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Finisterra - Revista Portuguesa de Geografia
versão impressa ISSN 0430-5027
Finisterra no.94 Lisboa dez. 2012
ARTIGO ORIGINAL
Movimentos sociais pela sustentabilidade das cidades. O Movimento de Transição
Social movements for cities’ sustainability. The transition movement
Le mouvement de transition, un exemple de mouvement social cherchant à assurer la survie urbaine
Filipe Matos1 1Investigador do Núcleo NETURB – Núcleo De Estudos Urbanos – do Centro de Estudos Geográficos, Instituto de Geografia e Ordenamento do Território, Universidade de Lisboa. E-mail: filipematos@campus.ul.pt
RESUMO
Num contexto de crise global, em que o ritmo e a escala das mudanças parecem ser mais intensos e agressivos do que em qualquer outro período histórico, verifica-se a emergência de diversos movimentos sociais que questionam o actual modelo de desenvolvimento ocidental, orientado pelo crescimento económico, e que tendem a reflectir sobre novos indicadores de prosperidade. Este artigo pretende dar a conhecer à comunidade académica o Movimento de Transição, que reúne centenas de iniciativas comunitárias em todo o mundo, procurando dar respostas locais aos enormes desafios globais das alterações climáticas e do início do fim da energia barata, fomentando a resiliência das comunidades, e valorizando processos de localização económica. Neste texto, exploram- -se brevemente os pressupostos, a história, a visão e os contextos internacional e nacional do movimento.
Palavras-chave:Transição, movimentos sociais, resiliência comunitária
ABSTRACT
In a context of global crisis, in which the rhythm and scale of the changes seem to be more intense and aggressive than in any other historical period, we witness the emergence of social movements that challenge the current western economic growth model, reflecting new prosperity indicators and values. This article seeks to engage the Portuguese academic community in the transition movement, which gathers communityled initiatives that aim to respond to climate change and shrinking supplies of cheap energy, seeking to build resilient communities, and valuing process of economic localization. This text briefly explores the structure, history, vision as well as national and international panorama of this movement.
Keywords:Transition, social movements, community resilience.
RÉSUMÉ
Dans l’actuel contexte de crise, où les modifications paraissent plus intenses et plus agressives qu’elles ne le furent jamais, apparaissent divers mouvements sociaux mettant en cause l’actuel modèle de développement occidental basé sur la croissance économique et recherchant de nouveaux indicateurs de prospérité. On présente le Mouvement de Transition qui rassemble des centaines d’initiatives communautaires à travers le monde et qui cherche à faire face aux énormes défis du changement climatique et de la fin prochaine des énergies bon marché, en fomentant la résilience des communautés et en valorisant de nouveaux processus de localisation économique. Sont successivement considérés les causes, l’histoire, le point de vue et les contextes nationaux et internationaux du Mouvement.
Mots clés:Transition, mouvements sociaux, résilience des communautés.
I. INTRODUÇÃO
“O comportamento actual do colectivo humano mundial pode ser comparado com o comportamento de um piloto de um avião cheio de passageiros. Ao preparar-se para descolar da pista, reconhece que está demasiado nevoeiro e que não consegue vislumbrar o resto da pista. E qual será a opção do piloto, neste cenário de incerteza? acelerar ao máximo em vez de abrandar? O que está para lá do nevoeiro, nem o piloto nem os passageiros o sabem; pode ser um enorme muro.”
Luís Queirós, iniciativa de transição em telheirasi
O actual modelo ocidental de desenvolvimento, focado no crescimento económico e medido pelo PIB, está confrontado com transformações profundas, rápidas e à escala global, numa combinação sem precedentes históricos. É uma época de incerteza, de grandes riscos e desafios colocados à civilização humana como um todo, e a cada lugar em particular (Harvey, 2010). Neste contexto de crise, verifica-se a emergência de diversos movimentos sociais que questionam este modelo, e que tendem a reflectir e propor transformações nos valores de vivência social, nos indicadores de prosperidade e nos modos de vida em geral.
Na primeira secção deste artigo, expõem-se algumas evidências dos limites ao crescimento económico ad aeternum, bem como algumas consequências do modo de organização socioeconómico vigente sobre os ecossistemas terrestres, que tem provocado o aparecimento de diversos movimentos sociais político-ecologistas. Nas secções seguintes exploram-se as motivações para o aparecimento do Movimento de Transição, os seus conceitos-chave e a forma de organização em iniciativas de transição, bem como a operacionalização da Transition Network, entidade que facilita a coordenação do movimento. Este movimento, iniciado em 2006, no Reino Unido, reúne centenas de iniciativas de transição comunitárias distribuídas actualmente por 34 países em todo o mundo, incluindo Portugal. O movimento emerge como resposta comunitária local ao reconhecimento da urgência de actuar sobre dois desafios globais primários: o início do fim dos combustíveis fósseis baratos, e o impacto humano no ritmo das alterações climáticas planetárias. Assume-se como movimento pró-activo e catalisador, procurando novos paradigmas e visões alternativas de prosperidade, baseados na ética da permacultura, incentivando soluções locais numa perspectiva combinada entre bottom-up e top-down e tendo como conceitos-chave a resiliência comunitária e a localização económica. Os responsáveis pela Transition Network organizaram experiências partilhadas pelas diversas iniciativas locais, congregando-as, primeiro, num modelo de iniciativas de transição, numa perspectiva “como fazer na sua comunidade” (Brangwyn e Hopkins, 2008), e depois num leque de ingredientes, referentes a “aspectos a considerar para lançar e cimentar uma iniciativa” (Hopkins, 2011). Não pretendendo ser prescritivos de uma solução única, e sublinhando a importância dos diferentes contextos locais, ambicionam inspirar e catalisar a procura de soluções pela comunidade, adequadas a cada realidade local. Finalmente, apresenta-se a representação do movimento ao nível internacional, e reporta-se a expressão do movimento em Portugal, sobretudo com base na participação directa do autor no processo de constituição do hub português – ‘Plataforma Transição em Portugal’ – e na Iniciativa de Transição em Telheiras, de que é co-fundador.
