Passados que não Passam, Entre Vozes Silenciadas e Novas Narrativas
Entrevista com Lilia Moritz Schwarcz, por Daniel Florence Giesbrecht e Patrícia Ferraz de Matos
Era o ano de 1998 quando iniciei a minha primeira licenciatura, aprovado no curso de História da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, na cidade onde nasci. Eu tinha 18 anos. Recordo-me com clareza daquele dia de matrícula. Estava com o meu pai e fomos à Livraria Saraiva, onde ele quis presentear-me com o meu primeiro livro “académico”, mesmo sem eu ainda saber quais teria de ler durante o curso. Mas, afinal, como ele costumava dizer, “se decidiu fazer História, vá se acostumando a ler muito!”. Escolhi o livro O Espetáculo das Raças, de uma promissora historiadora e antropóloga brasileira, chamada Lilia Moritz Schwarcz. Achei incrível, provocante, inovador. No final do mesmo ano, uma grata surpresa: chegava às prateleiras outro livro da autora, As Barbas do Imperador, uma fascinante biografia do imperador D. Pedro II. Ao ler as suas últimas páginas, tive a certeza de que Lilia Moritz Schwarcz se consolidaria como uma das grandes figuras intelectuais da contemporaneidade. Estava certo. Hoje, o seu trabalho é amplamente reconhecido, com honrarias que se estendem pelo Brasil, Europa e os Estados Unidos da América. Ao longo da sua carreira, lecionou e pesquisou em universidades de renome mundial, como Oxford, Brown, Columbia, Princeton e Leiden, recebendo prémios como o John Simon Guggenheim Fellowship e o Prémio Humboldt de Pesquisa na Alemanha. A sua produção académica e um conjunto de obras impressionantes tornaram-se referência para muitos cientistas sociais, com publicações que lhe renderam prémios como o Jabuti, o Clio de História, a Medalha Rui Barbosa e a Medalha do Mérito Rio Branco. Foi curadora de exposições inovadoras, como Histórias Afro-Atlânticas, premiada no Instituto Tomie Ohtake e no Museu de Arte de São Paulo (MASP), e Enciclopédia Negra, realizada em São Paulo, Rio de Janeiro, Porto e, atualmente, em Lisboa. Em junho de 2024, foi eleita para a Academia Brasileira de Letras, coroando uma trajetória que, mais do que erudita, é dedicada a lançar luz sobre as questões mais profundas e essenciais da história e cultura brasileiras. Em cada passo, Lilia Moritz Schwarcz reafirma a sua contribuição inestimável para o pensamento crítico, promovendo a democratização do conhecimento e a valorização da diversidade. Hoje, três décadas depois daquele dia em que ganhei de presente O Espetáculo das Raças, tenho a honra, junto de Patrícia Ferraz de Matos, de entrevistá-la para a revista Análise Social.
PATRÍCIA FERRAZ DE MATOS (PFM) A sua obra e o seu percurso, simultaneamente nos campos da antropologia e da história, são fascinantes e têm sido inspiradores para vários/as pesquisadores/as, principalmente no Brasil e em Portugal. Adicionalmente, a sua nomeação recente para a Academia Brasileira de Letras, num universo ainda tão dominado por figuras masculinas, sendo apenas a décima primeira mulher na história da instituição a receber esse agraciamento, é um facto notável. Na sua biografia, apresenta-se como antropóloga e como historiadora. Quando é que a antropóloga se destaca mais ou quando é que a historiadora se destaca mais? Ou que pesquisas precisam mais de uma antropóloga e que pesquisas necessitam mais de uma historiadora? Ou ambas estão sempre presentes e são necessárias para o trabalho que faz?
LILIA MORITZ SCHWARCZ (LMS) Essa pergunta é excelente, pois minha trajetória começa com uma confusão entre Antropologia e História. Quando fiz o vestibular no Brasil, achei que havia optado por Ciências Sociais, mas entrei no curso de História, que era minha segunda opção. Na verdade, descobri depois, que havia preenchido equivocadamente as fichas do exame, tendo colocado como primeira opção História. Pois bem, apesar da possibilidade de trocar de curso, acabei permanecendo em História. No mestrado e no doutorado, migrei para a Antropologia, e dou aulas na Universidade de São Paulo (USP) nesta disciplina. Até hoje, sou um pouco a historiadora entre os antropólogos e antropóloga entre os historiadores, o que me coloca em uma posição semelhante à “A Terceira Margem do Rio”, de Guimarães Rosa, a história de uma personagem que opta por ficar no meio do rio. Nem na cidade, nem no outro lado. Ela fica no meio, nas bordas, talvez. É difícil discernir quando uma pesquisa minha é mais historiográfica ou antropológica, pois meu trabalho sempre volta ao passado, mesmo em temas contemporâneos como o autoritarismo. Não retorno ao passado para realizar um determinismo histórico, mas porque o passado me informa e nos permite novas perguntas. No entanto, minha abordagem é orientada pela Antropologia, não só na diacronia, mas pela sincronia, inspirada em Lévi-Strauss. A dimensão simbólica do poder político também é central, assim como a questão racial, que perpassa minhas obras e, mais recentemente, a questão de género. Essas divisões disciplinares são, para mim, formais e didáticas, pois ambos os campos estão profundamente entrelaçados no meu trabalho.
