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Finisterra - Revista Portuguesa de Geografia

versão impressa ISSN 0430-5027

Finisterra  no.104 Lisboa abr. 2017

https://doi.org/10.18055/Finis6972 

ARTIGO ORIGINAL


 

Planeamento e conflitos territoriais: uma leitura na ótica da (in)justiça espacial

 

Spatial planning and territorial conflicts: a reading from the spatial (in)justice perspective

 

Amenagement et conflits territoriaux, au point de vue de l’(in)justice spatiale

 

 

Margarida Pereira1; Filipa Ramalhete2

1Professora Associada do Departamento de Geografia e Planeamento Regional da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa.CICS.NOVA – Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH-UNL), Avenida de Berna, 26-C, 1069-061 Lisboa. E-mail:ma.pereira@fcsh.unl.pt

2Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais CICS.NOVA, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH-UNL), e Centro de Estudos de Arquitectura, Cidade e Território, Universidade Autónoma de Lisboa (CEACT/UAL). E-mail: framalhete@netcabo.pt

 

 

RESUMO

O caráter desigual da (re)produção e (re)apropriação do(s) território(s) induz conflitos entre os atores públicos e privados, pelo acesso diferenciado aos recursos territoriais. Na lógica do Estado Social as intervenções públicas visam a promoção da equidade nos territórios e nos cidadãos. Porém, estes objetivos muitas vezes não estão salvaguardados, pois a intervenção do Estado, influenciada pelos interesses dos grupos dominantes e pela escassez de recursos, nem sempre privilegia os territórios menos favorecidos. Das intervenções descritas emergem situações de (in)justiça espacial, que comprometem a equidade e a coesão, princípios subjacentes às políticas territoriais. O caso de estudo, localizado em contexto metropolitano, ilustra uma ocupação de génese ilegal, onde as carências urbanísticas se têm perpetuado, apesar das iniciativas da administração para as superar.

Palavras-chave: Justiça espacial; conflitos; território; atores; planeamento territorial.

 

ABSTRACT

The uneven nature of the (re)production and (re)appropriation of territories, through differential access to territorial resources, induces conflicts between public and private actors. In the Welfare State, public interventions aim to promote equity in territories and among citizens. However, these objectives are not always protected, for State action hijacked by the influence of dominant groups and the scarcity of resources, fails to privilege the less favoured territories. In the described interventions, spatial (in)justice emerges in situations which compromise equity and cohesion, implicit in the principles of territorial policies. The case study, located in a metropolitan context, shows an illegal occupation area, where urban deficiencies have been perpetuated in spite of the administration's initiatives to overcome them.

Keywords: Spatial justice; conflicts; territory; stakeholders; spatial planning.

 

RÉSUMÉ

L’inégalité de (re)production et de (ré)appropriation, résultant d’un accès différencié aux ressources territoriales, provoque des conflits entre acteurs publics et privés. Dans le cadre de l’État Providence, l’intervention de celui-ci devrait tendre à promouvoir l’équité entre territoires et citoyens. Mais cet objectif n’est pas toujours atteint, parce que cette intervention est influencée par les intérêts de groupes dominants et parce que le manque de ressources fait que les territoires les moins favorisés ne sont pas toujours privilégiés. Sont décrits des cas d’injustice spatiale, contraires aux principes d’équité et de cohésion, tels qu’ils sont proclamés par la politique territoriale en vigueur dans l’Aire Métropolitaine de Lisbonne, où l’on constate des occupations de genèse illégale et la perpétuation de carences urbanistiques, en dépit des initiatives administratives qui cherchent à en venir à bout.

Mots clés: Justice spatiale; conflits; territoire; acteurs; aménagement du territoire.

 

 

I. INTRODUÇÃO

O caráter desigual da (re)produção e (re)apropriação do(s) território(s), pelo acesso diferenciado aos recursos territoriais, gera conflitos implícitos entre os atores públicos e privados, com interesses, meios e calendários diferenciados. Na lógica do Estado Social, ao propósito das intervenções públicas está associada a promoção da equidade entre territórios e cidadãos. Porém, esta é, por vezes, comprometida não só porque o Estado intervém influenciado pelos grupos sociais dominantes, mas também porque a escassez de recursos tende a gerar opções estratégicas que privilegiam os territórios mais favorecidos, no pressuposto da obtenção/aproveitamento de economias de escala, geradoras de maiores dividendos para redistribuição posterior. Das intervenções acima referidas (públicas e privadas) emergem situações de (in)justiça espacial, territorialmente vincadas, que comprometem a equidade e a coesão, subjacentes nos princípios das políticas territoriais. A reflexão aqui apresentada centra-se na ocupação da Costeira de Loures, contígua a Lisboa, repartida pelos municípios de Loures, Odivelas e Amadora, em particular num troço sob jurisdição do município de Odivelas. É uma área urbana crítica, resultante de carências urbanísticas múltiplas (muito reduzidas condições de habitabilidade, défice de infra estruturas básicas, ausência de espaço público, deficiente acessibilidade e mobilidade) e sociais (guetização, marginalização, exclusão social, combinando pobreza com imigração, muitas vezes ilegal, de diferentes proveniências), para além dos riscos ambientais, sobre pessoas e bens, inerentes a deslizamentos de massa na vertente e de cheias nas áreas de baixa ribeirinha. As sucessivas iniciativas e procedimentos de gestão territorial ao longo de vinte anos têm sido incapazes de lidar com a fragmentação territorial e social, a desqualificação urbana, a segregação e o risco presentes, verificando-se o seu agravamento e perpetuando-se, neste território, o acesso desigual à cidade.

O artigo tem como objetivos: explorar o conceito de (in)justiça espacial na (re)produção do espaço urbano; tipificar as causas dos conflitos de base territorial e os obstáculos à sua superação; identificar o (re)posicionamento dos atores ao longo do tempo e a sua postura na gestão dos conflitos (causas, soluções), visando o combate à injustiça espacial.

