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Finisterra - Revista Portuguesa de Geografia
versão impressa ISSN 0430-5027
Finisterra no.114 Lisboa ago. 2020
https://doi.org/10.18055/Finis20253
ATUALIZAÇÃO BIBLIOGRÁFICA
Henri Lefebvre, a cidade e sociedade urbana[i]
Sílvia Jorge1, Sílvia Leiria Viegas2
1Investigadora, Centro de Investigação em Arquitetura, Urbanismo e Design (CIAUD), Faculdade de Arquitetura, Universidade de Lisboa, R. Sá Nogueira, 1349-063, Lisboa, Portugal. E-mail: aivlisjorge@gmail.com
1 Bolseira FCT (SFRH/BPD/118022/2016 - FSE/POCH), Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal. E-mail: silviaviegas@ces.uc.pt
A primeira edição do livro The Routledge Handbook of Henri Lefebvre, The City and Urban Society, editado por Michael E. Leary-Owhin e John P. McCarthy, foi lançada em novembro de 2019 pela Routledge, reunindo um total de 47 capítulos centrados na vasta e singular obra do filósofo francês. Sobre o percurso dos editores, em ambos os casos dirigidos para o planeamento urbano, destacamos os mais de 30 anos de experiência profissional de Michael E. Leary-Owhin e a sua recente participação numa pesquisa pública sobre regeneração urbana no Reino Unido. Por sua vez, John P. McCarthy, investigador e professor associado do Urban Institute, School of Energy, Geoscience, Infrastructure and Society da Universidade Heriot-Watt, tem-se dedicado sobretudo à reflexão e produção académica, integrando e reforçando uma vasta rede internacional.
Apesar dos largos anos que nos afastam das obras de referência de Lefebvre (1901-1991) - como Critique de la Vie Quotidienne (1947), Le Droit à la Ville (1968), La Révolution Urbaine (1970) ou La Production de l’Espace (1974) -, e da cidade da era industrial ser distinta e estar distante da realidade urbana atual, a linha de pensamento deste autor e a abordagem dialética que introduz continuam a iluminar as desigualdades do mundo e sociedade urbanas de hoje, bem como as alternativas que se abrem. O livro The Routledge Handbook of Henri Lefebvre, The City and Urban Society é o primeiro a explorar as ideias e teorias que aprofundou ao longo da sua vida sob uma perspetiva global, cruzando desenvolvimentos teóricos e empíricos recentes com diferentes contextos histórico-geográficos.
A introdução, intitulada “Ideias “Urbanas” para Dois Séculos”, da autoria dos editores, antecede a estrutura do livro, organizada em seis partes, com cerca de oito capítulos cada. A primeira parte, "Urbanismo Neoliberal Globalizado: Hegemonia e Oposição", versa sobre as lutas travadas pelas bases contra as ameaças e efeitos nefastos do neoliberalismo, desconstruindo as oportunidades enunciadas para as cidades no geral e o espaço urbano em particular. Aqui, os autores Michael E. Leary-Owhin, Oded Haas, Chris Hesketh, Rishika Mukhopadhyay, Pierre Filion, Michael Spacek, Gregory Marinic e Sílvia Jorge incidem a sua análise e reflexão sobre contextos tão diversos como a Palestina, a Índia, a América do Sul ou Moçambique. A segunda parte, “Repensando a Tríade Espacial e Análise Rítmica”, associa as dimensões espaço-tempo e a reinterpretação da tríade de Lefebvre, de um espaço simultaneamente concebido, percebido e vivido, tendo em conta geografias igualmente distintas, como Angola, Turquia, Japão ou Rússia, através do olhar e da análise de Oscar Oliver-Didier, Sílvia Leiria Viegas, Siew Peng-Lee e Ho Hon Leung, Steve Hanson e Mark Rainey, Miguel Torres Garcia, Carl Cassegard, Claire Revol e Bulent Batuman.
