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Finisterra - Revista Portuguesa de Geografia

versão impressa ISSN 0430-5027

Finisterra  no.114 Lisboa ago. 2020

https://doi.org/10.18055/Finis17603 

ARTIGO

Dos governos Kirchner ao governo Macri: Petróleo, soberania e as lógicas territoriais e capitais no conflito geopolítico das Malvinas

From Kirchner’s governments to the Macri government: petroleum, sovereignty and territorial and capital logics in the geopolitical conflict of Malvinas

Des gouvernements Kirchner au gouvernement Macri: pétrole, souveraineté et logique territoriale et capitale dans le conflit géopolytique des Malouines

De los gobiernos Kirchner al gobierno Macri: petróleo, soberanía y las lógicas territoriales y capitales en el conflicto geopolítico de las Malvinas

Felipe Rodrigues de Camargo1

1 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Geografia, Universidade Estadual Paulista (UNESP), Prédio da Pós-Graduação em Geografia, Avenida 24A, nº1515, Bairro Bela Vista, CEP: 13506-900, Rio Claro, São Paulo, Brasil. E-mail: feldecamargo@gmail.com


 

RESUMO

A Argentina desde sua estruturação como Estado-nação (1816) reivindica as Ilhas Malvinas como parte de seu território nacional, abordando a situação em diferentes formas de acordo com os seus governos. O objetivo principal deste artigo é a descrição do posicionamento político dos governos Kirchner (2002-2015) e Macri (2015-2019), em conjunto com uma comparação da evolução da abordagem geopolítica da disputa das Malvinas. Baseado na estratégia indireta e no comportamento do governo argentino, constrói-se uma possível cooperação do uso das riquezas, apesar do Modus vivendi da soberania direta. Os governos Kirchneristas adotaram uma postura multilateral, convocando a comunidade Sul-americana. Maurício Macri, como novo presidente da Argentina, apresenta outra postura, identificada como uma abordagem bilateral, subordinada aos interesses dos EUA. Deste modo, podemos identificar, por intermédio da característica dessas duas posições, uma similaridade com o conceito de lógica capital e territorial de Arrighi.

Palavras-chave: Geopolítica; Argentina; Malvinas/Falklands; lógicas territorial e capital.


 

ABSTRACT

Argentina since its establishment as Nation-state (1816) claimed the Falkland Islands as part of its national territory, approaching the situation in different ways depending on different governments. The main objective of this article is to describe the political positioning of the Kirchner (2002-2015) and Macri (2015-2019) governments, together with a comparison of the evolution of the geopolitical approach of the dispute of the Malvinas. Based on the indirect strategy and the behaviour of the Argentine government, a possible cooperation on the use of wealth is built, despite the Modus vivendi of direct sovereignty. The Kirchner governments adopted a multilateral stance, calling on the South American community. Maurício Macri, as the new president of Argentina, presents another stance, which we can identify as a bilateral approach. In this way, we can identify, by means of the characteristics of these two positions a similarity with the concept of capital and territorial logic of Arrighi.

Keywords: Geopolitics; Argentina; Malvinas/Falklands; territorial and capital logic.


 

RÉSUMÉ

L’Argentine, depuis sa création en tant qu’État-nation (1816), affirme que les îles Falkland font partie de son territoire national et abordent la situation de différentes manières, selon leurs gouvernements. L’objectif principal de cet article est de décrire la position politique des gouvernements Kirchner (2002-2015) et Macri (2015-2019), ainsi qu’une comparaison de l’évolution de l’approche géopolitique du conflit des Malouines. Sur la base de la stratégie indirecte et du comportement du gouvernement argentin, une éventuelle coopération sur l’utilisation des richesses se construit, malgré le Modus vivendi de la souveraineté directe. Les gouvernements de Kirchner ont adopté une position multilatérale, convoquant la communauté sud-américaine. Maurício Macri, en tant que nouveau président de l’Argentine, présente une autre position que nous pouvons identifier comme une approche bilatérale. De cette manière, nous pouvons identifier, au moyen de la caractéristique de ces deux positions, une similitude avec le concept de capital et la logique territoriale de Arrighi.