Metodologicamente, a investigação está suportada: (i) na evolução da ocupação da costeira, em articulação com os fatores que a induziram; (ii) na apreciação do histórico das orientações de planeamento e das ações concretizadas pelos três municípios envolvidos; (iii) no posicionamento dos principais atores intervenientes no processo de reconversão dos bairros da Vertente Sul (autarquia e estrutura representativa dos proprietários locais), obtido através de entrevistas semiestruturadas. Foram realizadas 4 entrevistas (vereador com a tutela, técnico do Gabinete Técnico Local da autarquia, membro da Comissão que integra um elemento de cada uma das cinco Comissões de Administração Conjunta (CAC) e um técnico ao serviço das CAC). As entrevistas focaram três aspetos intrínsecos à justiça espacial, embora o conceito não tenha sido (intencionalmente) verbalizado: as causas dos conflitos territoriais inerentes à reconversão dos bairros, os obstáculos ligados à superação dos conflitos e as consequências do arrastamento da não reconversão. As entrevistas foram tratadas qualitativamente, extraindo-se as ideias estruturantes explanadas por cada interlocutor.

O artigo está organizado em três pontos, para além desta introdução. No ponto II - Problematização - discute-se a relação entre (in)justiça espacial, planeamento e conflitos territoriais e apresenta-se o modelo conceptual de análise. No ponto III – Costeira de Loures: da diversidade de soluções à perpetuação dos problemas – são expostas as características do território em estudo, as intervenções propostas e executadas pelos três municípios envolvidos, e a perspetiva dos atores intervenientes no processo de reconversão dos bairros da Vertente Sul (Odivelas). No ponto IV – Discussão dos Resultados e Conclusões – discutem-se os resultados e apresentam-se as conclusões.

 

II. PROBLEMATIZAÇÃO

1.(In)justiça espacial, planeamento e conflitos territoriais

O conceito de (in)justiça espacial parte de um julgamento das formas de (re)organização do espaço, alicerçado em modelos normativos aceites pela sociedade em contextos temporais e espaciais específicos. As injustiças estão associadas à auto-organização da sociedade, socialmente estratificada e com rendimentos diferenciados, e às dinâmicas de mercado. A intervenção do Estado social constitui um meio para superar aquelas limitações, quer através da regulação do uso social dos recursos, quer através de políticas (re)distributivas favoráveis ao desenvolvimento de uma repartição justa dos direitos constitucionalmente aprovados. Mas as atuações públicas, em nome do interesse coletivo, podem afetar interesses particulares. Assim, o conceito encerra grande ambiguidade pelo espectro alargado de entendimento associado: das interpretações individuais difusas às interpretações coletivas (socialmente aceites ou específicas de grupo(s). Por isso, Soja (2010) defende que a justiça espacial possui, para além da dimensão teórica, um potencial de análise empírica e de intervenção social e política, extensível à interpretação das políticas territoriais e à governança territorial.

A (in)justiça espacial pode ser abordada segundo duas dimensões (Young, 1990; 2000): estrutural e processual. A primeira foca as condições diferenciadas de acesso dos cidadãos aos recursos urbanos, donde resultam desigualdades sócio espaciais; a segunda centra-se na decisão “justa”, que emerge da negociação entre grupos sociais envolvidos subjacente a essa repartição. Nesta leitura, as soluções são desenhadas entre os atores interessados, nomeadamente os beneficiários da intervenção pública redistributiva, em vez de resultarem de imposições top-down. As duas dimensões complementam-se, já que uma aborda as políticas adotadas para assegurar a melhor repartição espacial dos recursos e a outra reflete sobre os intervenientes e as modalidades das tomadas de decisão.

A justiça espacial é o propósito das políticas públicas territoriais. Todavia, o seu entendimento pode corresponder a formulações muito diferenciadas, nomeadamente tratamento equitativo dos territórios, reequilíbrio das desigualdades com formas de discriminação positiva, não intervenção e acompanhamento das dinâmicas, criação de estruturas espaciais estáveis e sustentáveis, estabelecimento de dispositivos de regulação capazes de resolver injustiças, sem um ideal de organização territorial pré definido (Gervais-Lambony & Dufaux, 2009).

Segundo Soja (2010), adicionar o espaço à justiça territorializa as suas dimensões social e económica, potenciando um conceito agregador e uma base para a conjugação de esforços e definição de objetivos. Mas argumenta também que a questão central, mais do que a redução das desigualdades, assenta na afirmação das diferenças e no potencial dos atores (atingidos pela injustiça espacial) para formar alianças capazes de agregar interesses distintos, na luta pelo direito à cidade. Este potencial pressupõe o direito ao lugar, ao espaço público; à identidade coletiva; à mobilidade, acessibilidade e centralidade; à conversão da cidade marginal ou ilegal em cidade de cidadania; à cidade metropolitana ou plurimunicipal; à justiça local e à segurança; ao emprego; ao status político-cidadão para todos (Borja & Muxí, 2003), ou, na aceção de Fainstein (2009; 2010) o acesso à cidade, em condições de igualdade, diversidade e democracia.

Sendo o espaço um agente ativo na construção de geografias complexas, (re)produzidas coletivamente e potenciadoras de desigualdades, a injustiça espacial ocorre quando estas materializam discriminações físicas, sociais e económicas. Assim, defende-se que a justiça espacial deve ter em conta quer as condições de geração de riqueza e bem-estar social quer a sua distribuição, e está assegurada quando os territórios garantem igualdade de acesso a necessidades básicas como a habitação, serviços de educação e saúde, segurança, ambiente urbano condigno e oportunidades de mobilidade social. Em suma, justiça espacial assenta na garantia, a prazo, de que a pertença a um território não constitui um entrave à mobilidade social dos seus habitantes. Neste processo é imprescindível o envolvimento de todos no desenho das soluções (UN-Habitat, 2015).