II. LIMITES AO CRESCIMENTO
“In 1972, the now-classic book Limits to Growth explored the consequences for Earth’s ecosystems of exponential growth in population, industrialization, pollution, food production, and resource depletion. (…) During the past few decades, growth has become virtually the sole index of national economic well-being. When an economy grows, jobs appear, investments yield high returns, and everyone is happy. When the economy stops growing, financial bloodletting and general misery ensue.” Heinberg e Lerch, 2010: 3
À medida que se escreve este artigo, cresce o número de textos científicos, relatórios, livros, notícias, documentários, e conferências onde se acumulam palavras como “incerteza”, “crise”, “turbulência”, “insustentável” (Hirsch et al., 2005; NEF, 2006; PNUMA, 2010; Heinberg e Lerch, 2010; WWF, 2010; ONU, 2011; WBGU, 2011; UNEP, 2011; WEF, 2011). Ao mesmo tempo, assistimos à emergência de políticas nacionais e internacionais, tendencialmente austeras para a generalidade da população, e surgem novos movimentos sociais, numa convergência que aponta a necessidade de reflectir radicalmente sobre o modelo de organização da sociedade e a nossa tábua de valores orientadores. Como tão bem resume Holmgren (2002: xv), “the avalanche of evidence and information about the impermanence of almost every aspect of modern society and economy, especially due to looming environmental threats, undermines any sense of certainty about the continuity of everyday life. At the same time, accelerating technology and the emergence of endless new ideas, ways of seeing and being, movements, spiritual pathways and subcultures have expanded possibilities, hopes and fears beyond previously imaginable horizons”.
No relatório do World Economic Forum afirma-se: “the world is in no position to face major, new shocks. The financial crisis has reduced global economic resilience, while increasing geopolitical tension and heightened social concerns suggest that both governments and societies are less able than ever to cope with global challenges” (WEF, 2011:1). O mesmo relatório evidencia a escala sem precedentes e o impacto financeiro dos desafios que provavelmente enfrentaremos nos próximos dez anos, destacando-se, entre outros, as alterações climáticas, a crise fiscal, os conflitos geopolíticos, a volatilidade extrema de preços energéticos, a disparidade económica. Sublinha ainda que, num registo paradoxal, “as the world grows together, it is also growing apart», sendo que “there is evidence that economic disparity within countries is growing” (ibid:1). A Global Footprint Network (GFN) calcula anualmente o ‘Earth Overshoot Day’, representando simbolicamente o dia do ano em que a procura humana de recursos naturais ultrapassa a sua capacidade de reposição pelos ecos-sistemas. Em 2011, a GFN calculou que este ponto foi alcançado no dia 27 de Setembro e, em 2012, a 22 de Agosto. Tal significa que, materialmente, vivemos ¼ do ano em deficit ambiental, numa tendência em agravamento, evidenciando a insustentabilidade dos padrões de produção e consumo actuais, tomando em conta as devidas disparidades regionais. De acordo com o Living Planet Report 2010, da World Wildlife Foundation (WWF), seriam necessários entre 1,3 e 1,5 planetas para manter o ritmo de procura sobre os recursos naturais, sendo que para Portugal este valor é de 2,5 planetasii.
Numa perspectiva histórica e estabelecendo um paralelo com o nosso modelo actual, Jared Diamond (2008) relata-nos ecocídios civilizacionais: destruições inadvertidas dos recursos ambientais dos quais as sociedades dependiam, conduzindo ao seu colapso. Argumenta claramente que os ecocídios não são as únicas formas de colapso social, e apresenta-nos uma lista de factores que, no passado, conduziram sociedades à sua destruição, pela deterioração do ambiente. A estes, somam-se actualmente quatro novos riscos: i) alterações climáticas antropogé- nicas; ii) acumulação de produtos químicos e tóxicos no ambiente; iii) escassez de energia; iv) sobreutilização humana da capacidade fotossintética da Terra. Uma das particularidades do momento actual reside no facto de grande parte das decisões estruturais terem causas e/ou efeitos à escala planetária, uma condição sem precedentes na história humana.
Em Prosperity Without Growth, Tim Jackson (2009) retoma a linha de pensamento lançado pelo Clube de Roma na década de 70, reafirmando a impossibilidade física da nossa economia se expandir infinitamente num planeta finito, pelo simples motivo de a economia ser alimentada por recursos físicos. Indica que, neste momento, não sabemos (enquanto colectivo) como gerir uma sociedade sem crescimento económico, por causa da produtividade do trabalho: se queremos aumentar a produtividade, queremos fazer mais coisas com menos pessoas. Se a economia não cresce, deixa de haver espaço para essas pessoas, subindo as taxas de desemprego.
Para Jackson, o dilema está entre crescimento insustentável e decrescimento instável. O mesmo autor argumenta ainda que a noção de decoupling – separação entre crescimento económico e consumo de materiais – é muito atraente, pela valorização da eficiência, mas que historicamente a escala sobrepõe-se sempre à eficiência: desde 1990, embora sabendo que devemos reduzir as emissões de gases de efeito estufa, o consumo de combustíveis fósseis aumentou 40% ao nível mundial, inclusivamente nos países ocidentais.
Há décadas que cresce o volume de informação sobre uma série de problemas de escala planetária. No entanto, enquanto colectivo humano, parece-nos difícil compreender a sua interligação, e prevalece uma perspectiva céptica acerca desta informação, aumentando a probabilidade de cenários potencialmente catastróficos (Lovelock, 1995; Reeves, 2003; Heinberg e Lerch, 2010; Heinberg, 2011; Fleming e Chamberlin, 2011). O pressuposto de crescimento económico ad aeternum que pautou o modelo de desenvolvimento ocidental das últimas décadas está posto em causa, e ainda não sabemos exactamente qual será o novo. Afirmava João Ferrão, no encontro “Há Resiliência em Telheiras”iii, que as actuais gerações jovens dos países ocidentais se deparam com um sentimento de dupla perda: de um modelo de desenvolvimento passado que se esgotou; e de um futuro prometido que provavelmente não se irá realizar. Heinberg e Lerch (2010:6) explicitam quatro desafios a curto-prazo, a uma escala sem precedentes, para a civilização humana: i) reduzir rapidamente a dependência dos combustíveis fósseis; ii) adaptar ao fim do crescimento económico; iii) conceptualizar e providenciar um modo de vida sustentável para 7 mil milhões de pessoas; iv) lidar com as consequências ambientais de 100 anos de crescimento alimentado a combustíveis fósseis.
