Vivemos um momento único na história das nossas vidas. O vírus que provocou esta pandemia não é certamente o pior que a humanidade enfrentou, apesar da complexidade da crise que gerou e da rutura socioeconómica sem precedentes que está a causar, em todas as escalas do planeta. Os danos nas economias locais e cadeias globais de fornecimento são incalculáveis, afetando a segurança e a qualidade de vida, entre tantos outros aspetos da nossa existência. Para milhares de pessoas, a vida nunca mais será a mesma (Couclelis, 2020).
Como toda a atividade económica, social, cultural e política, também a investigação científica foi profundamente afetada pela atual pandemia da COVID-19. Esta emergência obrigou a comunidade científica a encontrar novas formas, nem sempre as mais eficazes, de trabalhar e de continuar a produzir e disseminar conhecimento, desde logo sobre a própria doença, a sua natureza, difusão, efeitos e consequências. No caso do Centro de Estudos Geográficos, além das atividades específicas dos seus diversos grupos de trabalho, foram empreendidas duas importantes iniciativas gerais, de certa forma complementares, de resposta ao quadro pandémico. A primeira consistiu na organização de um ciclo de nove webinários semanais, entre 29 de abril e 24 de junho deste ano, com forte envolvimento de todos os Grupos de Investigação, intitulado COVID-19: (Cons)Ciência Geográfica, com transmissão em acesso aberto através da plataforma Zoom e na rede social Facebook. O ciclo contemplou diferentes perspetivas da COVID-19, privilegiando a interdisciplinaridade, a diversidade institucional e pluralidade dos enfoques. Os temas abordados foram os seguintes:
a) Expressão Geográfica da COVID-19 em Portugal: fatores e dinâmicas da propagação;
b) Economia e Território em Tempos de Pandemia;
c) Desigualdades e (in)Justiça Espacial: os impactos da crise COVID-19;
d) Ambiente e Alterações Climáticas: oportunidades e aprendizagens depois de 2020;
e) Turismo e Pandemia: mudança e futuro;
f) Migrações Internacionais e Comunidades Migrantes: impactos da COVID-19;
g) Riscos Biológicos Emergentes e Resposta das Políticas Públicas;
h) Cidade na Pós-pandemia: desafios para o planeamento;
i) Implicações da COVID-19 na Igualdade de Género.
A ampla adesão da comunidade nacional e internacional, neste caso essencialmente do espaço ibero-americano, mostram que foi uma aposta ganha.
A segunda iniciativa é justamente a que resulta na publicação do presente número temático.
Através da abordagem espacial são identificáveis causas e consequências que concorrem para o aparecimento e dispersão da pandemia. Por isso, a Finisterra incentivou a comunidade científica a apresentar reflexões curtas (cerca de duas mil palavras) que abordassem perspetivas geográficas relacionadas com a crise mundial da pandemia. Poderiam envolver temas tão vastos quanto as vulnerabilidades dos espaços e transportes públicos, preparação para emergências, reestruturação de atividades económicas, como o comércio e serviços, impactos na saúde, segurança alimentar, mobilidade, turismo, habitação e densidade urbana, desafios para o ordenamento do território, mas também temas demográficos e sociais (que abrangessem questões de género, comunidades de baixo rendimento, etc.).
A Finisterra valorizaria especialmente as contribuições que incluíssem aspetos de solidariedade, equidade e inclusão, que oferecessem uma visão ampla da crise e das suas possíveis implicações para o conhecimento geográfico. O nosso objetivo foi ainda amplificar a voz da comunidade científica dos países de língua portuguesa e espanhola, isto é, de algumas das geografias não hegemónicas da pandemia. Todas as contribuições nestes domínios seriam bem-vindas. Também foram valorizados contributos com distintos recortes geográficos (local, metropolitano, regional, nacional, global). O confinamento e a urgência de sabermos mais sobre a COVID-19 incentivaram a rápida mobilização da comunidade científica.