DANIEL FLORENCE GIESBRECHT (DFG) Livros como O Espetáculo das Raças: Cientistas, Instituições e Questão Racial no Brasil (1870-1930), lançado em 1993, e Imagens da Branquitude: A Presença da Ausência, publicado em 2024, tratam de fenómenos como o racismo e a hierarquização da sociedade brasileira, cada qual com o seu enfoque específico. No primeiro, o mito da democracia racial brasileira é desconstruído, enquanto o segundo explora os mecanismos invisíveis que sustentam o privilégio racial. Gostaríamos de saber se houve algum contexto particular que tenha motivado o interesse, ou o desejo, de produzir cada uma dessas obras.
LMS No sistema académico brasileiro, ao escrever o memorial para a titularidade, utilizei uma frase do Conselheiro Aires, de Machado de Assis: “as coisas só são previsíveis quando já aconteceram”. Isso reflete como, ao revisitar o passado, somos forçados a lhe atribuir um sentido. Concordo com Didi-Huberman quando ele faz um elogio ao anacronismo, algo que considero incontornável ao resgatar a memória. Se eu dissesse que O Espetáculo das Raças levaria naturalmente a Imagens da Branquitude, estaria cometendo um anacronismo e talvez sendo vaidosa. Acredito mais que os livros se escrevem em mim. ¬Minha trajetória começou na graduação, sob a orientação de Fernando ¬Novaes, com uma pesquisa sobre mão-de-obra escrava em Ilhabela. Foi ali que compreendi como a questão racial e a escravidão são a grande contradição da sociedade brasileira, algo central em qualquer estudo sobre desigualdade. O Brasil é, ainda hoje, um dos países mais desiguais do mundo, e quem deseja entender essa desigualdade precisa enfrentar a questão racial. Meu mestrado, intitulado “Retrato em Branco e Negro”, focou a construção da imagem das pessoas negras durante o fim da escravidão e o início da Primeira República (1889-1930). Quanto a O Espetáculo das Raças, ele foi fruto de uma coincidência. Eu pretendia estudar a expulsão dos indígenas Kaingang no final do século XIX, sob a orientação de Manuela Carneiro da Cunha, mas ao explorar as revistas científicas da época, percebi que a questão racial estava profundamente enraizada nas instituições científicas. Quanto mais eu estudava, mais o tema se revelava central, especialmente nas faculdades de Direito e de Medicina, o que era um material novo para os anos 90. O livro foi polémico e lembro de uma manchete de jornal afirmando que eu sugeria estarmos a um passo do apartheid social, questionando o mito da democracia racial. Fui criticada, inclusive acusada de que eu estaria “inventando o racismo”. O tema foi ousado e provocador em um país construído em torno do mito da democracia racial e da meritocracia. Desde então, o livro ganhou força e continuei a explorar a questão racial em diversas obras, como a biografia de Lima Barreto (Lima Barreto: Triste Visionário) e Brasil, uma Biografia, escrito com Heloísa Starling, onde afirmamos que a questão racial é um dos pilares da sociedade brasileira. Já o livro Imagens da Branquitude é um desses projetos de vida, fruto de anos de reflexão sobre como lidamos mal com documentos imagéticos, tratando-os apenas como ilustrações, quando são documentos poderosos. Nesse livro, explorei uma imagem que já estava presente em O Espetáculo das Raças, a pintura “Redenção de Cam”, que agora é amplamente discutida no Brasil, mas não era no contexto dessa minha publicação. Esse percurso não foi previsível, mas construído ao longo do tempo, com meus alunos, cursos, leituras, pesquisas, estudos e projetos.
PFM Relativamente à obra O Espetáculo das Raças, considera que há aspetos que, no contexto dos anos 90, eram mais relevantes e outros que hoje teriam maior pertinência? Como evoluíram as suas reflexões sobre a questão racial no Brasil ao longo do tempo? O que abordaria de maneira diferente se escrevesse a obra nos dias de hoje?
LMS Tenho o hábito de não reler meus livros, pois quando o faço, costumo não gostar deles. Sendo assim, faz muito tempo que não leio O Espetáculo das Raças. Naquele momento, minha intenção era comprovar que o mito da democracia racial era uma falácia. Havia os estudos de Florestan Fernandes e outros da Escola de Sociologia Paulista, mas a questão ainda não era amplamente discutida. Minha pesquisa contou com o impulso de uma investigação coletiva e mais ampla - sobre a história das ciências sociais no Brasil - realizada no IDESP, e que contava com intelectuais como Sérgio Miceli, Marisa Correa, e Maria Hermínia Tavares, teve uma abordagem institucional e utilizou uma documentação robusta que ainda não era muito explorada naquele contexto, ao menos em meu país: as revistas científicas do século XIX. Hoje, talvez não precisasse provar essa tese com tanta ênfase quanto naquela época. Além disso, no contexto dos anos 90, eu não intersecionava a questão racial com a de género. Se reescrevesse O Espetáculo das Raças, abordaria com mais delicadeza essas subdivisões na categoria de raça e o marcador social de classe. O que mudou, filosoficamente, foi minha visão sobre políticas de cotas. No início, influenciada por grandes professores, eu era contrária a elas, por acreditar irem contra a ideia de universalidade. No entanto, após O Espetáculo das Raças, com o apoio de colegas do movimento negro, amadureci essa visão e passei a defender as políticas de inclusão social, partindo do princípio de que, num país tão desigual como o Brasil, é necessário desigualar para depois igualar.