III. ACERCA DO MOVIMENTO DE TRANSIÇÃO
De modo alargado, o conceito de transição tem sido utilizado, nos últimos anos, por diversos discursos para além da Transition Network (NEF, 2010; WBGU, 2011) para caracterizar o período actual situado entre a falência de modelo socio-económico ocidental e a passagem para um novo modelo. Na conferência “Cidades em Transição”iv, João Ferrão afirmava que, “a crise actual não é sectorial, não é financeira, educativa ou produtiva; é uma crise de modelo: modelo de governação, modelo económico, modelo social, modelo produtivo, modelo de valores». E acrescentou que, neste momento, deparamo-nos com quatro transições fundamentais: i) a ética da sustentabilidade; ii) a era da sociedade pós-carbono; iii) novos direitos sociais; iv) uma socioecologia para novos padrões de produção e consumo. Afirmava, ainda, que as transições são particularmente evidentes em tempos de fim de ciclo e de crise, e que, nestas alturas, urge ser radical e ousado; isto é, analisar a raiz das questões para abordar o futuro. O reconhecimento de que esta não é uma crise sectorial leva-nos, também, a interligar a série de desafios que se colocam, expondo a necessidade de uma abordagem mais integral sobre a realidade.
Neste contexto, têm emergido diversos movimentos sociais que questionam, de formas semelhantes, o modelo de desenvolvimento dominante, e procuram um modelo sustentável, advogando novas estratégias de localização económica, diminuição do consumo energético e material, assim como a reconexão com o sistema ecológico que integramos. Muitos destes explicitam a importância do desenvolvimento pessoal e espiritual. Ao nível internacional, diversas instituições como a Resilience Alliance,a Association for the Study of Peak Oil and Natural Gas, a Soil Association, o Post Carbon Institute, a New Economics Foundation, e movimentos globais como o de Decrescimento, o Slow movement, o movimento de Permacultura, a Global Ecovillage Network e, em certa medida, os movimentos Occupy, Democracia Real Ya!, ou Indignados, dedicam pelo menos parte das suas actividades a estudar, criticar, propor, reivindicar e/ou implementar medidas concretas relacionadas com o conceito de “transição” para um novo paradigma socio-ecológico. Em Portugal, para além das expressões destes grupos e movimentos internacionais, há exemplos diversos de projectos de “transição” como o Prove, ao nível da redução das food-miles e da aproximação entre produtores e consumidores, o trabalho contínuo, em domínios distintos, de diversas associações, como a Quercus, a In Loco, ou a MUBi (associação para a Mobilidade Urbana em Bicicleta), ou ainda o grupo informal responsável pela Rede Convergirv, que se propõe mapear todos os projectos sustentáveis e inspiradores em Portugal, incluindo as iniciativas de transição. O movimento de permacultura tem também uma expressão assinalável em Portugal, em grande medida ligado aos neo-rurais, que contrariam a tendência de êxodo rural. É igualmente possível identificar diversas iniciativas no âmbito da economia social e solidária, sobretudo de iniciativa municipal, que incluem bancos de terras, bancos de tempo, ou hortas comunitárias, muitas delas desenvolvidas na óptica de “transição”.
O encadeamento lógico que fundamenta o manifesto do Movimento de Transição (Brangwyn e Hopkins, 2008; Del Río, 2009) pressupõe que: i) a vida com menores consumos energéticos parece inevitável, e que mais vale planear este decrescimento do que correr o risco de um colapso socioeconómico; ii) as povoações e comunidades não têm capacidades de resiliência necessárias para enfrentar um novo paradigma energético; iii) é urgente actuar, e é urgente actuar em conjunto; iv) esperar por consensos nacionais e internacionais (apesar de fundamentais) parece não ser suficiente (relembre-se o incumprimento do Protocolo de Kyoto, ou o fracasso das negociações de Copenhaga em 2009, Durban em 2011 e Rio+20 em 2012); v) a resposta a estes desafios constitui uma oportunidade para planear o decrescimento energético em conjunto e de modo criativo, concebendo modos de vida que reconheçam os limites biológicos do planeta, e que priorizem valores de bem-estar e justiça sociais sobre valores de crescimento económico. O Movimento de Transição parece, então, questionar o modelo social actual sob dois ângulos fundamentais: parece pouco provável que seja materialmente possível sustentar um modelo de crescimento económico contínuo; mesmo sendo materialmente possível, é questionável que esse seja o caminho desejado, quer por motivos de qualidade ambiental, quer por motivos de qualidade social. Como se configura então a visão alternativa de prosperidade e quais são os valores que a definem?
Se, por um lado, este é um movimento reactivo, também é um movimento pró-activo e catalisador. Reactivo, enquanto resposta da sociedade civil ao reconhecimento da urgência de acção sobre duas condições essenciais que têm e terão impactos estruturais a curto-prazo na nossa organização sócio-económica e nos nossos modos de vida, e que estão intimamente conectadas aos restantes desafios que enfrentaremos nas próximas décadas: o início do fim dos combustíveis fósseis baratos e o impacto humano nas alterações climáticas planetárias. Pró-activo, por procurar um paradigma e uma visão de prosperidade diferentes do que tem sido dominante nas últimas décadas. A alternativa surge sobretudo focada na acção ao nível local, dentro das comunidades, como parte possível e desejável da acção necessária para responder a estes desafios. Uma visão inspirada na permacultura (Mollison, 1988; Holmgren, 2002; Umman, 2011), que passa por dois conceitos-chave: resiliência comunitária e localização económica.