A terceira parte, “Representando e Contestando o Espaço Urbano”, aborda as representações espaciais sob a égide do urbanismo neoliberal, que desconsidera a voz de certas comunidades e/ou formas de vida contrárias à lógica dominante, e como estas representações são contestadas dentro do oficialismo burocrático ou transformadas através de processos de contestação promovidos pela sociedade civil. Nela participam Julia J. A. Shaw, Gunter Heinickel e Hans-Peter Meier Dallach, Iain Borden, Nick Jones, Ian Ellison, Matthew Thompson, Margarida Queirós, Anna Ludovici e Jorge Malheiros, e Esther H. K. Yung e Ho Hon Leung. A quarta parte, “Urbanização Planetária e “Natureza””, trata questões relacionadas com ecologia, natureza e sustentabilidade, lendo-se a cidade enquanto um espaço físico delimitado ou enquanto um complexo processo económico e social com relações de poder próprias, sobretudo em contexto global neoliberal, marcado pela mercantilização e exploração do espaço e seus recursos. Os textos de Michael Granzow e Rob Shields, Nicholas A. Scott, Derek R. Ford, Daniel Paiva, Panu Lehtovuori, Jani Tartia e Damiano Cerrone, Saara Liinamaa, Florian Wiedmann e Ashraf M. Salama e Luca P. Marescotti alimentam este debate.
Na quinta parte, “Repensando o Direito à Cidade”, Marcelo Lopes de Souza, Eveliina Lyytinen, Ran Liu e Tai-Chee Wong, Sana Murrani, Charalampos Tsavdarolgou, Nick Bailey, Hillary J. Shaw e Rebio Diaz Cardona releem este conceito norteador a partir do seu sentido mais radical, tal como trabalhado por Lefebvre, em defesa de uma auto-gestão, por contraste às inúmeras formas de usurpação da noção a que recorre uma elite urbana neoliberal. A sexta e última parte deste livro, “Direito à Cidade, Espaço Diferencial e Utopias Urbanas”, apresenta, por um lado, aspetos metafóricos deste mesmo conceito e, por outro lado, exemplos do cumprimento de direitos em espaços públicos concretos e em cidades diversas. Ao mesmo tempo, reflete sobre uma miríade de oportunidades de produção local de espaços urbanos inclusivos e democráticos, particularmente nas urbes. Fecham esta publicação os contributos de Chris Butler, Marie Huchzermeyer, Michael E. Leary-Owhin, Gülçin Erdi, Mee Kam Ng, Alasdair J. H. Jones e Nathaniel Coleman.
Este livro procura, assim, sublinhar a pertinência do pensamento crítico de Lefebvre e, com base neste, analisar alguns dos atuais desafios urbanos, sociais e ambientais, expondo, de um lado, as motivações e os efeitos do urbanismo neoliberal dominante e, de outro, as resistências ao atual sistema hegemónico e a forma como podem ser alcançadas e/ou potenciadas as alternativas. Desta forma, o leitor é convidado a navegar num complexo terreno de pesquisa teórico-empírico inspirado na obra de Lefebvre, focando-se, quer nos debates sobre o urbanismo e a urbanização completa da sociedade, quer nas lutas travadas à escala local e global em torno do direito à cidade. O livro pretende vir a constituir um guia de referência para um amplo leque de campos disciplinares, que vão desde a Sociologia, a Ciência Política e a Filosofia Aplicada, até à Geografia Urbana, ao Urbanismo e aos Estudos Urbanos, com um objetivo comum: procurar (des)codificar o urbano em todas as suas pluralidades e singularidades.
O retrato alargado de uma atualidade universal, do Norte ao Sul Global, a partir da lente questionadora e crítica de um dos maiores pensadores do século XX sobre teoria da produção do espaço, torna este livro singular. A referência às crescentes desigualdades que caracterizam o contínuo processo de urbanização planetária, apoiado na geração de um espaço abstrato e, cada vez mais, totalitário, colocam-no paradoxalmente, pelo universo editorial que representa, num lugar de resistência e de insurgência no seio da academia, também ela tendencialmente reprodutora das lógicas de reprodução capitalista que dominam o pensamento e a prática hegemónicos. Mais do que nunca, urge revisitar, iluminar e potenciar referenciais de reflexão e ação orientados para uma vida nova na cidade e nos espaços urbanos, voltada para a apropriação do espaço e do poder, para a realização coletiva e participada e, claro, para a ideia de um bem-estar comum. A utopia configura-se, assim, como denominador comum dos contributos teórico-empíricos que constituem este livro, em boa hora editado.
Recebido: junho 2020. Aceite: junho 2020.
[i] Leary-Owhin, M. E., & McCarthy, J, P. (2019). The Routledge Handbook of Henri Lefebvre, The City and Urban Society. London: Routledge.