PFM Essa autorreflexão sobre a sua própria trajetória intelectual é algo muito interessante, especialmente por destacar a evolução do seu pensamento ao longo do tempo e o reconhecimento desse processo.
LMS Costumo dizer que não tenho compromisso com o engano. Por exemplo, trabalho bastante com Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, e, com Pedro Meira, fiz uma publicação do livro que traz todas as alterações feitas ao longo das diferentes edições que recebeu. Esse livro, muito mais fundamental que o meu, foi eleito um dos mais importantes para os brasileiros, junto com Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus. Ele passou por profundas modificações ao longo de sete edições, o que, para mim, serve de exemplo. Precisamos estar abertos a mudanças, mesmo que não alteremos necessariamente a obra em si. Não devemos considerar nossas criações como definitivas e tenho refletido muito sobre essa superação constante, que considero essencial ao trabalho intelectual.
PFM O Espetáculo das Raças tem como foco principal a ação de médicos, juristas, cientistas e das instituições, ou seja, figuras e espaços marcados pelo poder. Como vê o papel que a ciência pode ter ainda hoje, tanto para desmitificar preconceitos - demonstrando que não existem raças humanas - como, por outro lado, com o potencial de ajudar a construir determinismos a partir de dados genéticos ou biométricos, por exemplo?
LMS Eu, como académica, acredito profundamente na ciência, mas também reconheço seu papel dúbio ao longo da história. No final do século XIX, por exemplo, os cientistas que estudei em O Espetáculo das Raças não trabalhavam para abolir desigualdades, mas para naturalizá-las, criando novas formas de discriminação baseadas na ciência. Isso ilustra como a ciência pode ser utilizada tanto para o progresso e para o esclarecimento, quanto para justificar opressões. Exemplos mais recentes, como o negacionismo científico durante a pandemia de Covid-19 e o ressurgimento de discursos eugénicos, mostram que essa ambivalência persiste. Além disso, a partir dos discursos da extrema-direita, vivemos em uma guerra cultural na qual a ciência e a história estão no centro da disputa pelo controle da memória e da narrativa do passado.
DGF Em Sobre o Autoritarismo Brasileiro lançado em 2019, argumenta que o ¬Brasil tem uma longa tradição autoritária, que vai além dos regimes ditatoriais ¬explícitos. Em 2024, completaram-se 60 anos do golpe militar de 1964. Acredita que esse golpe ecoou recentemente com a ascensão do bolsonarismo e o ressurgimento de práticas autoritárias? Que aspetos do livro considera mais relevantes para entender o Brasil atual?
LMS Esse livro foi uma encomenda, algo que normalmente não faço, tendo sido considerado o primeiro livro impresso em reação ao bolsonarismo, embora eu cite Bolsonaro apenas uma vez, no contexto das análises do familismo. Minha intenção não era introduzir a figura desse político radical como “causa” de nada, mas entender a ascensão dele como “sintoma”. Ou seja, que dentro da subida da extrema-direita, Bolsonaro era consequência, não a origem do problema. O impacto do livro foi maior do que eu esperava, e ele continua a vender muito, talvez por não ser datado e por usar a história para explicar elementos estruturais do Brasil, como a escravidão, o latifúndio, a corrupção e o patrimonialismo. Eu parti da ideia de que o Brasil sempre foi autoritário e que “nosso presente está cheio de passado”, o que virou uma espécie de bordão. Embora fosse um desabafo, o livro acabou se tornando uma referência didática e de intervenção política, refletindo os impasses recorrentes na sociedade brasileira.
PFM Outra das suas obras, Lima Barreto: Triste Visionário, publicada em 2017, é dedicada a Affonso Henriques de Lima Barreto, nascido em 1881 e falecido em 1922, no contexto da chamada Velha República, ou Primeira República brasileira, entre 1889 e 1930. Esse livro recebeu o prémio APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) de melhor biografia. Este seu interesse pelo género biográfico não é novo, como já nos tinha demonstrado no livro As Barbas do Imperador, sobre D. Pedro II, publicado em 1998. Considera que a partir de uma biografia se pode compreender melhor um contexto?
