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Finisterra - Revista Portuguesa de Geografia
versão impressa ISSN 0430-5027
Finisterra no.113 Lisboa abr. 2020
https://doi.org/10.18055/Finis19348
ATUALIZAÇÃO BIBLIOGRÁFICA
A cidade neoliberal - conflito e arte em Lisboa e em Barcelona
Nuno Rodrigues1
1Doutorando em Geografia Humana, Investigador, Centro de Estudos Geográficos, Instituto de Geografia e Ordenamento do Território, Universidade de Lisboa, Rua Branca Edmée Marques, 1600-276 Lisboa, Portugal. E-mail: nmdrodrigues@campus.ul.pt
O livro A Cidade Neoliberal - conflito e arte em Lisboa e em Barcelona[i], de Ana Estevens (2017), surge como resultado do seu doutoramento e estratégia de disseminação do conhecimento produzido, tornando-o mais acessível a diversos públicos. Nesta recensão, considera-se que os contributos do livro e a perspectiva crítica que o acompanha constituem uma fonte de reflexão relevantes para a geografia urbana.
O livro parte do pressuposto de uma relação dialética entre produção do espaço no contexto do neoliberalismo e processos sociais, onde o conflito assume particular destaque. Partindo de uma reflexão interdisciplinar, com contributos que vão da sociologia à filosofia, Estevens trabalha o conceito de conflito indo para além da sua associação linear a dimensões negativas. Para a autora, o conflito é um elemento estruturante das sociedades e do espaço urbano, não devendo ser simplesmente invisibilizado ou tomado num sentido negativo, como no caso da violência, mas sim enquanto um potencial gerador de novas possibilidades e transformações. Como refere: “(…) o conceito de conflito é um dos elementos que permite recuperar o sentido político dos contextos urbanos e um dos meios que possibilita a transformação e a inovação das relações e das políticas públicas.” (Estevens, 2017, p. 51). Neste sentido, a discussão apresentada surge enquanto inovação no corpo teórico da geografia urbana, em particular no contexto português. A autora introduz uma temática que contribui para um paradigma de investigação crítica em estudos urbanos que não se limita a denunciar a forma como as desigualdades sócio-espaciais são (re)produzidas, mas salienta como estas se encontram imersas num conjunto de relações de poder e conflitos onde a agência dos sujeitos pode e deve ser considerada[ii].
Em termos geográficos, é proposta uma diferenciação entre espaços rígidos e espaços elásticos - transpondo para a geografia a reflexão de Lewis Coser sobre o conflito -, propondo os conceitos de Cidade Dividida e de Novas Urbanidades para dar conta de tais configurações. No primeiro caso, encontramo-nos perante uma produção neoliberal do espaço que tende a anular ou a reprimir o conflito, mesmo que pari passu da disseminação de fenómenos de medo e, associados a este, de dispositivos de segurança. Para a autora, tal situação promove divisões e formas violentas de conflito. Por sua vez, as Novas Urbanidades, marcadas por um sistema elástico e exploradas a partir da criação artística, constituem espaços onde se torna possível a expressão aberta e directa do conflito, o que potencia mudanças e novas possibilidades no espaço urbano, num sentido potencialmente emancipatório.
Contudo, e mesmo que problematizada no livro, tal divisão apresenta alguns limites, podendo-se considerar a mesma como demasiado dicotómica caso não sejam tidos em conta as possíveis relações entre os dois conceitos. Uma percepção que, caso levada ao extremo, poderá assumir a impossibilidade de alternativas e resistências em contextos e espaços marcados pelo neoliberalismo, bem como a total ausência de relações assimétricas em situações tidas como alternativas e críticas do mesmo. Uma problematização que Estevens avança para analisar de forma mais subtil, remetendo para a relação entre processos e suas expressões escalares. Identificando uma tendência de fragmentação do espaço urbano, emergindo espaços que a uma micro-escala se revelam marcados por formas de homogeneização interna - com diferentes expressões -, torna-se possível pensar tanto em espaços caracterizados por uma configuração neoliberal bem como espaços que se assumem enquanto resistentes ao mesmo. Isto é, a produção neoliberal do espaço não produz unicamente enclaves territoriais onde se verificam múltiplas situações de privação e exclusão social - ou o seu oposto -, mas é também contemporânea de espaços que, dadas as suas características e práticas nele presentes, se assumem enquanto novas urbanidades. Assim, sugere-se uma relação entre território e política que deixa em aberto a possibilidade de configurações territoriais cuja singularidade se revela crítica das formas dominantes de produção do espaço.