1. Resiliência comunitária e localização económica
O conceito de resiliência tem a sua origem nas ciências exactas, nomeadamente na física e na matemática, expressando a capacidade de um sistema ou material em recuperar a sua forma após uma determinada mudança ou perturbação (Teigão dos Santos, 2009; Hopkins, 2010; Barata-Salgueiro e Cachinho, 2011; MacKinnon e Derickson, 2012). Nas últimas décadas, o conceito tem sido transposto para diversas disciplinas, naturais e sociais, tendo experimentado um boom de utilização desde a sua aplicação por ecologistas na teorização e avaliação das capacidades de adaptação de ecossistemas e recursos naturais (Holling, 1973, Gunderson, 2000). Recentemente, a abordagem ecologista tem emergido em domínios como segurança e catástrofes, finanças, saúde pública, ou planeamento urbano (MacKinnon e Derickson, 2012). Na literatura ecologista, da qual derivam a maioria das interpretações das ciências sociais, o conceito tem sido abordado sob diferentes ópticas, dividindo-se sobretudo entre resiliência mecânica (engineering resilience) e resiliência ecológica (ecological resilience). Estas duas abordagens unem-se no pressuposto de existência de equilíbrio nos sistemas, e separam-se consoante a ênfase esteja, após uma perturbação, na capacidade dos sistemas em regressar ao estado anterior (mecânica), ou na capacidade de transformação para um novo estado de equilíbrio (ecológica). Enquanto a primeira se foca na recuperação e no regresso ao estado “normal” pré- -distúrbio (bounce back), enunciando um estado de equilíbrio único, a segunda foca-se nas capacidades de perseverança e de adaptação, anunciando a procura de “um novo normal” (bounce forth), e propondo a existência de diversos pontos de equilíbrio para um sistema (Holling, 1973; Davoudi, 2012). As perspectivas socio-ecológicas e evolucionistas da resiliência, ligadas a esta segunda perspectiva, tendem a questionar a ideia de equilíbrio e a propor uma visão do mundo assente em siste- mas complexos marcados pelos caos, incerteza e imprevisibilidade (Holling, 2001). Nesta linha, valoriza-se, por exemplo, no campo do planeamento urbano, a compreensão da complexidade espacial, da interconexão de sistemas socio-territoriais multiescalares e multitemporais, numa noção de planeamento interpretativo (interpretative planning), em detrimento da visão moderna que atribui um papel primordial do plano para a obtenção de uma “cidade equilibrada” (Pickett et al., 2004; Evans, 2011; Davoudi, 2012).
Diversos autores (Adger, 2000; Porter e Davoudi, 2012; MacKinnon e Derickson, 2012) têm dedicado particular atenção à transposição do conceito de resiliência para as ciências sociais, sendo possível salientar cinco aspectos principais. Em primeiro lugar, a dificuldade de, na sua interpretação, incluir variáveis de intenção e impacto da intervenção humana (engenho, tecnologia, previsão). Em segundo, o perigo do enfoque na auto-suficiência (self-reliance), que potencia uma desresponsabilização do Estado e de entidades de regulação, e uma legitimação de políticas neoliberais, que podem favorecer medidas de segregação e injustiça socioterritorial. Em terceiro lugar, a dificuldade em definir (quem define?) o que é “o... normal desejável”: uma sociedade pode ser resiliente, no sentido em que se adapta para condições melhores apenas para alguns. Em quarto lugar, deve salientar-se a inconveniência de definir as fronteiras do sistema social, podendo potenciar práticas de exclusão. E, por último, a dificuldade de integrar relações de poder e decisões políticas na equação. Resumindo, importa questionar: o sistema é resiliente a quê, para quem, por via de quem? se na literatura ecologista, a resiliência é um conceito apolítico, na organização social o aumento da resiliência de um espaço parece poder tornar outro menos resiliente, com claras implicações socioeconómicas e nas relações de poder.
O conceito de resiliência comunitária levanta as mesmas questões anteriormente enunciadas, somando-se-lhe a complexidade do conceito de ‘comunidade’, que pode variar em escala, forma organizacional, propósito, etc. Uma parte significativa da bibliografia (Godsschalk, 2003; Coles e Buckle, 2004; Landau e Saul, 2004; Norris et al., 2007), sobretudo a ligada à psicologia, à segurança e à prevenção, relaciona a resiliência comunitária com a preparação de uma comunidade para um estado de emergência. A concepção de resiliência comunitária utilizada pela Transition Network cruza-se mais com as perspectivas socio-ecológicas e evolucionistas, no sentido em que, após perturbações ao sistema, a ênfase se encontra no processo de transformação social, no sentido de maior justiça e equidade sociais para um estado socialmente mais favorável. Hopkins (2010:4) considera a resiliência comunitária, “not as a state of preparedness for disaster, but as a desired characteristic of a sustainable society. A more resilient community, it is argued, would be one more in control of its food and energy production, as well as being one that enables inward financial investment”. O mesmo autor argumenta ainda que, se as comunidades humanas são diferentes das comunidades ecológicas, no sentido em que conseguem antecipar e planear as mudanças, a resiliência social poderá avaliar a capacidade de uma comunidade responder às mudanças pela transformação para um novo estado, que seja mais sustentável em relação ao contexto desse determinado momento. O Community Resilience Manual (CCE, 2000:1) refere que uma comunidade resiliente será “one that takes intentional action to enhance the personal and collective capacity of its citizens and institutions to respond to, and influence the course of social and economic change”. Walker e Salt (2006) identificam sete factores de que depende a resiliência de uma comunidade: diversidade, variabilidade, modularidade, responsividade, capital social, transversali- dade governamental, e contabilização ecológica. Neste sentido, quanto mais diversa, menos controlada de forma centralizada, e modular uma comunidade for, mais resiliente será. É importante a existência de circuitos de resposta rápida, redes sociais fortes em que exista confiança mútua, estruturas de governação que consigam gerir um certo grau de redundância nas suas acções, e contabilização ecológica, no sentido de ter em conta o valor dos serviços dos ecossistemas na economia real.
Assim, o que a aplicação do conceito de resiliência às comunidades humanas traz de novo, é a sua abordagem holística, no sentido que “the key to sustainability lies in enhancing the resilience of social-ecological systems, not in optimising isolated components of the system” (Walker e salt 2006:141). O quadro I pretende, por um lado, ilustrar algumas das características de um sistema resiliente, aplicando-as a componentes de organização social; por outro lado, aponta acções que, de acordo com os discursos e práticas governamentais dominantes, tornam uma comunidade mais sustentável, e não necessariamente mais resiliente.