Mots clés: Géopolitique; L’Argentine; Malouines; logique territoriale et capitale.


 

RESUMEN

Argentina desde su estructuración como Estado nación (1816) reclama a las Islas Malvinas como parte de su territorio nacional, abordando la situación de diferentes maneras, según sus gobiernos. El objetivo principal de este artículo es describir la posición política de los gobiernos de Kirchner (2002-2015) y Macri (2015-2019), juntos en una comparación de la evolución del enfoque geopolítico de disputa de las Malvinas. Con base en la estrategia indirecta y el comportamiento del gobierno argentino, se construye una posible cooperación en el uso de la riqueza, a pesar del Modus vivendi de la soberanía directa. Los gobiernos kirchneristas adoptaron una postura multilateral, que llamaba a la comunidad sudamericana. Mauricio Macri, como nuevo presidente de Argentina, presenta otra posición, identificada como un enfoque bilateral subordinado a los intereses de los EUA. De esta manera podemos identificar, a través de la característica de estas dos posiciones, una similitud con el concepto de capital y lógica territorial de Arrighi.

Palabras clave: Geopolítica; Argentina; Malvinas; lógica territorial y capital.


 

I. Introdução

A valoração das Ilhas, como recurso geopolítico, surgindo do ponto de vista do poder marítimo durante o período de colonização das Américas, século XVI ao XIX, deveu-se à importante função como ponto de controle de passagem dos Oceanos Atlântico e Pacífico (Mahan, 2015), promovendo a disputa entre espanhóis, ingleses e franceses pelo local.

Inicialmente a Espanha reivindicou a posse das ilhas, mas nunca ocuparam efetivamente. França promoveu o seu povoamento no século XVIII, mas se retiraram após um tratado e pagamento de indenização por parte dos espanhóis. Os ingleses também povoaram as Ilhas nesse mesmo período, mas foram mais resistentes às pressões da Espanha dada sua superioridade bélica no período (Lorton, 2013). Inglaterra como forma de se concentrar na Guerra de Independência dos Estados Unidos, retirou seus colonos e as unidades militares da Ilha (1775). Na ocasião em que a Argentina se declarou um Estado soberano (1810), assume-se como herdeira dos territórios do Vice-Reino do Rio da Prata, os quais pertenciam às Ilhas Malvinas, e iniciou o seu processo de colonização.

Efetivamente, os argentinos enviaram missões de ocupação das Ilhas, concretizando o controlo do território. Contudo, os ingleses em 1833 retomaram militarmente o seu controle, expulsando os argentinos (Camargo, 2015). A alegação inglesa é o pretérito pertencimento sobre o local (Lorton, 2013), contudo foi a discrepante capacidade militar dos dois países que faz com que Londres efetivamente controle o local.

Com uma visão estratégica, destaca-se que, para o Reino Unido, a posse das Ilhas era importante para o crescimento de seu império marítimo. O controle do único local de passagem, viável, entre o oceano Atlântico e o Pacífico até à construção do Canal do Panamá, consolida seu controle sobre o fluxo comercial da região. Mahan (2015) observa que essa questão do controle sobre mar, suas rotas e riquezas são essenciais para ter e exercer o poder sobre o globo, uma visão geopolítica consonante com o objetivo do Estado Inglês. Além desse favorecimento geográfico, ponto de controle dos oceanos, surge um novo paradigma estratégico que faz elevar os ânimos sobre a soberania local: o descobrimento de petróleo na década de 1980, ampliando a valorização espacial das Ilhas (Fernández, 1983).