Um aspecto essencial do livro passa pela análise do neoliberalismo e dos seus efeitos urbanos. De forma sintética, o mesmo é apresentado enquanto responsável por um recuo do peso e responsabilidades do Estado, bem como pelo predomínio de uma lógica de mercado. Pode-se questionar se o neoliberalismo é efectivamente aquilo que a autora afirma ser. Mas, provavelmente mais relevante e interessante, importa questionar se o neoliberalismo poderá ser entendido enquanto um projecto coerente e uno[iii]; enquanto não-coincidente com outras ontologias (isto é, se existem formas de resistência totalmente marcadas pela sua ausência); se o neoliberalismo é capaz de produzir efeitos tão nefastos como os referidos[iv] (ou se poderá ser tomado como o único factor explicativo das diversas formas de desigualdade actualmente existentes); ou questionar e explorar as suas diferenciações geográficas. Questões que são seguramente demasiado complexas para uma revisão, mas que merecem ser tidas enquanto objecto de reflexão e investigação futura.
A procura de novas urbanidades anima a investigação apresentada, empiricamente centrada no Raval (Barcelona) e na Mouraria (Lisboa) - o primeiro enquanto “caso de referência”, o segundo analisado mais aprofundadamente. Os dois bairros têm tradições de resistência ligadas ao movimento operário; encerram em si imaginários boémios, marginais e populares; situações várias de privação e desigualdade sócio-espacial; fenómenos de imigração; são palcos de práticas artísticas; e foram sujeitos a diversas intervenções urbanas na sua história. Actualmente, destacam-se os mais recentes planos e os processos de gentrificação, onde a arte desempenha um papel fulcral - seja em situações de produção hegemónica da cidade, seja em formas alternativas e críticas da mesma. No caso da Mouraria, apresenta-se uma evolução detalhada e crítica do Programa QREN[v] Mouraria, impulsionador das dinâmicas de transformação do bairro. Referem-se os diversos eixos do plano, bem como as formas de sociabilidade e representações do bairro por parte dos actores e grupos do bairro. O sub-capítulo “Estilhaços de Gente?”, iniciando-se com notas do caderno de campo, dá voz a alguns dos sujeitos mais marginalizados - mulheres em contexto de prostituição, imigrantes, mulheres idosas e pobres, entre outros. Esta etnografia constituí um exemplo etnográfico pouco comum[vi] em geografia urbana, fruto de um exercício de observação necessariamente lento e dispendioso, em contra-ciclo aos tempos rápidos da actual produção académica.
A conclusão reflecte sobre os processos de transformação na Mouraria. Salientando a forma como o plano se centrou quase exclusivamente numa intervenção simbólica (uma intervenção sobre a memória e identidade do bairro que fez uso das imagens de típico e popular), de embelezamento estético, e de algumas intervenções em equipamentos e no espaço público - deixando de lado os problemas sociais, culturais e económicos do bairro. No fundo, a tentativa de criação de um espaço hegemónico que reprime outras possibilidades de expressão do conflito. Sendo que, relativamente a tais possibilidades, a autora salienta a acção do c.e.m. - centro em movimento enquanto potenciador de expressões artísticas que possibilitem uma reflexão e crítica relativamente aos processos em curso. Como a autora refere, algo que poderá “(…) representar pequenas revoluções que provocarão micro e invisíveis transformações.” (Estevens, 2017, p. 282-283). Contudo, e mesmo destacando a potencialidade de tais práticas artísticas e reconhecendo que produziram alguns efeitos, importa salientar a dificuldade de tais práticas constituírem uma resposta efectiva a tais processos. Esta afirmação, da responsabilidade do autor da recensão, não constituí uma crítica às práticas em si, mas antes um salientar da assimetria relativamente às forças que se pretendem contestar. A própria autora chega a referir que na Mouraria não se verificou o mesmo nível de contestação que se encontrou no Raval.