LMS Considero. Gosto muito de biografias. Sou uma grande leitora de biografias e, ao estudar os institutos históricos e geográficos, notei que estes são lugares em que você percebia a importância maior ou menor de um sócio a partir de quem fazia a biografia desse sócio. Mas o que eu também aprendi escrevendo O Espetáculo das Raças é que a biografia, durante muito tempo, foi exclusivamente dedicada a homens (e continua…), brancos e das elites, tanto políticas e económicas, como religiosas. Essa era também uma prática recorrente de uma história événementielle e que se destinava apenas a “consagrar”, não a fazer um estudo crítico. Por isso sempre me interessei em questionar esse tipo de abordagem mais positivista. No livro sobre Lima Barreto, por exemplo, não faço da biografia um exercício de exaltação. Há capítulos críticos, como o que aborda sua relação com João do Rio e questões de género. Também explorei o deslocamento social de Lima Barreto como parte de sua estratégia política, existencial e literária. Aprendi com autores como Carl Schorske que as pessoas estão sempre vinculadas ao seu contexto, e que atuam por meio de redes, e isso me interessa mais do que a biografia individualizada e do herói solitário. A biografia de Lima Barreto é, portanto, um livro triste, dececionado, talvez o mais triste que já escrevi, pois o escritor morre muito cedo, pobre e esquecido - morre de racismo. Mas é também um livro que me deu muita satisfação, pois o escrevi ao longo da vida, discutindo com meus alunos e porque ele guarda uma atitude antirracista (por parte de uma pesquisadora branca) muito clara. Ser reconhecida na Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS) com o melhor livro de Ciências Sociais, ganhar o prémio da Biblioteca Nacional, ser indicada ao Jabuti por essa biografia, mostra como também os géneros não são prisões e a biografia pode se adaptar às novas historiografias sem ficar presa a uma história positivista do século XIX.
PFM No caso de Lima Barreto, considerando que era um escritor negro no Rio de -Janeiro, como é que ele desafiou os preconceitos num contexto marcado tanto por uma produção intelectual ainda fortemente influenciada por discursos raciais e deterministas, como por uma sociedade onde negros e negras ocupavam, predominantemente, posições servis?
LMS No livro, busquei não transformar Lima Barreto apenas em uma vítima, ¬embora ele tenha sido, de facto, vítima do racismo e tenha falecido isolado e ¬desiludido aos 40 anos. O objetivo foi destacar Lima Barreto como um pensador com projetos, não apenas como alguém que sofreu. Ele quis ser muitas coisas, - jornalista, engenheiro e escritor - seguindo o exemplo dos pais que atuaram como profissionais liberais e que acreditaram que a verdadeira abolição só se faria a partir da educação. A mãe foi mestre-escola e diretora de uma escola para meninas e o pai foi tipógrafo. Apesar do preconceito, Lima apostou na República das letras brasileiras e, para mim, sua obra representa uma literatura afro-brasileira, mesmo que ele não usasse esse termo diretamente. A questão racial é central, em todos os seus personagens e temas, e ele desloca o foco do Rio de Janeiro do centro para os subúrbios, criando uma “literatura em trânsito”. Esse enfoque ajudou a reposicionar Lima Barreto no cânone ¬literário, algo essencial, no reconhecimento de um escritor que em seu Diário desabafou: “oh literatura, ou me dá o que te peço ou me mata”.
DFG Que papel pode ter uma biografia como esta? Ou como o livro Enciclopédia ¬Negra, vencedor do Prémio Jabuti na categoria Ciências Humanas, que editou com Flávio Gomes e Jaime Lauriano em 2021? Acredita que essas obras dão visibilidade a inúmeras pessoas e histórias que foram invisibilizadas por tanto tempo, ou ainda há muito trabalho a ser feito?
LMS Ainda há muito trabalho a ser feito. Somos apenas um grão de areia nesse mundo. Permitam-me mencionar outra biografia que escrevi, O Sol do Brasil, sobre o pintor francês Nicolas-Antoine Taunay, que, apesar de sua dificuldade em lidar com a escravidão, nunca deixou de retratá-la em suas telas, o que considero uma forma de denúncia. A biografia é um género que atrai leitores curiosos e pode alcançar um público mais amplo. Como Evaldo Cabral de Melo diz, “a casa da história tem muitas portas e janelas”. O género desperta curiosidade, como na biografia de Lima Barreto, em que mergulhei em detalhes obsessivos, que refletem tanto o interesse dos historiadores quanto o dos leitores. Já o projeto “Enciclopédia Negra” foi uma iniciativa coletiva, pensada como ponto de partida para ampliar o conhecimento sobre figuras históricas invisibilizadas durante a história. Trabalhámos também com 36 artistas negros, que ajudaram a mudar o imaginário visual da população, como, por exemplo, na representação de Zumbi dos Palmares - que já possuía uma tela, mas de extração muito colonial. O projeto não se limita, porém, a biografias de ex-escravizados, mas inclui uma gama diversa de figuras, como professores, fotógrafos, artistas, esportistas e engenheiros, para dar visibilidade ao protagonismo negro nas mais diversas áreas. A “Enciclopédia Negra” agora aparece em filmes, peças, romances, exposições e em novas pinturas, e isso nos enche de satisfação. Distribuímos mais de 40 000 jogos de pósteres para as escolas públicas, incentivando que os alunos criassem suas próprias biografias, o que foi um sucesso. A enciclopédia rapidamente se apresentou como uma exposição de arte, que começou na Pinacoteca de São Paulo, foi para o Museu de Arte do Rio de Janeiro (MAR), passou pelo Porto e agora está em Lisboa.