Este artigo trata da abordagem argentina sobre o litígio da soberania das Malvinas, ao qual durante vários governos aplicaram-se estratégias diversas ao processo de devolução das Ilhas, mas com pouca expressão. O que se destaca advêm dos governos Kirchner, primeiramente com Néstor (2002-2007), e depois com Cristina (2007-2015). Esses governos priorizaram uma postura de parcerias com os outros países da América do Sul e também com forte apelação à Organização das Nações Unidas (ONU), decorrente da postura intransigente do Reino Unido no que concerne a qualquer tentativa de diálogo que remetesse às Ilhas.

A inflexibilidade britânica inviabilizou uma real discussão acerca da soberania direta das Ilhas, implicando uma política de Modus Vivendi, ou seja, ambos os países concordam em discordar sobre a posse das Malvinas, embora os canais diplomáticos se mantivessem abertos, bem como as negociações acerca do desenvolvimento econômico, ampliação das rotas de comunicação e no processo de identificação dos soldados mortos no conflito de 1982.

A questão se intensifica com o governo Macri (2015-2019) que rompe a antiga estratégia e embarca com uma perspectiva frontal ao Reino Unido, não discutindo a posse, mas sim uma exploração conjunta (Dinatale, 2016), sendo que desta forma fomentaria maiores atrações de investimentos ao território argentino (Governo da Argentina, 2016). Desta forma, a discussão aqui recai sobre os impactos e interesses dessa postura, uma ruptura com a própria reinvindicação territorial de forma subjetiva, o grande mote de todo o litígio entre esses países.

II. Lógica territorial e capital de arrighi

Faremos uso da teoria da lógica capital e territorial de Arrighi como meio de apresentar a sustentação teórica de cada um dos dois governos argentinos destacados, Kirchner e Macri. Arrighi (1996) apresenta uma forma de compreender a relação entre desenvolvimento do sistema capitalista e competição interestatal:

“(…) a competição interestatal e interempresarial pode assumir formas diferentes, e a forma que assumem tem consequências importantes para o modo como o moderno sistema mundial - enquanto modo de governo e enquanto modo de acumulação - funciona ou deixa de funcionar. Não basta enfatizar a ligação histórica entre a concorrência interestatal e interempresarial. Devemos também especificar a forma que ela assume e como se modifica no correr do tempo. Só desse modo podemos apreciar plenamente a natureza evolutiva do sistema mundial moderno e o papel desempenhado por sucessivas hegemonias mundiais na construção e reconstrução do sistema, a fim de solucionar a contradição recorrente de uma “interminável” acumulação de capital e uma organização relativamente estável no espaço político.” (Arrighi, 1996, p. 33).

Portanto é a relação entre as elites econômicas e políticas que promovem a práxis dessa teoria. Em um ambiente político e social dito liberal democrático, diferentes segmentos da elite econômica podem se associar aos setores políticos que mais lhe assemelhem no discurso e projeto. Dada essa condição, haverá governos que mudem totalmente a visão sobre determinada condição de determinado assunto. É o que percebemos com os governos Kircher e Macri, duas práticas e perspectivas distintas sobre como tratar da soberania das Ilhas Malvinas. No tocante teórico de Arrighi há a via territorialista e a capitalista:

“Central para esse entendimento é a definição de “capitalismo” e “territorialismo” como modos opostos de governo ou de lógica de poder. Os governantes territorialistas identificam o poder com a extensão e a densidade populacional de seus domínios, concebendo a riqueza do capital como um meio ou um subproduto da busca de expansão territorial. Os governantes capitalistas, ao contrário, identificam o poder com a extensão de seu controle sobre os recursos escassos e consideram as aquisições territoriais um meio e um subproduto da acumulação de capital.” (Arrighi, 1996, p. 33).

Ou seja, as elites econômicas que estão imbricadas na condição territorial promovem sua expansão capitalista a partir do controle efetivo do Estado sobre territórios e populações. Os que têm por foco o capital, têm seus recursos a partir do fluxo imaterial que perpassa o territorial, sem necessidade efetiva do Estado associado o controlar.

