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Finisterra - Revista Portuguesa de Geografia

versão impressa ISSN 0430-5027

Finisterra  no.91 Lisboa jun. 2011

 

ACTUALIZAÇÃO BIBLIOGRÁFICA


 

Cosmopolitismo e geografias da liberdade

 

 

André Carmo1

1 Geógrafo, CEG-IGOT-UL. E-mail: carmo@campus.ul.pt

 

 

David Harvey é, indiscutivelmente, o mais reconhecido geógrafo da actualidade. A sua trajectória ao longo das últimas quatro décadas assinalou alguns dos mais importantes marcos da ciência geográfica contemporânea. Apesar de a sua obra estar firmemente ancorada numa profunda reflexão em torno de conceitos cruciais para a geografia, há muito que transcende os seus limites disciplinares. Neste sentido, parece-nos pertinente olhar atentamente para a sua mais recente obra Cosmopolitanism and the Geographies of Freedom (CGF)2. Resultado de um conjunto de seminários proferidos por Harvey na Universidade da Califórnia ao longo do ano de 2005, CGF encontra-se dividido em dois grandes blocos, que parecem animados de uma tensão dialéctica, bem ao jeito da tradição marxista na qual o autor se filia.

No prólogo são expostas as motivações subjacentes à produção de CGF, nomeadamente, o facto de existirem um conjunto de valores políticos universais (ex: liberdade, cidadania, democracia) que, desprovidos de qualquer contextualização de natureza geográfica podem legitimar um conjunto de interpretações, leituras e até mesmo intervenções de natureza política condenadas ao fracasso. Um dos exemplos utilizados pelo autor para ilustrar o seu raciocínio é a visão anglo-americana, associada aos governos de George W. Bush e Tony Blair, de uma nova ordem mundial alicerçada numa defesa intransigente da democracia e das liberdades, sobretudo individual e do mercado, que legitimou uma intervenção militar no Iraque.

O primeiro bloco, designado Universal Values, é constituído por cinco capítulos. Harvey começa por relembrar a importância de Kant, não só para as actuais propostas cosmopolitas, mas também para a própria construção da geografia enquanto ciência. Infelizmente, as fundações antropológicas e geográficas da filosofia política kantiana repousam sobre preconceitos que, aqui e ali, como iremos ver adiante, reemergem nalgumas das mais sofisticadas leituras da actualidade.

Em seguida convoca um conjunto de escritores associados à tradição pós-colonial, para ajudar a desmontar o universalismo do projecto liberal. Defende que tanto a geografia como a antropologia são fortemente reprimidas na teoria liberal, por serem consideradas irrelevantes. Porém, no momento de aplicação concreta da teoria, mostram a sua relevância. Foi a universalização do projecto liberal que legitimou, nos processos de colonização, as estratégias paternalistas de infantilização dos autóctones e, no limite, a sua erradicação.

Harvey procede, depois, como que a uma actualização da análise do projecto liberal, através da exploração da sua formulação contemporânea – o neoliberalismo. Ao estabelecer um paralelo entre o avanço do projecto neoliberal e o crescimento das desigualdades sociais à escala global, põe a nu todas as suas fragilidades.

No quarto capítulo, elenca um conjunto bastante diversificado de propostas actuais para a construção do cosmopolitismo. Concebe três possibilidades através das quais o cosmopolitismo pode emergir: i) da reflexão filosófica; ii) do reconhecimento das necessidades sociais e humanas básicas; iii) de movimentos sociais comprometidos com a transformação do mundo. Harvey acredita que é esta última possibilidade que parece ter maiores possibilidades de sucesso e, por isso, reconhece o mérito das propostas de autores, como Boaventura sousa santos e iris Marion Young, que lhe atribuem um grande protagonismo.

Para terminar o primeiro bloco, Harvey recapitula lembrando que o liberalismo, o neoliberalismo e o cosmopolitismo são considerados válidos, independentemente de qualquer contextualização e consideração de natureza geográfica e antropológica. a esta fragilidade, acrescenta uma outra, relacionada com o enviesamento em termos de classe e etnia (isto é eurocentrismo e imperialismo) de que padecem. A incorporação de ambas as preocupações debate-se com duas barreiras principais, nomeadamente, o facto de comprometerem a utilização política de formas de oportunismo selectivo e a impossibilidade de aceitarem a introdução de entropia em modelos universais teoricamente “perfeitos” e sem lacunas. Porém, é na complexidade dos detalhes geográficos que se escondem os “demónios” que conduzem ao fracasso os projectos universalistas.