O planeamento, como forma de intervenção pública no território e de (re)ordenamento espacial, deve ser analisado em função do contexto social e político em que se (re)produz (Fainstein, 2009). A abordagem racionalista continua a dominar a retórica e a praxis sobre o território, apesar das críticas à sua crescente ineficácia e ineficiência. No seu âmbito de ação, identificam-se duas perspetivas (Taylor, 1998): uma ligada à substância (o que é planeado) e outra ao processo (como é planeado). A primeira prende-se com a racionalização da organização do território e, à escala urbana, centra-se em planos definidores dos usos do solo. A segunda está associada aos processos de produção do território e à racionalização das decisões, com dois entendimentos: o planeamento é capaz de controlar os processos de decisão de forma compreensiva (racionalizados através de rotinas de procedimentos) (Faludi, 1973); e o planeamento é uma atividade incremental, imposta pela limitação de recursos (Lindblom, 1996).

Contudo, a progressiva erosão do poder do Estado há muito que compromete a visão racional-funcionalista: i) a sua desmultiplicação multi-escalar e multissetorial diversifica as visões públicas, dificulta intervenções convergentes, na ausência de estruturas de articulação robustas e agilizadas; ii) o acréscimo e a heterogeneidade de atores privados com influência nas decisões altera as relações de poder.

De facto, a abordagem advocatória (advocacy planning), pioneira na crítica à visão racionalista, enfatiza a pluralidade de interesses no(s) território(s) e contesta a neutralidade do planeamento (Davidoff, 1965). Questiona a função distributiva e defende que a solução para um território deve resultar do confronto de perspetivas dos grupos de interesses presentes.

Cumulativamente, as abordagens pós-modernistas enfatizam a multiplicidade sócio-espacial e a diversidade de identidades que convivem no território (Fainstein, 2009). Daí a emergência do planeamento colaborativo (Healey, 1997; 2003) que aposta no envolvimento dos (muitos) atores no desenvolvimento do território. O seu objetivo, enquanto atividade de intervenção espacial, passa pela reestruturação desses processos através da interatividade e do entendimento mútuo entre os grupos implicados num determinado território. Todavia, embora conceptualmente atraente, revela-se de operacionalização difícil e os resultados têm estado aquém do espectável. De facto, a integração dos atores não harmoniza interesses nem equilibra poderes e relacionamentos. As divergências de posicionamento tendem a converter-se em conflitos, insuperáveis por si só, exigindo estruturas de negociação e concertação, normalmente não (ou mal) acauteladas. Isto é, tão importante como modificar a conceção das políticas é a capacitação dos atores e das instituições para a sua execução.

Na ocupação do território, o conflito surge quando os intervenientes são interdependentes e os seus interesses e objetivos incompatíveis (Gonçalves, 2012). As causas mais comuns prendem-se com o acesso e a distribuição de recursos escassos, os valores e comportamentos dos intervenientes, o confronto entre objetivos de curto e longo prazo e entre prioridades de ação, a participação desigual (ou exclusão) na tomada de decisão. Os conflitos ganham complexidade diferenciada face à dificuldade para a resolução dos problemas implícitos: tratáveis, perversos e intratáveis. Os primeiros tendem a ser de fácil superação; os segundos são de formulação complexa, quase sempre sintomas de outros problemas e de resolução difícil (Rittel & Webber, 1973). Muitas vezes, convertem-se em problemas intratáveis, que persistem no tempo, caracterizados por: diferença de valores entre os atores afetados, reconfiguração permanente, ausência de uma autoridade com poder de atuação, falta de regras e modos de intervenção claros (Putnam & Wondolleck, 2003). São estes problemas que perpetuam muitos dos casos de injustiça espacial. A dinâmica do processo e a proliferação de novas interdependências podem tornar a sua resolução impraticável. Para superar este impasse, Gonçalves (2012, p. 28), na linha de outros autores, defende que a gestão de conflitos intratáveis passa pela sua decomposição em disputas passíveis de serem resolvidas, a qual carece de uma arbitragem.

2. Modelo conceptual de análise

O modelo conceptual de análise de conflitos territoriais na ótica da justiça espacial, marcada por contextos macro e micro, parte das ações de (re)produção e (re)apropriação de um território geradoras de dinâmicas de transformação diferenciadas que potenciam tensões e conflitos territoriais (fig. 1). Nesta mudança e interação permanentes confrontam-se como protagonistas:

 

 

(i) o território – nas suas múltiplas escalas, corresponde a um sistema complexo cuja dinâmica resulta da retroação que liga um conjunto de atores e o espaço geográfico que eles utilizam, ordenam e gerem (Moine, 2007, p. 45). O território desdobra-se em três subsistemas interrelacionados: o subsistema do espaço geográfico, diferenciado pelas suas características naturais e de posicionamento; o subsistema de representações do espaço geográfico, que influenciam os atores nas suas tomadas de decisão; o subsistema social de atores, que agem em função dos seus valores e posicionamento no sistema. A (re)produção evolui e reconfigura-se, funciona como agente ativo no processo de (re)apropriação e pressupõe escolhas (determinantes na condução do processo) e resultados (efeitos territoriais).

(ii) os atores públicos – estão dependentes da organização do Estado (maior ou menor desconcentração e descentralização), da repartição de atribuições e competências sobre o território, da articulação e coordenação (vertical/horizontal; setorial/territorial), da aplicação da subsidiariedade. O Estado formula direitos constitucionalmente assumidos (habitação, educação, saúde, …), materializados em princípios orientadores das políticas públicas (equidade, eficiência, coesão territorial, …). Porém, a conceção das políticas nem sempre traduz os princípios consagrados. E a sua execução, repartida por iniciativas públicas (por vezes a vários níveis) e privadas, raramente coordenadas, tende a comprometer a solução. Esta é a herança da visão racionalista mais focada na substância do que no processo. Este desajustamento crescente abre caminho para modelos colaborativos, quer entre os diferentes níveis da administração, quer integrando os atores privados nos processos de decisão.

(iii) os atores privados – caracterizados pela diversidade e heterogeneidade económica e social, com objetivos específicos, frequentemente complementares e antagónicos em simultâneo, agem individualmente, segundo valores, regras e agendas próprios, e de acordo com a informação de que dispõem para superar os seus problemas. A multiplicidade de interesses envolvidos e a interação desigual na disputa pelo(s) recurso(s) escasso(s), provoca tensões permanentes, que podem terminar em conflitos expressos, alguns intratáveis. O seu relacionamento pode ser de cooperação (interesses convergentes ou complementares) ou de afrontamento (interesses contraditórios). A passagem de atuações individuais para atuações coletivas exige a adoção de um processo colaborativo e incrementalista, que se robustece ao longo do tempo. O envolvimento contínuo tende ao reforço crescente de confiança entre os atores e à consolidação de comportamentos mais cooperativos (Ansell & Gash, 2008).