Não trataremos especificamente das elites econômicas dentro desse jogo geopolítico, mas fica essa questão importante da construção teórica de Arrighi. Nossa proposta parte para a visão geopolítica das relações que essas lógicas propiciaram entre a Argentina e o Reino Unido.

III. Potencial econômico das Malvinas

Na perspectiva do petróleo, desde a década de 1970, com a missão de Griffts, há pesquisas que tiveram por intuito investigar os recursos de exploração econômica nas Malvinas, sendo o último promovido pelo próprio Governo das Ilhas Malvinas (Falkland Islands Government), o qual realizou estudos geológicos sobre a capacidade das reservas de hidrocarbonetos nas Malvinas. Só o campo de Sea Lion tem uma reserva de 520 milhões de barris (Premieroil, 2016), sendo esse um início promissor, já que as projeções totais, como já relatado pela Agência Americana de Geologia (U.S. Geological Survey, 2000), indicam que as Malvinas podem ter uma reserva de 5 mil milhões de barris de petróleo, ficando assim a cargo somente da capacidade de extração (Camargo, 2015).

Os efeitos políticos das constatações de recursos energéticos nas Ilhas, Informe Griffts e Informe Shackleton, fortaleceu a retoma da disputa pela soberania argentina sobre as Malvinas, pois um ponto crucial é o impacto na economia argentina que se daria com essa anexação das Malvinas, considerando todo o potencial petrolífero (Fraga, 1995). Observando a figura 1, relacionada com a produção de petróleo em território argentino, denota-se claramente que a produção é voltada para o consumo interno, não sofrendo em nenhum momento oscilações significantes, nem nos anos de 2001, ponto inicial das disputas dos “fundos abutres”[i], e nem em 2008, marco da crise estrutural do sistema financeiro, embora numa visão geral fique claro uma decrescente produção de petróleo.

 

 

A figura 2 apresenta a relação da produção e o consumo de petróleo na Argentina, destacando os dois principais momentos desse recorte: 2001 foi o ano da moratória, apresentando-se um decréscimo no consumo, mas a partir de 2002 seguiu crescente com baixas oscilações; o mesmo no segundo momento principal em 2008, que apresentou um baixo reflexo no consumo. Contudo, a partir de 2012 o consumo supera a produção, portanto a Argentina deixa de ser autossuficiente em petróleo. A figura 3 apresenta a exportação de petróleo argentino, denotando que, apesar da insuficiência produtiva, a partir de 2012 Buenos Aires continua com uma conduta exportadora, mas ínfima, considerando que a Argentina tem uma reserva estimada de 2,5 mil milhões de barris (Telam, 2016).

 

 

 

O Reino Unido, se assenta em uma grande questão energética: suas reservas com-partilhadas com a Noruega estão se findando e sua dependência de importação já é observada - 1053 milhões de barris/dia em 2013 (IndexMundi, 2015). A capacidade das Malvinas resolveria o déficit tanto da Argentina quando do Reino Unido.

Com a figura 4 compreendemos que apesar da Argentina exportar petróleo, os lucros não são seu objetivo principal, dado que nos anos de grande valor no mercado internacional e com a capacidade produção-consumo superavitária, não houve crescimento nas exportações.

 

 

Os recursos petrolíferos para a Argentina e para o Reino Unido vão ao encontro do interesse de se garantir independência sobre o petróleo. Essa soberania energética encaixa-se de forma diferente entre os países. A Argentina, a priori, teria a emancipação do mercado internacional de petróleo, amenizando a necessidade de gastos que são exigidos pelos “fundos abutres”, além de ter a capacidade de cooptar investimentos na exploração e comercialização, sem contar a valoração do petróleo em si, como referido por Volpe (2017):

“Entre os recursos naturais em operação no Atlântico Sul está o petróleo, que é a estrela no momento e é um dos que mais nos preocupa. Eles enviaram plataformas para prospecção e estudos na área de Malvinas. Este é um mundo dependente de petróleo e essa indústria há mais de trinta anos ou mais não pode declinar, não pode terminar agora. O plástico, a fibra sintética da roupa, é derivada do petróleo, borracha sintética de automóveis, detergentes e fertilizantes nitrogenados.” (Volpe, 2017, p. 435).