O segundo bloco, intitulado Geographical Knowledges, é constituído por quatro capítulos. No primeiro, Harvey parte do princípio de que é precisamente pela sua suposta banalidade que os conhecimentos geográficos devem ser problematizados. Em seguida, embarca numa digressão pela história da disciplina. A grande diversidade de tradições e perspectivas leva-o a dizer que a geografia tem um problema de identidade. Todavia, reconhece também que a pluralidade é um ponto forte e não uma fraqueza da disciplina.

Depois, apresenta uma proposta matricial de compreensão do espaço que articula duas dimensões. a primeira cruza espaço absoluto (fixo e imóvel), espaço relativo (processos e movimento) e espaço relacional (sonhos, memórias e fantasias). A segunda remete para o pensamento de Lefebvre e cruza espaço material (espaço percepcionado), representação do espaço (espaço concebido) e espaços de representação (espaço vivido). Mantidas em tensão dialéctica, as duas dimensões permitem-nos compreender a realidade de forma integrada e holística.

Posteriormente, explora o conceito de lugar, tentando clarificar alguma confusão conceptual que tende a permanecer no seio da disciplina. O aspecto mais relevante é o facto de considerar que a clássica dicotomia espaço-lugar só faria sentido se o espaço ao qual se opõe o lugar fosse absoluto. Ora, numa abordagem matricial, esta diferenciação não faz qualquer sentido pois nesse quadro espaço e lugar são inseparáveis, já que ambos são feitos de matéria e processos. Para Harvey, não se pode perceber o lugar sem perceber o espaço. Ao sugerir que the only concept of place that makes sense is one that sees it as a contingent, dynamic, and influential “permanence”, while being integrally contained within the processes that create, sustain, and dissolve all regions, places, and spacetimes into complex configurations (p. 194), está também a defender que políticas baseadas no lugar que não sejam capazes de olhar para o espaço estão fadadas ao insucesso.

Por fim, debruça-se sobre os trabalhos de Jared Diamond e Jeffrey Sachs, assinalando algumas das suas contradições e inconsistências, nomeadamente, no que diz respeito à apresentação de leituras bastante sofisticadas mas ancoradas num raciocínio do tipo determinista. Em ambos os casos, as actuais desigualdades geográficas, no desenvolvimento e na distribuição global da riqueza, são explicadas pelas condições ambientais. Práticas colonialistas, imperialistas e um capitalismo predador, tornam-se insignificantes quando comparadas com o legado ambiental. Por outro lado, mesmo um autor como Daron Acemoglu que critica Diamond e Sachs na base de que a desigualdade global está relacionada não com os factores geográficos mas sim com o funcionamento das instituições apresenta, segundo Harvey, uma argumentação frágil, na medida em que sugere que a geografia global se manteve praticamente inalterada nos últimos 500 anos e, para além disso, não reconhece que relativamente à distância e localização, a medida relevante seja o espaço-tempo dos transportes e comunicações e não a distância física do espaço absoluto.

Como resposta, Harvey defende que só podemos compreender a dialéctica da natureza, das transformações sócio-ecológicas, se utilizarmos como instrumento de análise o método dos momentos. Este gravita em torno de seis momentos: i) tecnologia; ii) natureza; iii) actividade produtiva; iv) reprodução do quotidiano; v) relações sociais; vi) concepções mentais do mundo. Todos devem ser considerados na sua relação com os outros e mantidos numa tensão dialéctica. Esta forma de compreender o mundo é, para o autor, a essência do materialismo histórico-geográfico, que deve ser incorporado em qualquer projecto cosmopolita.

CGF termina com um epílogo no qual a matriz dialéctica é testada através da análise de dois conceitos-chave para a teoria social contemporânea: indivíduo e estado. Não obstante, Harvey defende também que o quadro teórico apresentado pode ser também usado para explorar conceitos tais como cidade, região, bairro e comunidade.

Pensamos que com CGF, Harvey contribuiu, uma vez mais, para o desenvolvimento do quadro teórico da geografia, sem no entanto ignorar as implicações políticas inerentes a esse processo. Não obstante, devem salientar-se dois aspectos: i) a construção matricial do espaço-tempo, na medida em que permite ultrapassar algumas das limitações das dicotomias clássicas; ii) a ideia de abandono de formas de raciocínio causal mecanicista, em detrimento de formas de pensamento dialéctico em que cada um dos aspectos se relaciona com todos os outros, centrando a análise nos processos e não nos sujeitos/objectos em si mesmos.

 

 

NOTAS

2Harvey D (2009) Cosmopolitanism and the Geographies of Freedom, New York: Columbia University Press.

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