Os conflitos territoriais e as situações de injustiça resultam da interação entre os protagonistas descritos e as dinâmicas por eles induzidas, cabendo aos atores-chave, públicos e privados, na multiplicidade das suas atuações, as tentativas de resolução das desigualdades criadas. Neste contexto, a tomada de decisão é difícil e longe da racionalidade pretendida, no cruzamento da informação diferenciada (técnica, estratégicas, organizacional) detida pelos diversos atores. A injustiça espacial pode, assim, assumir formas distintas, consoante o tipo de desigualdade e conflitos que a originam. A sua transformação desejável em situações mais justas depende da identificação dos conflitos, das causas, dos bloqueios à sua resolução e da vontade (formal ou efetiva) dos atores, em articulação com o que o território permite, potencia ou inviabiliza.

 

III. COSTEIRA DE LOURES: DA DIVERSIDADE DE SOLUÇÕES À PERPETUAÇÃO DOS PROBLEMAS

1. O território

A área de estudo, na Costeira de Loures, estende-se da parte leste do bairro da Brandoa (Amadora) à Ponta da Agueira (Loures) (fig. 2). É uma unidade morfológica de relevos estruturais monoclinais, geologicamente instável. A ocupação, de génese ilegal, evoluiu no sentido descendente, do planalto (Lisboa) até ao sopé da costeira, apoiada numa rede viária incipiente. As características morfológicas (que vão desde os declives acentuados nas cotas mais elevados até zonas inundáveis nas margens das ribeiras) e geológicas não são propícias à ocupação urbana, por induzirem riscos naturais (instabilidade de vertentes, deslizamentos de terras, cheias rápidas) agravados pela ação antrópica (progressiva sobrecarga e impermeabilização do solo; alterações nos cursos de água por barreiras e estrangulamentos).

 

 

A mancha urbana surge nos anos 1960, cresce até aos anos 1980, e desde então ocorre apenas colmatação. Indissociável da suburbanização de Lisboa, a urbanização “clandestina” foi induzida por fatores diversos, nomeadamente: intensificação da industrialização e atração de mão de obra desqualificada do interior rural; debilidade da política de habitação social, incapaz de responder às necessidades de alojamento da população mais carenciada; especulação no mercado habitacional e de solo; retorno de milhares de famílias induzido pela descolonização (1975). Integrando bairros (clandestinos) de 1ª geração (Salgueiro, 2000), a Costeira de Loures é marcada pela excessiva ocupação dos lotes e pelo peso de edifícios plurifamiliares para arrendamento, escassas condições de habitabilidade e de salubridade, ausência de equipamentos e espaços pedonais de utilização coletiva. Muitos edifícios estão implantados em áreas de risco de deslizamento de massa e em zonas inundáveis, afetando parte considerável da população. A ocupação, organizada em “bairros”, é fragmentada e heterogénea, estando a maior concentração localizada no município de Odivelas, razão que justifica aqui o seu maior desenvolvimento

2. Opções de política de intervenção: do discurso à (não) operacionalização

A ocupação espontânea da Costeira de Loures, perante as deficiências urbanísticas acumuladas, suscitou múltiplas intervenções municipais reativas ao longo de vinte anos, de seguida sintetizadas (fig. 3).

 

 

2.1. Município de Loures

As orientações de planeamento surgem no Plano Diretor Municipal (PDM), de 1994. Na Planta Síntese de Ordenamento, a costeira apresenta um triplo zonamento: “Espaços Urbanos sujeitos à atribuição do estatuto de manutenção temporária”; “Espaços Urbanos sujeitos à atribuição do estatuto de manutenção temporária e, em determinadas áreas, cumulativamente sujeitos a condições de duvidosa segurança geotécnica ou sujeitos a inundações”; “Espaços não Urbanizáveis, Florestais de Proteção e Valorização Ambiental de proteção e enquadramento”. Segundo o regulamento, os “Espaços Urbanos sujeitos à atribuição do estatuto de manutenção temporária” devem ser objeto de estudos apropriados (hidrológicos ou geotécnicos), a escalas adequadas, para condicionar o uso e a transformação urbana. Até lá, a área fica sujeita a condicionamentos: não aprovação de loteamentos, possibilidade de as construções receberem o estatuto de “manutenção temporária”, licenciamento de novas construções dependente de um estudo geotécnico, nas áreas livres garantia de cobertura vegetal, não deposição de detritos sólidos e eficiente drenagem natural. O estatuto de manutenção temporária aplica-se a construções legais e ilegais cuja localização é considerada perigosa (sujeita a riscos naturais elevados). Nos espaços de manutenção temporária, quando os estudos geotécnicos determinem demolições, deve ser estabelecida prioridade para os realojamentos e, uma vez concretizados, eliminadas as construções libertadas.

O município perdeu parte da jurisdição da costeira com a criação do município de Odivelas. Os estudos propostos acabam por não avançar. A construção de um eixo rodoviário regional (troço da CRIL e túnel do Grilo) impõe algumas demolições e realojamentos (ex. Casal dos Cucos). A recente revisão do PDM (2015) prevê alterações ao regulamento para integrar mais Áreas Urbanas de Génese Ilegal (AUGI) no processo de reconversão.

2.2. Município de Odivelas

Criado em 1998, passa a gerir o troço da costeira com mais bairros em regime de manutenção temporária: Cassapia, Quinta da Serra e Quinta da Várzea, separados pela Calçada de Carriche da Vertente Sul (Vale do Forno, Quinta do Zé Luís, Encosta da Luz, Serra da Luz e Quinta das Arrombas). Mas só os bairros da Vertente Sul merecem atenção prioritária da autarquia, estimulada pela maior mobilização de uma parte dos residentes em habitação própria e por aí subsistirem pretensões de loteamento por parte dos proprietários do solo/loteadores, apesar das condicionantes referidas. Em sentido contrário atuam os proprietários de habitação e de espaços para atividades económicas para arrendamento segundo um regime de economia paralela.

