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Finisterra - Revista Portuguesa de Geografia

versão impressa ISSN 0430-5027

Finisterra  no.113 Lisboa abr. 2020

https://doi.org/10.18055/Finis17483 

ATUALIZAÇÃO BIBLIOGRÁFICA

Haesbaert e o seu encontro com o outro

Nicolás González Arango1

1Mestrando em “Geografia Humana: Globalização, Sociedade e Território”, Instituto de Geografia e Ordenamento do Território, Universidade de Lisboa, Rua Branca Edmée Marques, 1600-276, Lisboa, Portugal. E-mail: narango@campus.ul.pt


 

Por Amor aos Lugares[i], o último livro do reconhecido geógrafo brasileiro Rogério Haesbaert, constitui uma ode à alteridade. Através de relatos de viagens pessoais realizadas entre 1992 e 2015, o autor consegue mergulhar o leitor nas suas vivências, impressões e sensações sobre cada um dos lugares e populações visitadas, fazendo ênfase na sua especificidade. Segundo o autor, uma das mais importantes propriedades dos lugares decorre da sua capacidade de criar diferenças; “uma diferença que nos ;re-componha, que nos faça olhar para um Outro que não só está fora por se distinguir de nós, mas que também participa da nossa construção identitária, tanto pelo contraste que nos propõe quanto pelos laços comuns inerentes à nossa condição humana” (p. 16).

Ao contrário de outras das suas publicações mais teóricas, onde analisa a relação entre conceitos como territorialidade, multiterritorialidade e identidade, em Por Amor aos Lugares o autor procura dar menos importância à teoria, enfatizando antes as suas experiências de viagem e mostrando processos de des-re-territorialização a partir da sua própria vivência. Haesbaert, professor do Instituto de Geociências da Universidade Federal Fluminense e diretor do Núcleo de Estudos sobre Regionalização e Globalização, divide este seu livro em três partes. Na primeira, faz um enquadramento teórico do que entende por “lugar”, retomando aqui ideias de geógrafos como Milton Santos e Doreen Massey. Na segunda parte, inicia os seus relatos de viagens no que chama “lugares viajantes”, descrevendo as suas peripécias e encontros em países como a na Índia, China, Madagáscar, Vietname e Cuba. Na terceira parte, o autor descreve as suas vivências no Rio de Janeiro, Paris e Londres, cidades que considera “lugares cotidianos”. Ao longo de todos os relatos, a maioria dos quais acompanhados por fotografias, Haesbaert destaca os impactos do capitalismo globalizado nos lugares visitados, procurando dar voz a esse Outro - humano e geográfico - que, ora mostrando-se acolhedor ora distante, acaba sempre por influenciar a construção identitária e territorial do autor.

Para Rogério Haesbaert, um fator fundamental na definição de lugar é o encontro simultâneo de duas realidades sobre um mesmo ponto, “a copresença, o convívio direto, a contiguidade” (p. 14), da qual derivam as suas principais características: “o lugar é criador de conexões, afetividades, identidades, em suma, diferenças” (p. 14). Para Haesbaert, o lugar cria conexões pois, como também afirma Doreen Massey, contrariando o posicionamento de Yi-Fu Tuan, para quem o lugar é estático, delimitado e conservador, este deve ser entendido de maneira dinâmica e permeável, como “um lugar encontro, o local de interseções de um conjunto particular de atividades espaciais, de conexões e inter-relações, de influências e movimentos” (p. 16). Por outro lado, o lugar cria afetividades pois, segundo Haesbaert, constitui uma forma de “estar no mundo” (p. 15). Não se trata aqui só de pensar num espaço, mas de vivê-lo plenamente com todos os sentidos. Como afirma, “fazer do espaço efetivamente um lugar é estabelecermo-nos e sentirmo-nos inteiramente nele, vivenciando-o plenamente como na imersão de um aqui e agora” (p. 15.); só desse modo que é possível deixar-se tocar pelos outros - humanos e/ou espaços - e criar afeto, “deixar-se (des)envolver pelos lugares - com tudo o que neles há de humano e não humanoe, ao mesmo tempo, elaborar elos de afetividade e responsabilidade (p. 11). Por último, o lugar cria identidades no sentido em que, ao contrário do conceito de “território” - no qual a ênfase está no controle ou na posse de um espaço, muitas vezes exercida de forma impessoal -, “definir um lugar como nosso é torná-lo parte de nossa diferenciação/identidade enquanto indivíduo ou grupo” (p. 13).

Assim, Haesbaert vai distinguir entre “lugares cotidianos” - aqueles lugares onde se sente “em casa”, onde as diferenças intrínsecas aos lugares no encontro com o Outro são acolhedoras -, dos “lugares viajantes”: aqueles lugares que afetam muito menos e onde as diferenças são muito mais fechadas ao diálogo, ainda que sem que isto queira dizer que tenham menos influência na construção da identidade de quem está a confrontar-se com esse Outro. O autor afirma que os “lugares viajantes” estão moldados sobretudo pelo lazer e que a possibilidade de experimentar novas territorialidades - as “opções territoriais” (p. 198) - depende, em última análise, das condições socioeconómicas de cada pessoa. Os contrastes e paradoxos inerentes ao encontro com o Outro, assim como o impacto que a globalização ou que o capitalismo globalizado tem nesse Outro -, constituem o fio condutor da secção intitulada “lugares viajantes”.

