunto de variáveis referia-se às características do documento de publicação, capazes de caracterizar o campo do curso de vida como um todo, e o segundo conjunto de variáveis permitia descrever as abordagens metodológicas das publicações. Codificaram-se os resultados empíricos encontrados por tipo e implicação temporal de impacto dos acontecimentos, a fase do curso de vida a que correspondiam, gerações e relações familiares que estavam implicadas e esferas de vida afetadas - variáveis estas que representam a especificidade do princípio das vidas vinculadas. No caso do projeto “Ecos biográficos”, as variáveis para a codificação de cada referência bibliográfica incluíram igualmente: um primeiro bloco, relativo à identificação da publicação (autor, ano, título, tipo de publicação, autoria individual ou coautoria e, neste último caso, o número de autores); um segundo bloco, referente ao seu conteúdo (conceito principal, foco, âmbito e tópico(s) de análise); e, por fim, um bloco centrado nas metodologias e ferramentas utilizadas (natureza dos métodos, instrumentos, tipo de análise, tipo de caso, softwares utilizados, triangulação, entrevistas repetidas). Ambos os projetos tiveram, deste modo, três níveis de codificação e análise: contexto de produção da publicação (tempo, espaço), instrumentos metodológicos mobilizados (variáveis consoante a natureza e as questões dos projetos) e aspetos empírico-teóricos trabalhados nas publicações.
(Re)codificação de documentos
Com a estrutura de códigos definida, pode dar-se início ao processo de codificação, que poderá abranger todas as publicações, uma “amostra” das referências recolhidas, a totalidade de cada publicação ou apenas uma secção particular de todas as publicações escolhidas e incluídas na base de dados. A codificação pode conjugar procedimentos mais automáticos com processos de codificação mais manual/intelectual. Certas informações relativas a algumas variáveis podem ser automaticamente importadas dos programas de gestão bibliográfica utilizados (a referência bibliográfica completa, o título, o ano da publicação, os autores, o tipo de publicação ou o resumo). Outras variáveis requerem uma codificação manual e intelectual (não automática), substancialmente mais demorada, dependendo da dimensão da base de dados e do número de variáveis, assim como da complexidade da informação a ser encontrada e codificada (pois decorre da leitura parcial dos textos). É comum ser necessário resolver situações de respostas múltiplas categoriais com pesos residuais com a recodificação ou eliminação de categorias. Esta codificação, a mais importante para uma análise inovadora do campo, é (deve ser) sempre um processo inerentemente intelectual e complexo, orientado pela curiosidade humana e comandado pela teoria e pelo conhecimento prévio do campo. Só deste modo é que a codificação resume legitimamente o conteúdo que está a ser analisado.
Análise de dados
Concluído o processo de codificação, os dados podem depois ser transferidos para um programa de tratamento estatístico, para se proceder, por exemplo, a análises uni, bi e/ou multivariadas. A distribuição de frequências, o cruzamento de variáveis ou a utilização de modelos mais sofisticados, como os de correspondências múltiplas ou os de clusters, permitem sistematizar e sintetizar informação e reconhecer padrões e singularidades, bem como identificar perfis de publicação/investigação. Podem também ser utilizados programas de análise qualitativa, com recurso a ferramentas de associação entre categorias, com o intuito de, por exemplo, construir nuvens de palavras dos títulos ou conteúdos das publicações através de softwares específicos. A apresentação dos resultados pode ser feita em vários formatos, tendo em conta a abordagem adotada e os objetivos da pesquisa. Outras formas de apresentação infográfica, mais imaginativas e/ou com recurso a outros softwares, podem ser pensadas a partir de resultados estatísticos aparentemente simples. Tal como sucede noutros tipos de análise, são as decisões analíticas e o enquadramento teórico que determinam grande parte das opções do desenho metodológico. Vejamos, nos casos destes dois projetos, alguns exemplos de resultados e apresentações sumárias e gráficas dos mesmos.
Apresentação e discussão dos resultados
O principal resultado da análise desenvolvida no projeto “Ecos biográficos” foi a identificação de perfis que estruturam o campo de publicações da pesquisa biográfica, através da realização de uma análise de correspondências múltiplas (ACM) e de uma análise de clusters. A ACM (método de análise multivariada) permitiu identificar associações entre as categorias das múltiplas variáveis, e as configurações dessas associações, por sua vez, identificam perfis. Posteriormente, a análise de clusters viabilizou o agrupamento das 1270 referências em clusters - tipos de publicação -, cujos perfis foram definidos por via da ACM (Carvalho, 2008). A figura 4, assente em dois eixos estruturantes (dimensões) - contexto e foco -, apresenta a disposição relativa das categorias das cinco variáveis que mais discriminam este campo de publicações - região, data, conceito principal, foco principal e tipo de publicação -, configurando os diferentes perfis. No plano, é ainda visível o peso de cada grupo de publicações (clusters), associado ao respetivo perfil.