Os bairros da Vertente Sul são contíguos, mas fechados, sem articulação, com dimensão, densidade e intensidades de ocupação diferenciadas.

Em 2011 havia 3 765 alojamentos em 1 205 edifícios. A evolução 2001-2011 mostra que os primeiros aumentaram 10,6% e os segundos diminuíram 1,5%. A população também diminuiu entre 2001 e 2011 (-5,7%), passando de 8 275 para 7 807 habitantes. Porém, este dado não corresponde à ocupação efetiva, existindo imigrantes ilegais em número desconhecido. A distribuição espacial da população é muito desigual, concentrando a Serra da Luz e o Vale do Forno 70% dos residentes. Segundo o Diagnóstico Social de Odivelas (CMO, 2005) quase 50% dos residentes são estrangeiros.

Em Odivelas permaneceu eficaz o PDM de Loures, até à aprovação do respetivo PDM (2015). O município adjudica, em 2001, um estudo geológico-geotécnico, para avaliar a estabilidade da Costeira na área da Vertente Sul de Odivelas. Em função do declive do terreno de implantação das construções, o estudo distingue três situações na perspetiva da sua manutenção: “zonas aptas” (genericamente declives até 15%), “não aptas” (genericamente declives superiores a 50%) e “aptas após intervenção” (genericamente declives entre 15 e 25% e depósitos até profundidades máximas de 19m – sujeitas a medidas de estabilização apropriadas) (Duarte, 2011), mas as conclusões são mantidas reservadas. Paralelamente, delimita os bairros de construção e manutenção temporária como AUGI, ao abrigo da Lei nº91/95, de 2 de dezembro. A iniciativa leva os proprietários à eleição das comissões de administração conjunta (CAC)i, lideradas por proprietários senhorios de edifícios plurifamiliares, e à sua quotização, em função do número de lotes ou área detida. As CAC contratam uma equipa técnica de apoio (um solicitador e um arquiteto) e são elaborados os projetos de loteamento de cada bairro, dando seguimento às orientações do quadro legal aplicável. À Câmara Municipal são entregues as plantas síntese dos loteamentos e a informação correspondente - levantamento topográfico do bairro, lista dos proprietários das parcelas, tipo de ocupação (habitação unifamiliar ou edifício plurifamiliar de rendimento), certidões de registo predial dos edifícios abrangidos.

Para gerir o processo de reconversão, a autarquia cria um Gabinete Local (2006) e, dois anos depois, delimita os bairros como Área Crítica de Recuperação e Reconversão Urbanística (ACRRU), pois esta classificação favorece o recurso a mecanismos como a expropriação e o direito de preferência. Todavia, os custos inerentes inviabilizam a sua utilização. No mesmo ano (2008), tem início a elaboração do Programa de Ação Territorial (PAT) (definição da estratégia de atuação e prioridades) e do Plano de Urbanização (PU). Na sequência da recusa, por parte da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento de Lisboa e Vale do Tejo, de uma candidatura às Parcerias para a Regeneração Urbana (Política de Cidades), no âmbito do QREN 2007-2013, justificada pela ausência de um instrumento de gestão territorial, é lançado o PU. Iniciado o plano, a segunda candidatura é aprovada (2009) e o seu Programa de Ação (baseado nas orientações do PAT) prevê, para três anos, quer intervenções de requalificação urbana e inclusão social, quer metodologias de participação pública e práticas de governança, para o envolvimento da população na reconversão. As restrições financeiras da câmara municipal levam à celebração de um contrato para planeamento com as CAC para suportar o custo de elaboração dos planos (Duarte, 2011), facto que altera a relação de poder autarquia/CAC. A falta de financiamento da autarquia compromete ainda algumas das ações, impasse só superado pela disponibilização do capital pelas CAC. São subsequentemente concretizadas ações pontuais de qualificação do espaço público e das linhas de água, criados alguns equipamentos (nomeadamente o Centro Comunitário no Vale do Forno), construída uma via de articulação dos bairros (única intervenção com carácter estruturante) e envolvidas as comunidades locais no processo de participação. Todavia, as questões essenciais persistem por resolver. Parte da população, em particular os residentes proprietários de habitação própria, não vê as suas expetativas correspondidas. O desânimo e a descrença entre os agentes envolvidos crescem e surgem sinais de desmobilização entre proprietários dos edifícios implantados nas áreas mais instáveis, que deixam de pagar as quotas a que estão obrigados. Estes são, sobretudo, os proprietários instalados em áreas afetadas por riscos ambientais e com edifícios sujeitos a ameaça de demolição (aplicação do regime de manutenção temporária), sem solução alternativa à vista (relocalização do lote ou realojamento). Em 2011, a Vertente Sul de Odivelas é classificada como Área de Reabilitação Urbana (ARU), substituindo a ACCRU, mas sem resultados práticos. O Plano de Urbanização continua em elaboração (dezembro, 2016). Entretanto, em 2015 é aprovado e publicado o PDM de Odivelas. Este integra a Vertente Sul numa Unidade Operativa de Planeamento e Gestão (UOPG – 2), para a qual determina a realização de um instrumento de gestão territorial (enquadramento do PU em curso?).

2.3. Município da Amadora

Na Amadora, só parte do bairro da Brandoa ocupa a Costeira. O PDM (1994) revoga o Plano de Urbanização da Brandoa/Falagueira, concluído em 1974, e define aí uma UOPG. Em 1996, são lançados planos de pormenor (PP), para regular a constituição e legalização de lotes e o licenciamento de novas construções. A candidatura ao Programa Integrado de Qualificação das Áreas Suburbanas da AML (PROQUAL) permite criar uma centralidade de bairro (CMA, 2001). O seu plano de ação, executado entre 2003 e 2008, define equipamentos (nomeadamente um centro escolar, um espaço cultural e um mercado), um jardim e medidas de beneficiação do espaço público. Para a área com risco de instabilidade de vertente (costeira), é proposto um Parque Urbano, recusado pelo custo de realojamento das 259 famílias afetadas. Este projeto é abandonado, com sentimento de satisfação da população, que sempre contestou a saída.