Desde o início dos relatos fica claro que Rogério Haesbaert desfruta ao enfrentar e ao se reconhecer a si próprio ante os contrastes e contradições que vai encontrando nos lugares visitados. O contraste e a diferença de odores, paisagens e velocidades tornam-se mais evidentes nas viagens pelo Oriente, em particular na China, no Sueste asiático e na Índia, país de “extremos” (p. 35). Parece que quanto maior “a esquizofrenia do espaço” (p. 30), maior a alegria que o autor experimenta, como em Jodhpur, onde o “burburinho indescritível de vacas, crianças (...) bicicletas e os cheiros” (p. 30) faz estremecer, a ponto “de tirar o fôlego, e literalmente, o próprio ar que respiramos (minha alegria e a ardência constante nos olhos denunciam)” (p. 30). Para o autor, a concepção de tempo muda completamente nesses lugares: o tempo concentra-se, a circulação é confusa, muitas vezes vai no sentido contrário, mas à sua maneira acaba por ser organizada. Não estranha que Haesbaert afirme que “experimentamos outra velocidade, outro ritmo, um pouco como os nômades, gênero de vida que (...) revela (…) outra visão de mundo, exatamente o oposto da nossa, rápida e passageira, mutante” (p. 33). É precisamente olhando ao Outro que Haesbaert quer que o leitor se olhe a si próprio e repense todas as certezas e seguranças que tinha em relação a si, mas também em relação ao Outro. É nesses “lugares viajantes”, nesse confronto com a alteridade, onde “uma avalanche de sensações brota o tempo todo, e questionamos em cada esquina as nossas certezas ocidentais e seu legado eurocêntrico” (p. 48), como também “as nossas preconcepções sobre as culturas e os modos de vida do Oriente” (p. 57). Segundo o autor, a única forma de entender verdadeiramente esses modos de vida, de estar nesse outro ritmo, será mergulhar nesse espaço, compartilhar as crenças e as atividades que ali se desenvolvem, de forma a torná-lo um “lugar cotidiano”.

Ao louvar a alteridade e a existência de diferenças, Haesbaert está também a fazer uma crítica ao capitalismo globalizado e aos impactos perversos que este tem no espaço e nas populações que o habitam. O autor expõe a sua frustração ao ver o modo como o aumento do turismo desenfreado - produto por excelência da globalização - cria espaços homogéneos, concentrando hotéis e restaurantes para estrangeiros, que segregam as comunidades locais, separando os espaços turísticos da vida quotidiana e, consequentemente, “aumentando rapidamente as desigualdades sociais” (p. 110). Os efeitos da globalização percebidos pelo autor fazem-no questionar a obsessão ocidental pela mudança, pelo novo, e o esquecimento de que existem vínculos que se torna necessário preservar. Põe, assim, em consideração as dinâmicas de des-re-territorializacão - a destruição e a recomposição dos territórios - e advoga para que tenha sempre lugar o debate sobre o que deve - ou não - restar dos territórios/lugares nessas dinâmicas.

Na última parte do livro, ao abordar os lugares onde sente-se “em casa”, Rogério Haesbaert muda de posição nesse diálogo com o Outro, mostrando exemplos de como este Outro ocupa e se insere no próprio espaço do autor. Do “proselitismo escancarado” (p. 276) de um jovem pastor que prega cegamente o seu credo num autocarro, a exemplos de privatização da paisagem do Rio de Janeiro em nome da imagem do que os media e a FIFA pretendem mostrar do Brasil, até à ocupação do espaço público por parte de jovens manifestantes contra a realização dos Jogos Olímpicos na cidade, Haesbaert convida ao leitor a percorrer as suas multiterritorialidades e presenciar como cada mudança desencadeada nesse “espaço quotidiano” está também a ocorrer no interior do próprio autor.

O livro de Rogério Haesbaert é uma íntima e emocionante viagem aos seus sentimentos e experiências nesse encontro com o Outro, uma experimentação da riqueza de sabores e cores que compõe o mundo. Mas é também uma demostração da fragilidade da alteridade quando se vê confrontada com o capitalismo globalizado, que muitas vezes, em vez de reduzir as distâncias e aproximar as pessoas, acaba por as fragmentar e afastar. Mesmo assim, Haesbaert, optimista, dá ao leitor esperanças ao falar dos primeiros passos de uma “outra” globalização e da necessidade de, no meio de toda grande diversidade de circunstências, unir forças e optar pelo companheirismo para lutar: “É preciso, mais do que nunca, acreditar. Sonhar com um mundo igualitário e cosmopolita” (p. 308), pois, afinal de contas, “o Outro, enfim, éramos nós” (p. 274).

 

Nota

[i]Haesbaert, R. (2017). Por Amor aos Lugares [For Love of Places]. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.

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