O Reino Unido configura-se, de um modo diferente, um ator importante no quadro das relações geopolítica mundiais, e teria a emancipação das oscilações do preço do petróleo, blindando-se de estratégias econômicas dos principais países produtores. Outro grande fator é a capacidade irrestrita de locomover sua máquina de guerra, contando com o suporte dos Estados Unidos, em sua manutenção do status quo da ordem neoliberal mundial (Volpe, 2017).

IV. Postura dos governos Kirchner

Compreendida a valoração estratégica, principalmente para a Argentina, apresentamos a abordagem geopolítica dos governos Kirchner, reconhecida a partir de três pontos: a) Relativa Integração Sul-Americana; b) Petição no Comitê de Descolonização na ONU; e c) Exclusão Britânica da Negociação; uma situação política de poucos espaços de manobra, direcionando para uma prática geopolítica de estratégia indireta (Beaufre, 2004) e, também, de Soft Power (Cultura, Valores e Qualidade das Relações Diplomáticas) (Nye & Joseph, 2004).

As características do Soft Power foram úteis para a prática da estratégia indireta, que nada mais é que o uso indireto de poder político quando não se pode realizar um confronto direto. A Argentina usou carisma e retórica descolonial dentro dos dois primeiros pontos supracitados, forçando um ambiente de Estados e instituições cooperativas em sua disputa territorial.

Inicialmente, o aspecto da Integração Sul-Americana se apresentou por intermédio de articulações com o Mercado Comum do Sul (MERCOSUL) e com a União das Nações Sul-Americanas (UNASUL). Dentro dessas instituições, a Argentina efetivou instrumentos políticos e econômicos que favoreceram seu projeto. A nomenclatura das Ilhas foi legitimada por todos os países como Malvinas e não Falklands e ficou proibido receber navios com a bandeira britânica das Ilhas, isso em 2011. A Argentina fez coadunar o projeto de integração sul-americana com a sua empreitada geopolítica particular de soberania sobre as Ilhas, uma estratégia que fortaleceu a reinvindicação em uma forma continental e aumentou, diplomaticamente, a pressão sob os britânicos.

No segundo ponto, na ONU, o front geopolítico, se estendeu na perspectiva de uma confrontação na área da descolonização, realizando uma petição no Comitê de Descolonização da ONU no ano de 1965. Essa intencionalidade se iniciou no período de descolonização africana, ao qual a Argentina conseguiu respaldos positivos que coadunassem com o seu interesse anticolonial britânico, obtendo a Resolução 2065 que determinava a descolonização britânica das Ilhas, e vem sendo utilizado como argumento desde então.

O Reino Unido não acatou o pedido do documento da ONU e se manteve irredutível a essa situação, apoiou-se na prerrogativa de outro documento, a Resolução 2625, que se remete à livre determinação dos povos, apoiado na ideia de que os colonos não abririam mão de sua nacionalidade britânica.

A Resolução 2065 da ONU, que efetivamente trata das Malvinas, aponta que o Reino Unido e Argentina devem por fim ao litígio e buscar uma solução negociada à situação, pondo fim a situação colonial. O governo Kirchner manteve essa linha, da descolonização, sempre recebendo sinais positivos, mas com baixas ações efetivas da ONU, somente ativa na mediação do litígio.