A par das iniciativas de planeamento descritas, a pressão dos moradores junto dos três municípios, reivindicando infraestruturas básicas (água, eletricidade, saneamento, iluminação pública, acessos) induziu a progressiva instalação das redes essenciais, embora de modo casuístico e progressivo.

3. A(s) perspetiva(s) dos atores da Vertente Sul: decisores, técnicos e proprietários

A compreensão da persistência de uma situação urbanística muito deficitária nos bairros da Vertente Sul e dos conflitos ligados à ocupação e reconversão exige a auscultação dos principais intervenientes, suportada em entrevistas semiestruturadas, a dois grupos de atores: administração local - executivo (Adm-E) e Gabinete Técnico Local do município (Adm-GTL) e representantes dos proprietários, na figura da Comissão que integra um elemento de cada uma das 5 CAC existentes (C-CAC) e sua estrutura técnica (CAC-T) (comum a todos os bairros).

A abordagem foca três questões cruciais: Quais as causas dos conflitos territoriais associados à reconversão dos bairros? Quais os obstáculos à superação dos conflitos? Quais as consequências do arrastamento da não reconversão para as partes envolvidas?

Quais as causas dos conflitos territoriais associados à reconversão dos bairros?

As causas apontadas agrupam-se em dois tipos: quadro legal e capacitação dos atores.

Quadro legal: a origem do conflito remonta à génese do bairro, à margem da lei urbanística vigente (AdmE; Adm-GTL). A divisão da propriedade não cumpre a regulamentação do loteamento urbano (que impõe regras ao loteamento e urbanização/infra estruturação/cedências para usos de utilização coletiva). Os “lotes” não têm registo nem as construções licença camarária. O fracionamento da propriedade maximiza a sua utilização, inclui as áreas sem aptidão para a construção, reduz o espaço público a uma rede viária irregular e exígua, omite áreas para equipamentos de utilização coletiva. Quando a ocupação (orgânica) ganha dimensão, a pressão dos moradores (representados pelas respetivas comissões de moradores) leva à infra estruturação básica pela autarquia, o que estimula a densificação, que as autoridades locais não controlam (CAC-T). A lei das AUGI impõe às autarquias a sua integração (em perímetros urbanos) e reconversão, e envolve os proprietários afetados, organizados em CAC, estruturas que ganham protagonismo no processo, quer pelos recursos financeiros que passam a dispor, quer pelo suporte técnico, que lhes permite uma interlocução mais equilibrada com a administração (C-CAC e CAC-T). Responderam às exigências do novo processo (formalização dos projetos de loteamento e disponibilização da informação complementar pertinente, aplicação de quotizações, etc.) e, por isso, acusam a autarquia de falta das subsequentes respostas definitivas (C-CAC). A reconversão é complexa e a intervenção exige recurso a soluções com custos que a administração municipal não suporta (expropriações, realojamentos, intervenções estruturais de ordenamento, etc.). A estratégia de integrar todos os bairros no mesmo processo (tratar todos do mesmo modo e em simultâneo) revela-se uma dificuldade adicional, pois os problemas têm contingências diferenciadas (dimensão, gravidade, oportunidade de resolução, diferentes protagonistas) (Adm-GTL).

As deficiências urbanísticas (e ambientais), múltiplas, estão associadas ao desadequado ordenamento urbanístico, ao subequipamento, à exiguidade do espaço de vivência coletiva e à desqualificação urbana, o que justifica o sentimento de exclusão da cidade (CAC). Estas deficiências decorrem da apropriação espontânea, produto da adição de decisões individuais: a ocupação acontece sem regras, resultando malhas urbanas desorganizadas, por vezes caóticas, em estádios diferenciados de construção, muitas em áreas de risco (Adm-GTL). A aprovação e financiamento de um plano de ação no âmbito das Parcerias para a Regeneração Urbana permite apenas intervenções de qualificação pontuais, perante a persistência das deficiências estruturais (Adm-GTL).

Capacitação de atores: a regulamentação da transformação do uso do solo (classificação e qualificação) e da urbanização e edificação são competências da administração local que, tendo de salvaguardar o seu cumprimento, mostra sempre uma atitude de reserva perante as dificuldades (ou mesmo impossibilidade) de ajustamento ao quadro regulamentar aplicável (Adm-E). Porém, a instalação do Gabinete Local traduz a vontade da autarquia na resolução do problema, facilitando a aproximação e interlocução entre administração e administrados (Adm-E). Os proprietários reconhecem a ocupação ilegal e mostram disponibilidade para suportar os custos da legalização dos imóveis e da requalificação dos bairros, mas subestimam as situações de risco e não cedem no que respeita à possibilidade de perda dos bens patrimoniais (CAC-T).

Até à constituição e capacitação das CAC, a autarquia é hegemónica no processo, dentro do cumprimento das políticas da Administração Central. Mas as estruturas representativas dos proprietários passam a atores-chave e redefinem as relações de poder entre atores: dispõem de informação relevante, de recursos financeiros que gerem com autonomia e agilidade, de apoio técnico que lhes permite um diálogo com os técnicos municipais (C-CAC). Resistem a soluções que tomam como penalizadoras, em particular as ligadas com os edifícios em áreas de “risco”, aos quais a autarquia recusa a legalização. A CAC-T procura soluções mais flexíveis e regras menos penalizadoras dos interesses dos seus clientes, no sentido da inclusão do maior número de edifícios no processo de reconversão.

Quais os obstáculos à superação dos conflitos?

Os obstáculos apontados pelos dois grupos de interlocutores são diferenciados: técnico/legais, financeiros e de mediação, para a autarquia (Adm-E; Adm-GTL); não reconversão integral (que estão disponíveis a financiar) e pouca abertura negocial da autarquia, para os proprietários (C-CAC).