O objetivo é iluminar pensadores e ativistas negros, como procurei fazer com Lima -Barreto, promovendo o protagonismo e a memória dessas figuras fundamentais para o Brasil e sua história.
PFM Quem foram os artistas envolvidos no projeto e como foram escolhidos? Eles já tinham obras prontas ou foram convidados a criar especificamente para a exposição? Além disso, recebeu algum retorno dos visitantes sobre a exposição, especialmente considerando que essas obras representam pessoas que foram historicamente invisibilizadas e discriminadas?
LMS Esclarecerei alguns pontos. Primeiro, a “Enciclopédia Negra” já tinha uma estrutura bem definida, pois 600 biografias não conseguem abranger todas as histórias negras do país. No que se refere aos artistas, fizemos uma interseção criteriosa entre diferentes marcadores sociais da diferença: como género, região e geração. Eu sempre dizia ao Flávio e ao Jaime que precisávamos incluir mais mulheres, nunca menos. Também trabalhámos para incluir a população LGBTQIA+, o que foi um desafio. Para isso, recorremos aos arquivos da ¬Inquisição para encontrar registos, o que era mais difícil para períodos antigos, embora seja mais acessível nos tempos contemporâneos. O projeto foi assim criado com o desafio de representar diferentes géneros, regiões e gerações, cobrindo biografias desde o século XVI até o XXI. O critério para seleção das figuras biografadas era que estivessem falecidas, para que a obra não se tornasse interminável. A ideia era trazer a morte para iluminar a vida. Também priorizámos diversidade de representatividade. Na escolha dos artistas, seguimos a mesma abordagem, mesclando jovens talentos, na época, como ¬Pâmela Castro e Elian Almeida, que foram promovidos ao reconhecimento com a exposição, com nomes já consagrados, como Dalton Paula, Sônia Gomes, Oba, Arjan e Lídia Lisboa. Todos os artistas doaram suas obras para a Pinacoteca, que possuía poucos retratos de pessoas negras. As obras foram criadas especificamente para o projeto, com cada artista recebendo uma verba diminuta - promovida pelo instituto Ibirapitanga - e uma biografia como inspiração. Em alguns ¬casos, o próprio artista se inseria na obra, explorando uma memória afetiva. Outros, como Dalton Paula, retrataram figuras históricas silenciadas, como o líder quilombola Daniel. Parte do nosso trabalho foi também lidar com ¬lacunas históricas, com as datas de nascimento e morte, sendo apagadas pela repressão. Usamos, nesse sentido, o conceito de “fabulação crítica”, como propõe Saidiya Hartman. O projeto foi assim resultado de uma colaboração coletiva. O prêmio Jabuti foi por isso mesmo especialmente comemorado, pois simbolizava o reconhecimento de um trabalho que contava com muitas pessoas envolvidas: a editora, os artistas, os autores, os museus.
DFG O golpe militar de 1964 no Brasil e a Revolução dos Cravos de 1974 em Portugal marcaram dois momentos históricos decisivos, mas com desfechos radicalmente diferentes. Considerando as diferenças de contexto e escala, que sempre tornam a comparação difícil, que semelhanças e diferenças identifica entre os períodos de ditadura e de consolidação da democracia em ambos os países, lembrando que os desafios democráticos permanecem constantes e inacabados?
LMS Os dois eventos são completamente diferentes. O Golpe Civil Militar de 1964 no Brasil foi um movimento reacionário que, por meio de 17 atos institucionais, suprimiu liberdades, direitos, e instalou uma máquina de repressão, sequestro e morte. O governo de Jair Bolsonaro tentou reescrever essa narrativa, chamando o golpe de “revolução” para conferir-lhe uma aparente nobreza. Por sinal, no Brasil, há uma verdadeira guerra de narrativas sobre 1964. Em contraste, a Revolução dos Cravos em Portugal, embora também militar, foi uma revolução que contou com a adesão popular, que simbolizou o fim do salazarismo e da dominação colonial. Eu estava em Portugal no contexto de comemoração do aniversário da Revolução dos Cravos e pude ver algumas exposições que mostram o lado afetivo que envolveu esse evento. A imagem dos cravos nos fuzis revela o caráter afetivo dessa revolução, que levou à retomada democrática e ao fortalecimento das instituições em Portugal. Como sabemos, embora Salazar já não estivesse mais no poder, seu regime foi só nesse contexto desmantelado. Essa é a importância da restauração democrática, e do retorno do poder ao povo, algo que havia sido retirado da história de Portugal desde a ascensão de Salazar em 1932. Assim, se o golpe de 1964 consolidou o autoritarismo e o lugar dos militares no Brasil, a Revolução dos Cravos trouxe a liberdade civil em Portugal. Esses movimentos são opostos em seu significado e impacto, embora hoje testemunhemos o ressurgimento de autoritarismos e extremismos em ambos os países.