Desde a publicação de Small is beautiful – a study of economics as if people mattered (Schumacher, 1973), um número crescente de autores e pensadores (Odum e Odum, 2001; Hirsch et al., 2005; Hopkins, 2008; Heinberg e Lerch, 2010) têm argumentado que a previsível redução de recursos energéticos disponíveis e a consequente subida generalizada dos preços, terá como inevitabilidade o refortalecimento das economias locais. As diretivas europeias (Barca, 2009; CE, 2011) apontam também a crescente importância do contexto local no planeamento das ações. Reconhecendo riscos e “armadilhas” do enfoque na escala local (Mohan e Stokke, 2000; Brenner e Theodore, 2002; Swyngedouw, 2005; Purcell, 2006), abordagens como o Integrated Area Development (Moulaert et al., 2005), ou a política governamental britânica de New Localism (ODPM, 2005) têm debatido de modo diferente mas igualmente interessante a descentralização das arenas de decisão para as escalas mais adequadas, sendo frequente a valorização das especificidades e contextos locais. Neste sentido, torna-se importante distinguir ‘localização’ de ‘loca- lismo’. O último refere-se sobretudo a uma supervalorização do local, a que cor- responderá uma atitude quase cega sobre a visão de conjunto, favorecendo impreterivelmente o local. Por outro lado, o primeiro alude essencialmente à adaptação de cada actividade económica à escala mais ajustada e eficiente (Ferrão, 2002; Hopkins, 2010). O conceito de auto-suficiência (self-reliance), como referido anteriormente, encerra em si a possibilidade de desresponsabilização do Estado enquanto regulador e a legitimação de políticas neoliberais geradoras de processos competitivos e de segregação socioterritorial. Parece evidente que, mesmo cenarizando níveis óptimos de diversidade na produção local, cada comunidade não será capaz de ser auto-suficiente na produção de uma parte significativa de bens (actualmente considerados) essenciais, pelo que não será o conceito de ‘auto-suficiência’ que está em causa. Na visão da Transition Network, o objectivo não passará por criar comunidades-ilha, territórios isolados e fechados sobre si mesmos, mas sim por tornar mais eficientes os circuitos de produção e consumo onde e quando possível, ou seja, incentivar a produção, extracção e consumo local daquilo que é possível: vegetais e frutas, materiais de construção, têxteis, etc. Satish Kumarvirefere que “living in a small scale, a human scale, which is the idea of living in small towns, where you can live simple lives and have a sense of community, a sense of belonging somewhere… this only happens when we have small communities and we can communicate directly with the others. I’m not suggesting that people living in big cities should leave to small towns, but big cities shouldn’t be too arrogant; it is possible to have a small town kind of life within big cities: if you live in Camden Town [bairro de Londres], it is possible that that one is your community, while London is surely not”.
Resumidamente, a visão de ‘localização económica’ pela Transition Network significa, por exemplo, o fim dos “alhos-que-viajam-10000-kms”: apesar de compreensível segundo a lógica de mercado vigente, não parece razoável que cerca de 60% dos alhos consumidos em Portugal sejam importados da Chinavii, enquanto centenas de agricultores portugueses são estrategicamente pagos para não produzir, enfraquecendo a economia local, e provocando impactos ambientais desnecessários. Significa abertamente um convite à mudança de paradigma para formas de pensar e actuar sistémicas e holísticas, marcadas também por um consumo consciente, respeitando éticas ambientais, de produção, e de trabalho.
IV. A GEOGRAFIA DO MOVIMENTO DE TRANSIÇÃO E A SUAEXPRESSÃO EM PORTUGAL
1. Iniciativas de transição
Tendo consciência dos enormes desafios que, nas próximas décadas, exigirão soluções à escala global, as iniciativas de transição constituem respostas locais e comunitárias procurando estimular a resiliência das comunidades (Brangwyn & Hopkins, 2008). São iniciativas da sociedade civil, auto-organizadas da base para o topo, que procuram responder a estes desafios dentro das suas comunidades territoriais. O foco das iniciativas de transição é precisamente nos processos e acções que podem ser liderados e conduzidos pelas comunidades locais, ocupando o hiato entre as iniciativas que, enquanto indivíduos, podemos fomentar nas nossas casas, e as acções que necessitam de soluções regionais, nacionais e concertações internacionais, todas elas fundamentais. Reconhecendo a necessidade de intervenção a todas as escalas, as iniciativas de transição procuram catalisar a acção directa à escala local e indirecta nas restantes.
Eventualmente, de acordo com a dinâmica e objectivos de cada uma, as iniciativas de transição podem tornar-se agentes de localização económica e promotores de resiliência comunitária, criando empregos, laços e compromissos comunitários (Hopkins, 2008). De certo modo, estas iniciativas também tentam clarificar que, face aos desafios que enfrentamos, a acção cidadã não poderá passar apenas por mudar as lâmpadas, separar os lixos, ou votar periodicamente.
2. O Movimento de Transição e a Transition Network
Em 2005, na Irlanda, um conjunto de alunos universitários, sob orientação de Rob Hopkins, permacultor e professor no Kinsale Further Education College, criou um Energy Descent Action Plan para a cidade de Kinsale: um plano de redução do consumo energético para a cidade, que viria a ser oficialmente adoptado pela autarquia local. Este foi o ponto de partida para, em 2006, na pequena cidade de ToTNes, no Sudoeste do Reino Unido, um grupo comunitário que este permacultor entretanto integrara, lançar a iniciativa comunitária Transition Town ToTNes. Beneficiando da proximidade ao Schumacher College, um instituto de estudos pós-graduados em “Transformative Learning for Sustainable Living” e de uma comunidade com características particulares, a iniciativa rapidamente ganhou reconhecimento e apoiantes locais, incentivando a apropriação do conceito transition town – iniciativas de transição – por outras comunidades vizinhas, iniciando o Movimento de Transição (MT). No final de 2006, “com a missão de inspirar, encorajar, conectar, e apoiar as comunidades na adaptação do modelo de iniciativas de transição” (Brangwyn e Hopkins, 2008: 3), foi fundada a Transition Network (TN), com sede em ToTNes, enquanto órgão executivo do MT, e materializando a vontade de união e partilha entre as diversas iniciativas que entretanto tinham surgido no Reino Unido.