O conflito inerente à génese dos bairros é, inicialmente, menorizado pela Administração local. Seguiram-se intervenções pontuais (introdução de algumas infraestruturas, melhoramento dos arruamentos principais). Em 1995, a política da Administração Central sofre uma mudança, ao impor um modelo de reconversão das AUGI. Os casos de reconversão inviável (edifícios ilegalizáveis ou sujeitos a demolição, por estarem implantados em áreas de risco) induzem conflitos entre o município e os diferentes proprietários. O município está obrigado ao cumprimento da legalidade urbanística e não pode legalizar situações irregulares; acresce que não tem recursos para proceder a realojamentos. A par, proprietários de prédios de rendimento, não querem prescindir dos benefícios económicos em economia paralela, e os proprietários de habitação própria rejeitam o conceito de realojamento.

Para os casos com potencial de reconversão, os instrumentos adotados têm tramitação morosa e compreensão difícil, e não viabilizam soluções em tempo útil, arrastando os problemas, que vão aumentando de complexidade (C-CAC; CAC-T). A autarquia está subordinada a um enquadramento legal cuja aplicação não controla e é confrontada com alteração da legislação, que força recuos e impasses nos processos, gera ou protela o conflito, pela ausência de resultados. A escassez de meios para operacionalizar reconversões em grande escala ou acionar mecanismos adequados (expropriações) induz a descredibilização perante os cidadãos e a desmobilização dos técnicos (Adm-GTL). Estes constrangimentos anulam o carácter prioritário destas intervenções no conjunto da estratégia de intervenção municipal (Adm-E).

A constituição das CAC criou interlocutores com poder financeiro (quotizações anuais para financiar a reconversão), capacidade para definir uma agenda própria e interferir no processo de decisão (equipa técnica). Estes requisitos impostos por lei às CAC conferem-lhe um poder efetivo de contra-argumentação das propostas da autarquia, potenciando discordâncias sobre a solução e o modus operandi que, com frequência, se convertem em conflitos intratáveis. O confronto de visões técnicas e políticas sobre a problemática (por exemplo diferente entendimento do conceito de “risco”) é comum, suscitando impasses de superação por vezes impossível, onde as tentativas de concertação são ineficazes, por ausência de uma estrutura de mediação. A solução não se desenha, mas a resistência às demolições é conseguida (CAC-T; Adm-GTL).

Quais as consequências do arrastamento da não reconversão para as partes envolvidas?

As consequências do impasse na reconversão são diversas, mas sentidas de forma diferente pelos intervenientes: para a administração local persistem áreas urbanas críticas, com agravamento dos problemas que afetam a imagem do município (Adm-E); para os proprietários perpetua-se a desqualificação e o estigma social (C-CAC). Segundo estes, a autarquia só cria obstáculos e mostra incapacidade para concretizar soluções; esta não vê nos proprietários parceiros para superar os problemas. O desgaste processual conduz à descredibilização mútua e à desacreditação da eficácia de novas soluções ou negociações, reflexo de valores antagónicos e comportamentos divergentes face ao território. Mas as situações de risco e a ausência de qualidade urbana persistem. As intervenções pontuais (por exemplo, as concretizadas do plano de ação) trazem benefícios, embora não induzam alterações estruturais (Adm-GTL).

Embora o empoderamento dos proprietários seja um avanço na perspetiva colaborativa, este equilíbrio de forças parece ter enfraquecido a desejável liderança administrativa e ainda não conduziu a benefícios na relação de poder dos atores, não estando criadas estruturas de mediação. A precaridade local persiste, manifestada pela permanência de construções em áreas de risco e pela ausência de ambiente urbano de qualidade, equipamentos públicos básicos e acessos adequados. Porém, esta marginalização favorece os proprietários para quem a exclusão espacial, manifestada na fixação de populações em situação ilegal ou sem capacidade de mobilidade económica e social, representa a condição para a valorização da sua propriedade e respetivo rendimento (Adm-GTL).

 

 IV. DISCUSSÃO DOS RESULTADOS E CONCLUSÕES

A Costeira de Loures tipifica um problema urbano complexo, associado a desigualdades socio espaciais que se evidenciam: (i) na sua génese - construção em áreas sem aptidão para a urbanização, e por isso subvalorizadas no mercado fundiário; e (ii) ocupação - deficientes condições de habitabilidade, insegurança pela ocupação de áreas de risco, precaridade das acessibilidades, défices de infra estruturas e equipamentos básicos. Apesar das semelhanças entre as áreas edificadas, as três autarquias envolvidas adotam estratégias diferenciadas, todas com pouco sucesso. O planeamento municipal, apoiado na figura de Plano Diretor Municipal, desencadeado nos anos 90, apoiado no modelo racionalista, parte de pressupostos utilizados na cidade formal, evidenciando desfasamentos entre objetivos (ambiciosos), condições de operacionalização (pouco explicitadas) e resultados (intervenções exíguas e pontuais). A morosidade das intervenções públicas, ao longo das quais se multiplicam os instrumentos, sempre na ótica municipal, refletem uma administração ineficaz, “enredada” na gestão (burocrática) dos processos e das suas dificuldades, sem abertura à cooperação através de iniciativas intermunicipais ou à coordenação das suas ações internas (por exemplo entre o planeamento e a gestão). Os cidadãos, utilizando estratégias de confronto, apoiadas em estruturas representativas informais (comissões de moradores), vão conquistando melhorias básicas, que representam benefícios qualitativos relevantes face à debilidade da situação de partida, menosprezando o modo como são obtidas. Os conflitos vão sendo geridos casuisticamente pelas administrações locais, mas o problema urbano persiste e vai ganhando novos contornos (agravamento da degradação dos imóveis, crescente instabilidade da costeira e aumento do risco, novas dinâmicas sociodemográficas – envelhecimento dos residentes, reforço e diversificação da população migrante), que exigem atuações mais abrangentes e integradas, mas de alcance cada vez mais longínquo.