DFG Pensando atualmente, com a ascensão de uma extrema-direita violenta, tanto no campo simbólico quanto no cultural e físico, como podemos explicar que, mesmo em períodos considerados democráticos, assistamos ao crescimento desses grupos e partidos?
LMS Acredito que alguns setores da sociedade achavam que a democracia representava o ponto final da história, mas, na verdade, é um regime em constante construção, onde os direitos precisam ser sempre revistos e expandidos, em suma, qualificados. Entre 2015 e 2017, com a crise financeira global e o aumento do subemprego, vimos a ascensão da extrema-direita em diversos países, como EUA, Hungria, Itália e Brasil, com figuras como Trump, Orbán, Meloni e ¬Bolsonaro. Hoje, em 2024, estamos novamente vendo esta história ressurgir com força. O que caracteriza esses governos é o uso de um populismo tecnológico, que simplifica questões complexas e fideliza grupos por meio de discursos moralistas e religiosos. Eles se conectam com grupos católicos, evangélicos e judeus ortodoxos, criando uma “guerra moral” e uma base fiel. No Brasil, pesquisas mostram que a falta de educação abre espaço para a extrema-direita, mas isso não explica o fenómeno global, que também ocorre em Portugal, com o crescimento do Chega e de André Ventura. Há uma pauta comum nesses congressos internacionais de extrema-direita, marcada por ataques à população LGBTQIA+, aos imigrantes e a outras formas religiosas. Isso ficou muito evidente em cartazes que vi recentemente em Portugal com a frase: “Portugal precisa de uma limpeza”. Esse discurso traz de volta a questão da eugenia, que se apoia nessa ideia de “limpeza” racial e moral. Sabemos que a propaganda eugénica explorava essa noção, tanto de uma limpeza quase literal quanto de uma “limpeza civilizacional”. Fiquei verdadeiramente pasma ao ver esses outdoors em Portugal, um país que depende tanto da imigração, com a maioria deles sendo brasileiros. A extrema-direita utiliza crises económicas e teorias conspiratórias para promover ódio e apresentar líderes como “antissistema” - quando muitas vezes não o são. Um ponto importante a destacar é que esses políticos, como Donald Trump e Jair Bolsonaro, por exemplo, foram os primeiros a vencer com base nas redes sociais, sem precisar dos meios tradicionais de campanha. As redes sociais, que precisamos analisar como historiadores e antropólogos, estão criando muita polarização. Embora a polarização não seja nova, como vimos acontecer, por exemplo, no Brasil de 1964, com a produção de fake news financiadas, o que é novo é o papel das redes sociais em intensificar esses fenómenos, conferindo a eles o sentido de verdade. Elas criam bolhas, permitindo que as pessoas interajam apenas com quem compartilha suas opiniões, e os políticos, especialmente de extrema-direita, estão explorando isso para disseminar muita desinformação. Estamos em um momento único, em que as polarizações são amplificadas por esses novos meios de comunicação. O que me preocupa é que a direita está muito mais organizada internacionalmente, enquanto os grupos liberais, progressistas e as esquerdas parecem desorganizados. Tal perspetiva traz impactos nos processos eleitorais em todo o mundo.
PFM No caso do Brasil e de Portugal, acredita que o crescimento da extrema-direita possa estar de alguma forma relacionado com a história colonial, ou com a maneira como essa história foi narrada? Em especial, pensando no mito luso-tropicalista sustentado por Gilberto Freyre, que argumenta que a colonização portuguesa foi mais “branda” em comparação com outras colonizações, como a inglesa ou a francesa.
LMS Sim, e trato disso em meu livro sobre o autoritarismo brasileiro, que, embora não seja sobre Portugal, aborda o luso-tropicalismo, uma teoria que nos une. Essa ideia, vinda de Portugal, visa naturalizar a noção do “bom senhor”, contrapondo a escravidão portuguesa à norteamericana, como se pudesse haver uma “boa escravidão”. Isso reforça hierarquias e perpetua o mito de uma aristocracia benevolente. No Brasil, a população negra é maioria, com 56,1%, mas continua menorizada na representação. Ambos os países herdaram modelos patriarcais e paternalistas, com o homem branco no centro e as mulheres em posições subordinadas. Um bom exemplo são as imagens do salazarismo em Portugal e do governo de Getúlio Vargas no Brasil, onde a família idealizada é totalmente branca e tem no páter-famílias o modelo de chefe de estado. Essa visão de democracia racial atrasou a conscientização sobre o racismo, como apontam Sueli Carneiro e Guerreiro Ramos, ao criar a falsa ideia de que o racismo não existia. Ideologias como essa são especialmente eficazes quando até suas vítimas acreditam nelas. Portanto, essas ideologias de longa duração ainda afetam profundamente ambos os países.
PFM Qual é o papel da memória, e dos resquícios dos períodos autoritários, tanto no Brasil como em Portugal, no contexto atual? Como é que essas histórias e memórias influenciam o presente em ambos os países?