A TN está constituída enquanto charitable organization, uma ONG sem fins lucrativos, que conta actualmente com uma equipa de 12 profissionais, financiados por fundações britânicas. O papel da TN passa, então, por facilitar o trabalho em rede entre as várias iniciativas e hubs regionais e nacionais, assegurar a visão partilhada de propósitos e princípios e catalisar o crescimento do movimento. Para assegurar estas funções, desenvolveu uma estratégia que passa pela formação de membros das iniciativas, pela possibilidade de partilha em rede, pela produção de materiais de divulgação e ferramentas “como fazer na sua comunidade”, pela organização de eventos regulares do MT, pelo apoio e promoção de projectos de investigação académicos sobre temas estratégicos, e consultoria. Dos “cursos de transição” (o primeiro ocorreu em 2007) constam conteúdos de sensibilização para temas-chave (crise energética, alterações climáticas, etc.) e conteúdos de acção (noções de organização de grupos e eventos, mobilização, etc.) para incentivar a criação de iniciativas locais e criar identidade no movimento. A internacionalização do MT foi alimentada pela expansão destes cursos para diversos países do mundo, tendo sido, desde então, criados cursos para formadores ao nível internacional.
De forma a estimular a descentralização das decisões, a autonomia das iniciativas e a adaptação dos modelos de actuação aos contextos socioeconómicos locais, a TN organiza-se, ao nível internacional, em hubs nacionais e/ou regionais, aos quais são delegadas as funções anteriormente enumeradas. Desde 2008 a TN edita a série “Transition Books” (Hopkins, 2008; Pinkerton e Hopkins, 2009; Hodgson e Hopkins, 2010; North, 2010; Hopkins, 2011). Em 2009, foi realizado o documentário ‘In Transition 1.0’ e durante 2011 a sequela ‘In Transition 2.0’, que servem de montra dos princípios do movimento. Anualmente, tem lugar no Reino Unido a Transition Conference, com o intuito de reunir as iniciativas e facilitar a partilha de experiências, metodologias, sucessos e fracassos, de modo a enriquecer a aprendizagem de todos (Hopkins e Lipman, 2009). Uma das características do Movimento de Transição é o seu funcionamento em relativo open source, que o torna fluído, adaptável e em constante transformação. O website da TN funciona como plataforma de partilha pelas iniciativas e como fórum de discussão directa com os responsáveis da rede, onde são discutidos regularmente tópicos estruturais do próprio movimento, como, por exemplo, a redefinição de objectivos, princípios, estratégias de actuação, etc.
O carácter eminentemente prático constitui um dos principais atractivos do MT. As acções promovidas (quadro II) têm sido muito diversas, assumindo formatos e envolvendo áreas temáticas muito diferentes, sobretudo adaptando-se às realidades e necessidades locais.
Apesar da ainda escassa reflexão académica em torno do MT, é regular encontrá-lo referido sobretudo em artigos em torno do tema da resiliência nas ciências sociais ou de movimentos sociais ligados ao ambiente. Para além daqueles publicados pela TN, no Reino Unido e nos Estados Unidos da América existem alguns estudos que exploram a avaliação do movimento (Calfee e Weissman, 2012; Merritt e Stubbs, 2012; Richardson et al., 2012). Existem espaços de encontro online para “investigadores da transição”viii ixe no Reino Unido, o núcleo de Community and Transition Research da Universidade de Reading tem em curso projectos de investigação de avaliação ao movimento.
Em setembro de 2012, estavam registadas na TN 446 iniciativasx, distribuídas por 34 países, sendo expectável que o número de iniciativas auto-intituladas como pertencentes ao MT seja, no mínimo, o dobro (é o triplo, no caso português). Também é certo que parte das iniciativas registadas não têm, actualmente, uma existência ou actividade real. A distribuição mundial concentra-se sobretudo nos países anglófonos – Reino Unido, Estados Unidos da América, Austrália, Canadá – e, em menor escala mas em crescimento, por diversos países europeus – Bélgica, Holanda, Alemanha, Itália, França, Espanha, Portugal – e sul-americanos – Brasil, Argentina.
Neste contexto, o papel dos hubs nacionais na estrutura da TN tem ganho particular relevância, o que se traduziu na integração, pela primeira vez, do encontro dos hubs nacionais no programa da Transition Conference de 2012, reunindo representantes de 18 países, entre os quais Portugal.
3. O Movimento de Transição em Portugal
Pelo seu carácter tendencialmente horizontal e descentralizado, a recente história do Movimento de Transição em Portugal é sobretudo escrita pela actividade de cada iniciativa, e também pelos momentos colectivos partilhados pelos seus membros. O quadro III pretende agregar algumas datas relevantes para a história colectiva do movimento em Portugal, não obstante a possibilidade de omitir momentos e ocasiões por outros considerados relevantes. Nos primeiros buzz sociais da chegada do movimento a Portugal, inclui-se a criação, em 2009, da rede social online ‘Transição e Permacultura em Portugal’xi, na plataforma Ning, reunindo activistas e interessados nos movimentos de transição e permacultura. Durante 2010, formaram-se as primeiras iniciativas locais, e tiveram lugar o primeiro “curso de transição” e o primeiro encontro nacional entre as iniciativas então existentes. Em 2011 e 2012, sucederam-se cursos e encontros nacionais, onde se procurava essencialmente definir estratégias para potenciar sinergias em acções conjuntas. Em Maio de 2012, no decorrer do VI Encontro Nacional, oficializou-se, perante a TN, a criação do hub nacional, denominado ‘Plataforma Transição em Portugal’, com o objectivo de servir de interface às iniciativas de transição já existentes e emergentes no território nacional, dando-lhes apoio na promoção da resiliência local e coesão comunitária, e fazendo a ponte entre estas e a Transition Network.
É relevante assinalar a criação da Associação Transição e Permacultura Portugal (ATTP), em Janeiro de 2012, num processo paralelo ao decorrente dos Encontros Nacionais das Iniciativas de Transição, o qual culminou com a criação da Plataforma Transição Portugal. Ao contrário da última, a ATTP não pretende associar ou representar especificamente as iniciativas de transição, mas sim “facilitar a criação e desenvolvimento de produtos e serviços cuidadores das pessoas e do ambiente, apoiando iniciativas sociais e empresariais”xii.