O livro apresenta-se como uma abordagem inovadora, interdisciplinar e crítica na geografia urbana. A problematização sobre o conflito e os conceitos propostos - com destaque para os de cidade dividida e novas urbanidades - revelam-se úteis e interesses para futuras investigações em estudos urbanos, permitindo explorar novas relações entre território e política. Ficam, assim, em aberto novas hipóteses de experimentação e investigação - tanto a um nível teórico como prático, sendo de salientar que o livro, em si mesmo, não deixa de ser uma tentativa de influenciar e intervir sobre os processos analisados, bem como as formas de produção de cidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Bunge, W. (2011 [1971]). Fitzgerald: Geography of a revolution. Georgia: University of Georgia Press.
Carmo, A. (2019). O Teatro do Oprimido na periferia de Lisboa: Cidade, cidadania e arte [The Theatre of the Oppressed on the periphery of Lisbon: City, citizenship and art]. Lisboa: Outro Modo, Le Monde diplomatique - edição portuguesa.
Estevens, A. (2017). A cidade neoliberal: conflito e arte em Lisboa e em Barcelona [The neoliberal city: conflict and art in Lisbon and Barcelona]. Lisboa: Deriva e Outro Modo, Le Monde diplomatique - edição portuguesa.
Mirowski, P. (2009). Postface: Defining Neoliberalism. In D. Plehwe & P. Mirowski (Eds.), Defining neoliberalism. The road from Mont Pèlerin: The making of the neoliberal thought collective (pp. 417-450). Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press. [ Links ]
Notas
[i]Estevens, A. (2017). A cidade neoliberal: conflito e arte em Lisboa e em Barcelona [The neoliberal city: conflict and art in Lisbon and Barcelona]. Lisboa: Deriva e Outro Modo, Le Monde diplomatique - edição portuguesa.
[ii]Pode-se considerar que o trabalho de André Carmo (2019) se insere no mesmo paradigma.
[iii]Por exemplo, veja-se a problematização que Philip Mirowski (2009) faz do conceito e da sua evolução histórica enquanto corrente de pensamento e acção.
[iv]Estevens chega a afirmar que o projecto neoliberal tende a construir uma “(…) cidade homogénea, submissa, segura, a-conflituosa, competitiva, e em cidadãos que não se conhecem, que vivem alheados, que estão isolados e se sentem anónimos.” (Estevens, 2017, p. 33). Poder-se-á concordar que tal cidade é parte de um objectivo neoliberal, mas importa salientar que a própria natureza do urbano e das dinâmicas sociais impossibilitam que o mesmo seja atingido - pelo menos, de forma tão total. A autora acaba por reconhecer isso mesmo, afirmando posteriormente que “(…) há nesta mesma cidade outro tipo de espaços (elásticos) que equacionam a transformação das relações sociais.” (Estevens, 2017, p. 62).
[v]Quadro de Referência Estratégico Nacional.
[vi]Um trabalho que tanto pela estratégia metodológica como pela tentativa de trabalho colaborativo e empoderador para a comunidade encontra ecos com o trabalho seminal de William Bunge (2011 [1971]), referente ao livro “Fitzgerald - Geography of a Revolution”, no qual se encontra uma etnografia centrada nas experiências da população de um bairro de Detroit em transformação - no caso, muito relacionado com o movimento dos direitos civis nos anos de 1960 e 1970 nos Estados Unidos.