Uma análise mais detalhada da Vertente Sul, no município de Odivelas, permite identificar a origem diversificada dos conflitos associada ao quadro legal (génese ilegal, incumprimento das normas urbanísticas, ocupação de áreas de risco) e à capacitação dos atores envolvidos (obrigatoriedade de integração das AUGI na política municipal de ordenamento a partir de 1995, inclusão dos representantes das CAC como interlocutores e com poderes técnico e financeiro efetivos). Neste caso, os principais obstáculos à superação dos conflitos resultam das debilidades socio-urbanísticas destas AUGI, que influenciam o comportamento dos interlocutores-chave: (i) a autarquia enfatiza as questões técnico/legais (em particular intransigência nas ocupações em áreas de risco elevado) e financeiras (incapacidade para mobilizar os recursos associados aos realojamentos exigidos); (ii) os proprietários exigem a reconversão integral (havendo divergências sobre os seus limites das áreas de risco) e a pouca flexibilidade negocial da autarquia (em parte limitada pelas orientações da Administração Central/Regional). A rigidez de posições inviabiliza um processo negocial e cada parte enquista a sua argumentação, gerando-se impasses de difícil ultrapassagem. A autarquia, pressionada pelo posicionamento das entidades públicas centrais que administram políticas territoriais e setoriais – proteção civil, administração da região hídrica, Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional de Lisboa e Vale do Tejo, entidade desconcentrada a nível regional gestora da Reserva Ecológica Nacional - não mostra abertura para cedências na legalização dos edifícios em áreas de risco e aposta numa política de regeneração urbana. As CAC, fortalecidas pela sua integração formal no processo, e com recursos técnicos, pretendem maximizar as áreas a reconverter e a pugnar pela indemnização dos proprietários em áreas de risco. Estas dificuldades são agravadas pela diversidade de situações – proprietários residentes, proprietários arrendatários não residentes, arrendatários – e correspondente diversidade de interesses e posicionamentos.

A autarquia de Odivelas tem recorrido a vários instrumentos legais aplicáveis, procurando guiar a sua atuação num quadro de grande complexidade e incerteza. Apesar desses esforços os resultados têm sido incipientes, o que induz a desmobilização e a descrença por parte de todos os parceiros numa solução que mitigue as debilidades coletivamente reconhecidas. O PU em elaboração ilustra bem a situação descrita. A opção por uma intervenção única - um plano para resolução integrada dos problemas da Vertente - pode ser questionável, na medida em que ignora as particularidades de implantação e ocupação de cada bairro, contribuindo para aumentar a morosidade da obtenção de resultados. Para a ineficácia do processo concorre ainda a dificuldade em operacionalizar instrumentos de execução, por escassez de recursos financeiros e complexidade burocrática e a tentativa de implementação de mecanismos colaborativos, sem estar assegurada a mediação de conflitos por uma entidade externa. A imposição da Administração Central às autarquias da integração urbana e reconversão das AUGI, internalizando no processo os proprietários envolvidos, constitui um avanço face às práticas anteriores, mas não acautela a superação dos conflitos existentes e latentes, que persistem por ausência de intermediação. A instalação do Gabinete Local traduz a vontade de o município se aproximar do problema e das populações afetadas, mas os resultados são débeis (incapacidade de operacionalização dos instrumentos disponíveis, apesar do maior controlo sobre a dinâmica construtiva). A auto-desculpabilização dos atores (públicos e privados), inerente ao impasse gerado, alegando a morosidade do processo, é outra particularidade a reter, sendo pouco transparentes as responsabilidades das partes. A estratégia dos particulares face à autarquia oscila entre a cooperação (disponibilização para financiar o PU e algumas intervenções previstas no PAT) e o confronto (contestação das áreas de risco definidas pela autarquia). Os particulares - proprietários e técnicos - constituem bloqueios à intervenção pública, na ótica do que Young (2000) define como “egoísmos locais”: para alguns a legalização do bairro pode significar a perda de propriedade e de rendimentos de arrendamento (em regime de economia paralela), daí a resistência a uma solução que implique a alienação do seu património.

Assim, grassa na Costeira de Loures um cenário de injustiça espacial, quer na dimensão estrutural, quer na dimensão processual. Na dimensão estrutural: populações com recursos escassos e fraca capacidade de mobilidade espacial e social ocupam territórios inaptos para a urbanização, subequipados e desqualificados, parte em áreas de risco, com um quadro ambiental-urbano desfavorecido, e geram acentuadas desigualdades socio espaciais e conflitos territoriais perversos, que evoluem para intratáveis, sem resolução aparente. Na dimensão processual: os procedimentos para superar o quadro atrás descrito mostram incapacidade de construir soluções satisfatórias e duradouras. Se o planeamento racionalista tende a agudizar e a perpetuar os conflitos e a injustiça (modelos normativos top down, segregadores e nem sempre ajustados à(s) realidade(s)), o planeamento colaborativo, processualmente mais justo por envolver as partes interessadas na decisão, também não resulta automaticamente na eliminação efetiva das situações de injustiça e na promoção da equidade e da coesão territorial. Isto porque as organizações locais, embora com capacidade para conseguir pequenas conquistas, mostram-se incapazes para reorientar as prioridades políticas a uma escala mais ampla. Por isso, a justiça processual tem sido, muitas vezes, concomitante com o aumento das desigualdades sociais. Daí Young (2000) preconizar, para o contexto metropolitano, poderes fortes a essa escala, capazes de definir orientações políticas estruturantes. Daqui decorre uma pergunta pertinente, colocada por Gervais-Lambony e Dufaux (2009, p. 13): qual o “bom” equilíbrio entre a escala de participação e a escala de redistribuição? Este estudo de caso permite avançar com uma resposta: quando as especificidades do território impedem o planeamento de atuações uniformizadoras, é indispensável uma atuação a dois níveis: à escala macro, a definição de estratégias e das prioridades de ação; à escala micro, a procura de soluções ajustadas a cada caso, e a abertura de novos níveis de discussão que incorporem no processo premissas diferentes (apoiadas em redes de cooperação local), indutoras de intervenções que contribuam para a resolução/minimização do problema e não para a sua protelação/agudização.

 

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Recebido: Maio 2015. Aceite: Novembro 2016

 

 

NOTAS

iSão pessoas coletivas sem personalidade jurídica, com competências definidas na lei (artº 15º da Lei 91/95, de 2 de setembro).

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