O terceiro ponto se deve à abordagem multilateral em que a Argentina se focou, advindo da postura de Modus Vivendi - concordando em discordar do real direito de posse - iniciada para manter um nível saudável das relações diplomáticas, deliberadamente excluindo o diálogo direto sobre o assunto da soberania e tendo por foco as forças que consoassem a seu favor na disputa. Essa postura de não negociação foi uma imposição britânica, acatada sem muitas opções pelos argentinos, pois sem ela as relações diplomáticas estariam cortadas.

Um fator importante para a Argentina aceitar essa situação foi que o Reino Unido propôs uma parceria na exploração dos recursos das Ilhas, depois de árduas negociações, sendo vigente esse acordo por 12 anos, mas não tendo avanços reais na exploração. Em 2007, a Argentina a cancela unilateralmente.

A postura dos governos Kirchner foram bem consoantes com sua base teórica, opostos ao neoliberalismo e pró desenvolvimentismo industrial, fortemente ligado em linhas com o nacionalismo socialista e de características da lógica territorial, e do Estado como instrumento primordial para o controle territorial (Arrighi, 1996).

Em suma, a Argentina dos Kirchner motivada tanto por questões sentimentais, históricas, constitucionais, quanto econômicas, fez uso da estratégia geopolítica de Soft Power (Nye & Joseph, 2004), para ter efetivos controle sobre as Ilhas Malvinas. Entretanto, o foco se recai nas efetivas vantagens atribuídas às Ilhas como meio de aliviar a antiga crise estrutural que a Argentina tem (Carmo, 2016).

V. Mudanças do governo Macri

Com a eleição de um novo governo - o governo Macri -, de orientação neoliberal, alteraram-se as diretrizes na abordagem sobre a aquisição das Ilhas, optando por negociações mais diretas com os Reino Unido. Através das condições dos “fundos abutres”, Macri, optou por uma postura mais conciliadora, contudo, sem abordar a questão da posse das Ilhas.

A orientação neoliberal de Macri foi a base que propiciou um conforto no mercado financeiro internacional, conseguindo negociar os “fundos abutres” (Mars & Cué, 2016), promover abertura ao capital externo (Gauchazh, 2015) e abrir novos diálogos sobre a exploração conjunta das Malvinas (Reuters, 2016). A lógica territorial do governo anterior foi substituída pela lógica do capital (Arrighi, 1996), configurando como uma manobra capitalista na estratégia indireta, sem promover a retórica de soberania sobre as Ilhas e seus recursos: “Na estratégia Capitalista, a relação entre os meios e os fins se inverte: o controle do capital circulante é o objetivo, enquanto o controle do território e da população é o meio” (Arrighi, 1996, p. 34).

A proximidade territorial das Ilhas com a Argentina é um atributo geográfico fundamental nas relações internacionais (Freitas, 2013), e acrescentamos, em larga medida, a economia como um todo. Os britânicos têm interesse em explorar os hidrocarbonetos das Malvinas, e a Argentina tem infraestrutura próxima, que facilita as operações.

Os opositores do governo Macri fizeram forte uso do discurso da soberania das Ilhas, o declarando como conivente com a posse britânica sobre as Malvinas, pois nunca foi abordada essa dimensão por parte de seu governo, somente a cooperação econômica dos recursos locais.

A lógica capital, neoliberal, seguida pelo governo Macri atingiu seu objetivo, obteve acesso, mesmo que parcial, aos recursos das Malvinas e promoveu a cooperação dos “fundos abutres” na renegociação das dívidas. Mas isso não foi suficiente para trazer estabilidade econômica para a Argentina, que ainda apresenta fortes problema estruturais na dimensão financeira.

VI. Conclusões

Nesse artigo trouxemos elementos que revelam uma forma de interpretar as ações geopolíticas de dois governos com relação à disputa de soberania das Ilhas Malvinas. O processo de valorização das Ilhas, inicialmente no período de colonização das Américas até à época das independências, foi marcado por uma questão territorial geográfica de controle do tráfego comercial e de acesso aos oceanos Pacífico e Atlântico. Com o projeto de pesquisa de recursos minerais, iniciado na década de 1970, a valorização territorial das Ilhas se amplia com o descobrimento de grandes reservas de petróleo, configurando-se como um local de importância econômica, tendo em vista a sociedade contemporânea estar amplamente dependente deste recurso energético.