LMS A crítica literária argentina Beatriz Sarlo faz uma distinção interessante entre história e memória, dizendo que, embora pareçam sinónimos, essas duas categorias de entendimento do passado estão muitas vezes em conflito. A história busca dados objetivos, enquanto a memória é mais afetiva e pessoal. Juntar essas duas dimensões - história com afeto - pode ser um instrumento analítico poderoso para países como Brasil e Portugal. É por isso que insisto na importância de unir memória e história. Ao mesmo tempo, é fundamental reconhecer a violência praticada nas colónias. Recentemente, assisti a um depoimento e ao filme ¬Capitães de Abril, de Maria de Medeiros, que admiro muito, onde ela retrata o verdadeiro inferno vivido nas colónias portuguesas na África. ¬Portugal precisa lidar com seu passado colonial, as independências africanas e a situação dos retornados, o que não são questões simples. Da mesma forma, o Brasil precisa enfrentar seu passado esclavagista, sendo o último país a abolir a escravidão mercantil e o que mais recebeu mão-de-obra escravizada proveniente do continente africano. Esse “ajuste de contas” com a memória e a história é doloroso, mas essencial para ambos os países, proporcionando uma iluminação ¬necessária.
DFG A evocação do passado também é um exercício de poder. Ao mesmo tempo, isso tem gerado novas formas de resistência, impulsionando o ativismo. Gostávamos de saber como avalia o papel dos movimentos sociais e qual pode ser a contribuição dos cientistas sociais nesse processo.
LMS Acredito que o papel dos cientistas sociais em relação aos movimentos sociais é duplo. Já superámos a ideia de que os cientistas sociais devem liderar esses movimentos. O que podemos fazer é nos unir aos movimentos sociais, oferecendo o que fazemos de melhor: diagnósticos, avaliações e balanços fundamentados nas pesquisas que realizamos. Atuar como aliados. Esse é um papel relevante, pois, por exemplo, muitos colegas especializados no estudo do autoritarismo identificam padrões recorrentes que podem auxiliar os movimentos sociais. Contudo, é importante que esse apoio não se sobreponha ao protagonismo dos próprios movimentos, como ocorreu no passado, quando se acreditava que o intelectual orgânico era o líder central. Hoje, reconhecemos que esse protagonismo não cabe mais aos intelectuais. No entanto, particularmente, continuo fortemente comprometida com os movimentos sociais e a questão política, embora respeite colegas historiadores e antropólogos que preferem manter certa distância dessas questões. Para mim, tudo o que fazemos é político. Se não reconhecermos isso, seremos usados politicamente de qualquer forma, por isso prefiro deixar essa postura clara.
PFM Para além da sua obra, que de facto é vasta e rica, gostávamos de conhecer melhor a mulher por detrás dessa produção. Como mulher e pesquisadora, quais foram os maiores desafios que enfrentou ao longo da sua trajetória académica? Em algum momento sentiu discriminação por ser mulher? Se sim, como conseguiu superar essas dificuldades?
LMS Eu continuo superando… Acredito que não devemos nos prender ao passado, mas focar no “gerúndio”, ou seja, no processo contínuo de superação dos desafios. Um exemplo pessoal vem de quando decidi estudar História. Meu pai, uma pessoa liberal e muito estudiosa, perguntou se eu estava cursando História para encontrar um marido rico. Respondi que não e que iria provar isso. Mesmo quando eu e Heloísa Starling escrevemos Brasil, uma biografia, enfrentámos atitudes semelhantes. Vários jornalistas homens nos perguntavam como nos sentíamos escrevendo sobre a história do Brasil. Eu sempre respondia que não entendia a pergunta, até que finalmente apontava: porque você não fez essa pergunta a Boris Fausto, um grande historiador, mas um homem, que também escreveu uma história do Brasil? A suposição era que duas mulheres não poderiam falar sobre tantos temas, apenas sobre questões consideradas “amenas”. Além disso, a batalha para entrar na Academia Brasileira de Letras, uma instituição historicamente dominada por homens e suas pautas, reflete esse desafio. Tenho me esforçado para abordar temas cruciais para as mulheres, como estupro e feminicídio, que são questões sensíveis e urgentes no Brasil, o país com um dos maiores índices de feminicídio no mundo. Esses temas ainda enfrentam resistência para serem discutidos em instituições tradicionais, mas isso está mudando e acredito que continuarão a ganhar espaço. Por isso, prefiro me movimentar no presente, pelo “gerúndio”.
PFM Mencionou anteriormente o papel das redes sociais, tanto nas campanhas políticas, como em outros contextos. Sabemos que tem uma presença forte nessas redes e utiliza pequenos vídeos para divulgar o seu trabalho e debater questões emergentes, especialmente no contexto brasileiro. O que a motivou a adotar essas tecnologias, considerando que já possui uma vasta obra publicada e leciona na universidade? Porque decidiu recorrer também a essas plataformas?