Figura 4 Campo de publicações de pesquisa biográfica Fonte: Base Ecos biográficos (internacional) em Caetano et al., 2021.
Foi assim possível identificar três perfis distintos de publicação que, até então, não eram conhecidos como distintos. Como se pode observar na figura 4, o perfil dos precursores, com aproximadamente 24% das referências, associa: publicações editadas sobretudo em livro, publicações produzidas principalmente por autores da América do Norte e publicações que introduziram e definiram os parâmetros do campo da pesquisa biográfica em sociologia. O perfil dos engenheiros associa mais de 50% das publicações. Este perfil apresenta uma associação clara com o período de 2005-2019 e com as regiões do Norte da Europa, da Oceânia e da Ásia. Estes textos estão especialmente marcados por preocupações, discussões e inovações metodológicas e encontram-se publicados sobretudo no formato de capítulos de livros. Por último, o perfil designado por exploradores, principalmente associado ao período de 2000-2004, ilustra a evolução desde o surgimento do campo e da chamada biographical turn. Este grupo de publicações representa cerca de 24,2% das referências e é especialmente prevalente no contexto europeu (com exceção do Norte da Europa). A produção de nuvens de palavras no software Wordle, a partir dos títulos dos textos integrados em cada um dos três clusters (figura 5), permitiu completar a análise dos três perfis, demonstrando não só a diversidade (já conhecida e reconhecida) mas também a evolução (mais difícil de sistematizar sem este tipo de análise de literatura) do campo do método biográfico.
Foi ainda aprofundada a caracterização dos perfis com uma análise do conteúdo de textos selecionados em cada cluster, próxima de uma análise bibliográfica mais clássica (Caetano et al., 2023). Através da combinação destas diferentes ferramentas de análise de literatura, foi possível perceber que o campo de pesquisa biográfica é mais plural, amplo e diverso do que os tradicionais estados da arte fazem antever. Estes tendem, habitualmente, a centrar-se em três tradições: a germânica, a francesa e a inglesa. Sem querer colocar em causa a centralidade e a importância destas abordagens, a análise realizada permitiu ir mais além, nomeadamente evidenciando o desenvolvimento da pesquisa biográfica noutras regiões do mundo, com léxicos conceptuais diversos e próprios (mesmo que partilhando noções basilares com essas tradições e articulando-se de forma variada com as mesmas), associado também à evolução da própria sociologia nos respetivos países (Caetano et al., 2021).

Figura 5 Nuvens de palavras dos títulos das publicações dos três perfis do campo de pesquisa biográfica. Elaborado pelas autoras - Base Ecos biográficos (internacional).
Já um dos objetivos do projeto “Vidas vinculadas” consistiu em caracterizar a importância do princípio de vidas vinculadas no panorama geral da perspetiva do curso de vida. O campo de estudos das linked lives foi analisado enquanto subcampo da investigação em torno do curso de vida, por comparação aos restantes princípios: localização histórica e social; timing das vidas; agência. Foram selecionados dois observatórios privilegiados do campo de estudos do curso de vida, usando-se, deste modo, todos os artigos disponibilizados pela revista Advances in Life Course Research (alcr) entre 2000 e 2019 (n = 383) e todos os resumos das conferências realizadas pela Society for Longitudinal and Life Course Studies (slls) entre 2010 e 2018 (nove livros de resumos). Foram realizadas duas análises com este material. Numa primeira análise, e através da criação de nuvens de palavras dos títulos das publicações da revista mencionada (no MaxQda e no Wordle), compararam-se os desaparecimentos, as emergências e as desproporções entre estes conceitos, antes e depois de um ponto de viragem do campo, registado em 2009 (Billari, 2009). Com esta análise, pôde verificar-se o crescimento e a diversificação do campo de estudos do curso de vida, com mais tópicos a surgirem após 2009, mais abordagens e mais conceitos longitudinais (figuras 6 e 7).