Na figura 1 encontram-se mapeadas as iniciativas portuguesas registadas na TN (14) e aquelas que, não estando registadas, se assumem enquanto colectivos pertencentes ao movimento (26)xiii. O mapa distingue ainda entre aquelas que se fizeram representar nos encontros nacionais, e as que apenas se encontram registadas na Rede Convergirxive/ou na rede social online Ning ‘Transição e Permacultura em Portugal’, em Agosto de 2012.
Na apreciação desta figura 1 deve ser considerado o facto de cerca de ¾ do total das iniciativas serem grupos auto-intitulados enquanto pertencentes ao MT, não estando registadas na TN. Muitas iniciativas (incluindo algumas registadas na TN) encontram-se temporária ou permanentemente inactivas, ou com reduzidos níveis de actividade. Por outro lado, uma passagem pelo mapeamento disponi- bilizado pela Rede Convergir torna evidente uma quantidade maior de projec- tos com visões e propósitos semelhantes, enquadrados (ou não) noutros movimentos.
sendo de relevar a dispersão de iniciativas por quase todos os distritos nacionais, o padrão de localização segue sobretudo a dicotomia litoral/interior, com uma maior concentração nas áreas litorais, mais urbanizadas. A escala das iniciativas é bastante diversa, bem como o tipo de território em que se insere, sendo predominantes iniciativas em áreas urbanas e peri-urbanas. Com excepção das iniciativas localizadas na Área Metropolitana de Lisboa (AML) e no litoral alentejano, a grande maioria das restantes assumem uma escala mais vasta, muitas vezes indefinida, que varia entre o concelho ou o distrito, como Portalegre, Paredes, ou a ilha da Madeira. Na AML, onde se concentra uma parte significativa das iniciativas, existe uma presença mais forte das freguesias e bairros, como Telheiras, Linda-a-Velha, ou Janas. Existe também uma presença assinalável de instituições de ensino superior (Universidade do Minho, Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, e Escola de Medicina Tradicional Chinesa). Ausentes do mapa, encontram-se alguns grupos sem expressão territorial específica como o “Mães em Transição” ou o grupo de “Transição Interior”, que funcionam enquanto grupos informais, num caso de apoio à maternidade, no outro ao desenvolvimento pessoal e espiritual. À semelhança da realidade britânica, os projectos promovidos pelas iniciativas portuguesas têm abordado sobretudo temas relacionados com a produção e qualidade alimentar, segurança energética, mobilidade, reutilização de materiais, partilha de saberes e capacidades, entre outros (quadro IV).
Ao contrário do que acontece no Reino Unido, neste momento, praticamente não existem documentos publicados que relatem ou avaliem a acção das iniciativas de transição em Portugal ou que teorizem sobre os conceitos-chave em que se baseiam. O relatório de avaliação da iniciativa de Transição em Telheiras (Matos, 2011:121) afirma que “num contexto de necessidade de eficiência de recursos, o aproveitamento de experiência, conhecimento, motivação e vontade dos cidadãos parece ser uma estratégia altamente rentável”, e confirmou um relevante potencial de transformação liderado pela sociedade civil. As iniciativas de transição têm servido de estruturas de aprendizagem cívica, aprofundando capacidades de organização de eventos comunitários, e de plataformas de aprofundamento de laços de vizinhança, essenciais para uma maior resiliência comunitária e para a emergência de processos de inovação social (Moulaert et al., 2005; André e Abreu, 2006; Maccallum et al., 2009). Numa fase em que se começa a avolumar o número de eventos e grupos de acção semelhantes e, por vezes, redundantes, tornam-se evidentes as vantagens do trabalho em rede especialmente num contexto geográfico de área metropolitana. O mesmo relatório conclui que “as iniciativas de transição parecem necessitar de estruturas bem definidas, mais complexas do que apenas um grupo informal de vizinhos motivados», sendo prioritária “a criação e fortalecimento das relações comunitárias e a formação das capacidades de participação e co-responsabilização dos membros da comunidade” (Matos, 2011:122).
V. CONCLUSÃO
O Movimento de Transição, operacionalizado pela Transition Network, é um movimento social recente, que, após 6 anos de existência, conecta centenas de iniciativas comunitárias em diversos países no mundo, incluindo Portugal. Alguns estudos de avaliação dos impactos socioeconómicos das iniciativas de transição nas suas comunidades identificam diversos processos de empowerment pessoal, social e colectivo, gerando frequentemente processos de inovação social. Por um lado, são iniciativas que contribuem para a criação e aprofundamento de laços de vizinhança e solidariedade, respondendo assim a necessidades não satisfeitas ou a ameaças eminentes. Por outro lado, implicam também uma mudança das relações sociais e dos processos de governança territorial, no sentido em que incentivam ao envolvimento activo em processos de transformação e gestão socioterritorial. Tendo a sua génese no Reino Unido e maior expressão nos países anglófonos, parece evidente de que este se trata, por agora, de um “movimento ocidental”. No Reino Unido, diversas iniciativas evoluíram já para agentes de localização económica e promotores de resiliência comunitária, criando empregos e compromissos comunitários, e influenciando estratégias, políticas e medidas governativas, sobretudo (mas não só) à escala local. São exemplos os Energy Descent Action Plans,em Kinsale e Totnes, a circulação de moedas locais em Totnes ou Lewes, e a criação de uma cooperativa de produção de energia eléctrica de fonte solar em Lewes.