LMS Minha entrada nas redes sociais foi incentivada por Adriano Pedrosa, diretor do MASP, que sugeriu que eu compartilhasse as obras que planejava para as exposições e observasse a reação do público. Inicialmente, meu Instagram era voltado para a arte e fotografia, até à eleição de Jair Bolsonaro. Quando ele nomeou um suposto “astronauta” como ministro de Ciência e Tecnologia, publiquei um post criticando sua escolha, o que gerou uma enorme reação. Isso me motivou a tratar sobre os demais ministros e a criticar os desmandos do governo, especialmente durante a pandemia. Foi então que percebi o alcance que minhas postagens tinham. Ao longo do tempo, comecei a ser reconhecida nas ruas e recebida com carinho, como “professora”, o que me fez continuar. Percorri todas as etapas da minha carreira, sigo publicando em revistas académicas e lançando meus livros no Brasil e no exterior. No entanto, senti que também podia e devia, que tinha a liberdade de explorar esse novo espaço. Me formei em escolas públicas e dou aulas na universidade pública. Por isso, sinto que esse é uma espécie de dever moral (e individual também pois acredito no papel da cidadania). No início, houve desconfiança, sobretudo na academia. Recentemente, porém, fui convidada para uma aula magna na USP e fiquei surpresa ao ver um auditório lotado. Os professores inicialmente acreditaram que o público era composto apenas pelos meus alunos, mas lá estavam, também, pessoas de fora, mostrando que meu alcance havia se expandido além dos muros universitários. Como mencionei, grupos de extrema-direita sabem usar as redes sociais de maneira muito eficaz. Se nós, que acreditamos na democracia, no pensamento progressista, na diversidade e na igualdade, não ocuparmos esse espaço, ele será completamente tomado. Nas redes sociais sou uma pensadora independente e arrisco usar as ferramentas da academia, combinadas com uma linguagem na qual fui socializada, em parte devido ao mundo editorial. Aprendi que escrever de forma mais acessível não significa escrever de maneira simplista, mas sim tornar o conteúdo compreensível para um público mais amplo. As redes me permitem dialogar com pessoas que nunca ouviram falar de mim e, embora nem sempre concordem com o que digo, eu aprendo muito com esse processo. Não é sempre fácil, mas também há um lado democrático, onde a contestação pode ser construtiva.
DFG Como são as reações dos seus seguidores? São construtivas ou apenas elogiosas? Também recebe críticas, inclusive racistas e xenófobas, considerando que aborda temas polémicos, como hierarquizações e discriminações, ataques contra negros, mulheres e pessoas transexuais?
LMS Sim, eu aprendo muito com as interações nas redes. Gosto de responder pessoalmente, mas com o crescimento das minhas redes e a radicalização dos debates, ficou difícil acompanhar tudo. Às vezes, recebo até mil mensagens em apenas um post, então dedico um tempo específico para responder, sem me deixar tomar por isso. Tenho muitos lovers e meu Instagram é orgânico, pois nunca investi dinheiro nele. Contudo, também tenho haters, especialmente da extrema-direita, que discordam dos temas que abordo, como igualdade e justiça social. Há quem ache esses temas frívolos. Pesquisas mostram, no entanto, que mulheres são as mais atacadas nas redes. Não sou um caso extremo, talvez porque sou vista principalmente como professora, o que faz com que as pessoas tenham mais prurido em me atacar. Mas, ainda assim, sou alvo de ataques, o que é inevitável em uma sociedade tão dividida. É impossível não ser criticada, mas é essencial continuar seguindo em frente. E aprender com o processo. Com o tempo, aprendi a distinguir críticas construtivas daquelas que visam apenas destruir.
DFG Olhando para o futuro, que aspetos do Brasil e das suas questões sociais e políticas ainda precisam ser investigados, considerando a sua trajetória extensa e as suas várias obras publicadas, das quais mencionamos apenas algumas? De que maneira a sua obra pode se articular com esses desafios futuros?
LMS Acredito que toda obra existe para, de alguma forma, suscitar outras e, eventualmente, ser superada. Se consegui despertar dúvidas ou motivar algumas pessoas, como muitos me dizem, a estudar História ou Antropologia, já considero uma vitória. Muitos temas podem ser revisitados. Eu, por exemplo, gostaria de ter mais conhecimento sobre a questão religiosa no Brasil, que tem ganhado muita força. Além disso, vivemos um momento diferente daquele em que me formei, em que se considerava necessário “falar por” outros. Hoje, especialmente no Brasil, as pessoas negras e indígenas estão chegando à universidade e não precisam mais que “falem por”, mas, no máximo, que “falem com”. Esses são novos desafios importantes, que vejo com grande alegria. O trabalho intelectual que se preza é sempre coletivo e está aí para ser superado por novos dados, novas preocupações e novas perguntas que fazemos ao passado e ao presente.
PFM Lilia, em nome da revista Análise Social, agradecemos profundamente pela sua partilha, erudição e pelos esclarecimentos que nos trouxe. Certamente, as suas obras e ideias continuarão a inspirar muitas pessoas no futuro, assim como nos inspiram no presente.