Figura 6 Advances in Life Course Research - títulos antes do “coming of age” (2000-2009). Fonte: Elaborado pelas autoras com base em Advances in Life Course Research, 2019.

Figura 7 Advances in Life Course Research - títulos depois do “coming of age” (2010-2019). Fonte: Elaborado pelas autoras com base nos artigos da Advances in Life Course Research, 2019.
Uma segunda análise, através da codificação automática de texto, no MaxQda, dos conceitos/princípios do curso de vida (com léxico próprio), permitiu comprovar que o princípio teórico das vidas vinculadas é, de facto, menos consistentemente usado em publicações de estudos empíricos do curso de vida, mas também perceber que o seu uso em conferências é crescente, o que insinua um potencial futuro de protagonismo e relevância do conceito. O procedimento seguido para este efeito foi a inserção de todas as publicações da revista ALCR (desde 2000 até 2019) e das atas da SLLC (desde 2010 até 2018) numa base de dados no MaxQda, aplicando a codificação automática e a posterior contabilização dos quatro princípios do curso de vida - linked, timing, agency e context (gráficos 1 e 2) - por ano da respetiva publicação ou comunicação.
Um segundo objetivo, com outro conjunto de textos, focou-se no conceito de vidas vinculadas aplicado à família e permitiu a identificação e a caracterização compreensiva dos principais palcos, campos, evoluções e oscilações do princípio das vidas vinculadas aplicado à família e na literatura das ciências sociais. A análise dessa interdependência requer o uso de um método de análise quantitativa multivariada e que acomode, ainda, variáveis categorizadas. Na base destas premissas, foi conduzida uma ACM.
A ACM permitiu identificar três principais perfis de literatura em torno do princípio das vidas vinculadas na família. Um dos perfis (figura 8), designado “vidas vinculadas teóricas e holísticas”, associa publicações na sua maioria teóricas e publicações que abordam as esferas de vida de forma holística. Um segundo perfil de publicações, designado “vidas vinculadas de núcleo familiar e qualitativas”, agrupa as referências das décadas de 1990 e 2000, próximas às disciplinas de psicologia ou da família. Um terceiro perfil, “a expansão contemporânea das vidas vinculadas”, representa as publicações da última década - a partir de 2010, com predominância de estudos quantitativos, provenientes de várias disciplinas como a demografia, o curso de vida e outras ciências sociais, e com uma variedade de esferas de vida para além das tradicionais.
Gráfico 1 Usos dos princípios do curso de vida (2000-2019).

Fonte: Elaborado pelas autoras com base nos artigos da Advances in Life Course Research, 2019.
Gráfico 2 Usos dos princípios do curso de vida (2010-2018).

Fonte: Elaborado pelas autoras com base nas comunicações da Society for Longitudinal and Life Course Research, 2019.