A compreensão e análise do Movimento de Transição serão incompletas se não se considerarem simultaneamente os projectos de diversos outros movimentos sociais, instituições privadas e públicas, que partilham as suas motivações e visão de prosperidade. Não esquecendo as abissais assimetrias regionais, os últimos 150 anos foram um período de crescimento a uma velocidade sem precedentes para o conjunto humano. Os mais diversos estudos evidenciam os efeitos nocivos e potencialmente catastróficos do crescimento exponencial da população, da mobilidade, ou de extracção, produção, e consumo de recursos naturais. A abordagem socio-ecológica da resiliência, utilizada pela TN, alerta para a necessidade de modos de planeamento ajustados a sistemas não-lineares, complexos e dinâmicos, em que a transformação constitui uma parte inerentes do sistema. No entanto, a transposição do conceito de resiliência para as ciências sociais e para a análise de comunidades humanas encerra em si diversas questões de difícil resolução: um sistema é resiliente a quê, para quem, e por via de quem? Como incluir questões de relações de poder, de intenção, engenho, e previsão nesta equação? À necessidade de aumentar a resiliência das comunidades, a TN alia a tese de localização económica, propondo que as decisões e os processos de produção e consumo decorram na escala mais adequada. Neste sentido, defende a recuperação de redes locais e regionais que se têm fragmentado nas últimas décadas. É questionável se muitas dessas redes são ainda recuperáveis, ou se ficaram definitivamente destruídas, em particular, por via de processos de urbanização rápida cuja matriz não inclui a relevância da comunidade local.
Em Portugal, o movimento tem-se desenvolvido desde 2010, pela criação das primeiras iniciativas locais, pela realização de encontros nacionais de iniciativas, e recentemente pela criação da Plataforma Transição Portugal, que pretende servir de interface entre as iniciativas nacionais, e entre estas e a Transition Network. Nesta fase, é sobretudo nas acções de cada iniciativa local que se pode compreender melhor os objectivos em causa. É frequente encontrar projectos locais relacionados com produção e qualidade alimentar, segurança energética, mobilidade, reutilização de materiais, partilha de saberes e capacidades, ou celebrações comunitárias. Identificado um potencial catalisador de processos de inovação social, torna-se, agora, pertinente desenvolver pesquisas transdisciplinares que, por um lado, preencham o hiato de informação e, por outro, contribuam para o desenvolvimento do próprio movimento, através de reflexões críticas sobre as acções, processos e conceitos fundamentais. Neste sentido, ao nível conceptual, é pertinente reflectir sobre a aplicação do conceito de resiliência às comunidades humanas, dadas as condicionantes iden- tificadas. A proposta de localização económica, é também relevante, especialmente numa fase de reforma administrativa nacional. Tem sido evidente a falta de informação mútua entre os que pretendem e estão motivados para participar, e os que exercem o poder de decisão. Neste sentido, seria interessante a criação de uma plataforma interactiva que cruzasse informação aprofundada sobre movimentos sociais, iniciativas públicas e privadas cujas missão e acções se debrucem sobre a sustentabilidade das cidades, de modo a potenciar sinergias a várias escalas e a evitar sobreposições desnecessárias. Fazem falta, em primeiro lugar, estudos de caracterização do movimento, das iniciativas locais, e dos agentes envolvidos, e de avaliação do retorno socioeconómico das acções das iniciativas para as comunidades locais. É importante, também, aferir factores de sucesso e insucesso das iniciativas locais, e relacioná-los com níveis de apropriação e adaptação deste modelo de transição pela cultura portuguesa, incluindo apropriações individuais, colectivas e institucionais.
AGRADECIMENTOS
O autor gostaria de agradecer aos Professores Isabel André e Herculano Cachinho pelo seu contributo geral na produção deste artigo, aos revisores anónimos pelas suas sugestões e comentários, e a Leandro Gabriel pelo seu contributo na elaboração cartográfica. Gostaria também de agradecer pessoalmente à Margarida, à Filomena, ao David, ao Luís e ao João pelo seu apoio durante todo o processo de investigação.
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Recebido: Junho 2012. Aceite: Dezembro 2012
NOTAS
iIntervenção oral no encontro “Há Petróleo em Telheiras!”, que teve lugar na Biblioteca Municipal Orlando Ribeiro, em Telheiras, Lisboa, a 27 de Outubro de 2010. iiO cálculo da biocapacidade planetária mede os recursos do país, expressando em unidade de área a capacidade agrícola, florestal, de pastagem e de construção de infra-estruturas. iiiIntervenção oral no encontro “Há Resiliência em Telheiras”, que teve lugar na Biblioteca Municipal Orlando Ribeiro, em Telheiras, Lisboa, a 29 de Junho de 2011. ivA conferência “Cidade em Transição” teve lugar no Auditório Afonso de Barros, no Instituto Superior para as Ciências do Trabalho e das Empresas, a 24 de setembro de 2010. vhttp://www.redeconvergir.net, acedido a 10 de Julho de 2012. viDocumentário ‘Town’, realizado em 2011 pela BBC, https://www.youtube.com/watch?v=r1y_6MT_M0c, acedido em 5 de Outubro de 2011. viiInformação extraída da Grande Reportagem “Cadeia Alimentar”, produzida pelo canal televisivo SIC, emitida a 23 de Novembro de 2009. viiihttps://www.transitionresearchnetwork.org, acedido a 18 de Setembro de 2012 ixhttps://www.transitionnetwork.org/forums/process/researchers, acedido a 18 de Setembro de 2012 xhttps://www.transitionnetwork.org, acedido a 14 de Setembro de 2012 xihttps://www.permaculturaportugal.ning.com, acedido a 11 de Setembro de 2012. xiihttps://www.tpp.pt, acedido a 11 de Setembro de 2012. xiiiIniciativas registadas na TN: Braga, Universidade do Minho, Paredes, Rio Tinto, Vila Nova de Gaia, Coimbra, Pombal, Caldas da Rainha, Portalegre, Sintra (Janas), Cascais, Linda-a-Velha, Telheiras, Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL), Évora, Aldeia das Amoreiras. Iniciativas não-registadas na TN, participantes em Encontros Nacionais: Figueira da Foz, Castelo Branco, Vila Franca de Xira, Algés, Oeiras, Escola de Medicina Tradicional Chinesa, Anjos-Graça, Olivais-Encarnação, Seixal, Melides, São Luís. Iniciativas apenas registadas na ‘Rede Convergir’e/ou na rede social ‘Transição e Permacultura’: Vila Nova de Famalicão, Vila Real, Torres Novas, Torres Vedras, Azambuja, Alverca, Odivelas, Corroios, Serpa, São Brás de Alportel, Tavira, Ilha de São Miguel (Açores), Ilha da Madeira. xivhttp://www.redeconvergir.net, acedido a 11 de Setembro de 2012.