A ampliação da capacidade econômica das Ilhas fortaleceu a histórica busca argentina pela posse das Ilhas. Apesar de uma economia competitiva, o setor financeiro argentino é frágil e desequilibrado, advindo do mau gerenciamento desde a década de 1970, que levaram ao problema dos “fundos abutres” na década de 2000 e 2010. Tornariam-se assim uma via de angariar instrumentos que pudessem reestruturar o setor financeiro e renegociar as dívidas, por intermédio da capacidade econômica que as Malvinas promoveriam.

Destacamos os Governos Kirchner e Macri que abordaram duas estratégias geopolíticas distintas na busca de possuírem as Malvinas. Kirchner com uma retórica política mais progressista e coadunado com uma elite econômica de caráter mais produtivo, abordou por intermédio da estratégia indireta uma lógica territorialista. Ou seja, não confrontou diretamente os britânicos (estratégia indireta), fez uso da retórica de cooperação sul-americana, nas instituições do MERCOSUL e UNASUL, e também de antigas resoluções da ONU com relação à descolonização, consolidando um soft power que pudesse pressionar o Reino Unido a negociar efetivamente a soberania em favor da Argentina. Essa estratégia não vingou, apesar de ter unido boa parte do continente sul-americano nessa empreitada.

O Governo Macri, caracterizado como neoliberal e coadunado com o setor financeiro, foi direto no que tange o problema argentino. Não abordou a questão da busca da soberania das Ilhas, mas a formação de parceria com o Reino Unido no processo da sua exploração econômica. Em primeira instância obteve resultados positivos, renegociando os “fundos abutres” e ganhando confiança do setor financeiro mundial. Contudo, não promoveu efetivamente uma melhoria econômica das finanças argentinas, mantendo-se o país com sérios problemas estruturais no setor financeiro, principalmente pela política macroeconômica aplicada. Dentro da visão geopolítica das Malvinas, o governo Macri apresentou a lógica capitalista, somente buscando obter acesso ao fluxo financeiro que a localidade promove.

Em uma perspectiva geopolítica, temos duas praticas para um mesmo objetivo, sendo que a efetiva finalidade é o uso do potencial econômico das Malvinas como meio de resolver questões econômicas e políticas internas do Estado Argentino. Não se pode negar a questão histórica e sentimental atribuída às Ilhas pelos argentinos, contudo o cerne está na dimensão política e econômica que o Estado atribui, promovendo um maior aprofundamento do litígio. O governo Kirchner não obteve o controle das Ilhas e seus recursos, enquanto o governo Macri promoveu a participação no processo de exploração, embora nenhum dos dois efetivasse o uso das Malvinas para a reestruturação interna da Argentina. Sendo assim, mesmo que Macri obtivesse mais acesso às Ilhas, não atingiu o projeto de estabilizar e desenvolver a Argentina nas questões políticas e econômicas, deixando a disputa pela soberania ainda viva e um Estado flagelado.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Recebido: abril 2019. Aceite: junho 2020.

 

Nota

[i] Fundos Abutres: Grupo de acionistas que adquiriram títulos da dívida pública argentina sob moratória a baixos preços, mas com altos juros. O governo propôs renegociação da dívida, com desconto de 65% do valor total, sendo que 92% dos credores aceitaram a proposta. O grupo de acionistas que decidiram não aceitar a oferta repassaram seus títulos para outros mais especializados em investimentos de risco, estes passaram a ser chamados de "fundos abutres". Após a compra da dívida argentina, os acionistas agiram de forma a obrigar a Argentina a liquidar a dívida, abrindo um processo contra o país no tribunal de Nova York, que sentenciou o pagamento integral da dívida.

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