Figura 8 Configuração dos perfis das vidas vinculadas familiares nas publicações do curso de vida (ACM). Fonte: Carvalho et al. (2021).
Esta análise permitiu concretizar empiricamente aquilo que autores como Settersten (2015) ou Carr (2018) já teriam indicado como uma contradição do campo, dialogando e fortalecendo esta linha e agenda de investigação: a identificação da superioridade teórica do princípio das vidas vinculadas face aos restantes princípios, repetida, aliás, como um “mantra”, paralelamente à negligência analítica e empírica da sua utilização, com o desproporcional de unidades de análise individuais ao invés de, por exemplo, unidades familiares.
Considerações finais
Com a apresentação dos procedimentos e resultados das análises de literatura dos projetos “Vidas vinculadas” e “Ecos biográficos”, pretendemos destacar os ganhos analíticos que leituras mais abrangentes, extensivas, sistemáticas e inclusivas das publicações podem trazer para a compreensão de um determinado campo científico, uma área de estudos ou uma questão de pesquisa nas ciências sociais. Argumentamos que a autonomização daquela que é habitualmente uma etapa inicial do processo de pesquisa tem três grandes potenciais.
O primeiro é a possibilidade de se desenvolver uma análise simultaneamente panorâmica e sistemática, capaz de caracterizar de forma mais complexa e ampla, pelo seu cariz extensivo, as principais dinâmicas, conteúdos, redes, procedimentos e evolução de uma área do conhecimento. A inclusão de um elevado número de referências neste tipo de análises permite identificar características que não conseguiriam ser observadas através da leitura selecionada de um número reduzido de textos. O que se perde em profundidade ganha-se, por outro lado, em extensividade, e consegue-se, assim, perceber perfis e tendências que somente uma abordagem multidimensional permite apreender. Através desta abordagem, pode-se afirmar, por exemplo, com uma fundamentação efetiva, que existem determinadas subáreas, temas ou procedimentos mais e menos explorados, assim como assinalar dinâmicas temporais de constituição e evolução de campos do conhecimento. No caso do projeto “Vidas vinculadas”, esta abordagem permitiu, por exemplo, a identificação da desigualdade da aplicabilidade empírica dos vários princípios do curso de vida e o potencial, ainda por explorar, do princípio das vidas vinculadas (face aos restantes princípios do curso de vida) (Nico et al., 2021). No que diz respeito ao projeto “Ecos biográficos”, este tipo de análise possibilitou mapear dinâmicas de desenvolvimento do campo de pesquisa biográfica fortemente associadas a períodos específicos (eles próprios indissociáveis da constituição e do aprofundamento do domínio disciplinar da sociologia), áreas geográficas, enfoques analíticos e tipos de publicação (Caetano et al., 2021).
O segundo potencial que queremos aqui destacar é a visão mais democrática das áreas de conhecimento e temáticas de estudo. A extensividade que esta abordagem possibilita ilumina zonas habitualmente na sombra, em que se encontram as periferias dos campos científicos. Permite perceber que esses campos são mais plurais, amplos e diversos do que os estados da arte feitos com base numa seleção limitada de referências podem fazer antever. Existem, constituem-se e evoluem em articulação com aquelas que são as tradições, paradigmas e autores habitualmente citados nos mapeamentos temáticos mais populares, mas também para lá delas. Olhar para as periferias permite ainda compreender que abordagens são produzidas e em que contextos, e quais assumem um estatuto mais secundário, o qual pode não estar diretamente relacionado com a qualidade científica do seu contributo, mas sim com as condições de produção e divulgação dessas abordagens. Tudo isto sem perder de vista também os núcleos em que se encontram os autores, as pesquisas e os textos paradigmáticos do campo. No caso do projeto “Vidas vinculadas”, por exemplo, foi possível identificar, através desta análise, e de entre a miríade de relações, episódios e gerações envolvidos no estudo das vidas vinculadas, que esferas e fases de vida são predominantemente abordadas ou negligenciadas, o que informou sobre as correntes intergeracionais vigentes e emergentes (Nico et al., 2021). Quanto ao projeto “Ecos biográficos”, foi possível perceber, em termos gerais, que contributos, abordagens e metodologias (consubstanciados em diferentes perfis) têm vindo a estruturar o campo de pesquisa biográfica ao longo do tempo, mas também a diversidade interna que existe associada a cada tipo de contributo, independentemente do seu papel mais ou menos central, mais ou menos periférico no campo (Caetano et al., 2023).
Por fim, o terceiro potencial remete para o facto de ser um tipo de análise que, apesar de quantitativa na sua essência, possibilita múltiplas combinações com abordagens qualitativas, de forma complementar. A articulação entre análises integrativa, sistemática e semissistemática, mobilizada nos dois projetos apresentados como exemplo, ilustra bem o alcance e, simultaneamente, a profundidade que a análise de literatura adquire no conhecimento de um determinado campo ou área de estudos. Demonstra também o modo como distinções e entendimentos mais rígidos sobre a forma como a análise de literatura pode ser feita limitam não só os procedimentos a mobilizar como também aquilo que se consegue efetivamente observar e conhecer. Os dois projetos, com tópicos de natureza qualitativa e interpessoal, tanto na sua génese como no seu desenvolvimento, puderam, nas várias fases e leituras do campo, em que se inclui a análise de literatura, complexificar e complementar as leituras quantitativas e qualitativas. Este tipo de análise de literatura é, por isso, também uma forma de dar um exemplo da pluralidade metodológica das ciências sociais.
Com uma maior abertura a estas análises de literatura mais exigentes e abrangentes, mas mais panorâmicas e inclusivas, bem como com a sua implementação, saem a ganhar as ciências sociais e o conhecimento sobre as mesmas. Esperamos ter contribuído para, se não consolidar, pelo menos fazer reconhecer este argumento.
fontes
Advances in Life Course Research (2019). Disponível em https://www.sciencedirect.com/journal/advances-in-life-course-research/issues [consultado a 19-07-2019].
Society of Longitudinal and Life course Studies (2019). Disponível em https://www.slls.org.uk/past-conferences [consultado a 20-07-2019].