Recebemos, num curto período (cerca de 2 meses), oitenta contributos. Apesar da qualidade da sua grande maioria, não foi possível acolher todos; tivemos de realizar, em tempo recorde, uma rápida seleção através do habitual processo de revisão por pares. Autores/as e revisores/as foram exigentes no rigor científico e concetual, e eficientes nas respostas a todas as nossas solicitações. Por isso, enquanto equipa editorial, o nosso reconhecimento do seu esforço só poderia ser compensado pela celeridade do processo de edição e publicação, que cumprimos com esta publicação.
As reflexões incidem numa primeira fase da pandemia, pouco se sabendo ainda sobre como surge, como se difunde, como se controla. Todavia, quanto a futuras pandemias, há esperança de que as lições aprendidas sejam lembradas para permitir uma resposta melhor organizada.
Este número, dedicado a Leituras Geográficas da COVID-19, e que encerra 2020, encontra-se organizado por temas que consideramos afins. Os quatro primeiros manuscritos resultam das contribuições de ( Marques da Costa e Marques da Costa, 2020), (Sá Marques, Santos, Honório, Ferreira, Ribeiro, e Barbosa, 2020), (Nascimento, Tombini, e Ripplinger, 2020), e (Ribeiro e Santos, 2020). Todos estes autores e autoras se focam no tema da difusão espacial do vírus, fazendo um retrato dos fatores sociodemográficos da difusão espacial, mostrando o risco de contágio e de mortalidade e cenarizando vulnerabilidades ou mostrando as vulnerabilidades que se colocam em áreas de fronteira.
(Mendes e Carvalho, 2020) centram-se na análise de redes, nomeadamente na evolução das geografias da produção de conhecimento científico sobre Coronavírus; (Ricarte, 2020) analisa dados estatísticos sobre a expansão do processo de digitalização da vida quotidiana e (Richter e Nascimento, 2020) tratam da importância das plataformas online desenvolvidas por diversas instituições governamentais, abrindo possibilidades de exploração desta tecnologia em ambientes de ensino-aprendizagem.
Os manuscritos que se seguem, de (Silva, 2020), (Buj Buj, 2020), (Mondardo, 2020), (Alcot, 2020), (Castilho e Silva, 2020), (Souza e Cassab, 2020), (Barata-Salgueiro, 2020) e (Donadio, 2020) todos abordam as desigualdades sociais que a pandemia veio acentuar, usando como casos de estudo os grupos mais afetados, como as comunidades tradicionais e indígenas, mas também evidenciando correntes de solidariedade junto de comunidades mais vulneráveis.
Seguidamente, o enfoque é colocado na questão da habitação nas cidades, onde as epidemias são parte integrante, como afirma (Antunes, 2020). Todavia, a organização do habitar nas cidades tem sofrido grandes alterações, pela introdução de novas teorias do urbanismo que discutem a morfologia urbana, e ainda pela discussão da organização interna da habitação, contribuindo a pandemia para o aprofundamento deste debate (Moreira, 2020). Mas o grande desafio do planeamento urbano será o de criar condições para que as pessoas possam também estar e trabalhar na sua residência, seja ela a primeira ou a segunda (Oliveira, 2020). Ainda muito útil à reflexão sobre como lidar com a pandemia em espaço urbano, está nos usos de terrenos vagos, como soluções temporárias para o distanciamento social, de que são exemplo, os drive-ins (Costa, 2020). Ainda o tema dos impactos da pandemia em estudantes em mobilidade internacional e em pessoas de nacionalidade estrangeira é abordado por (Iorio, Silva, e Fonseca, 2020).
A vida no espaço público, o ambiente e a natureza são os temas que se apresentam na continuação, seja por via da relação rural-urbano em territórios de baixa densidade (Carmo & Rêgo, 2020), seja pela reflexão sobre os mais jovens cujo confinamento e fecho de parques infantis favoreceu usos alternativos do espaço público, estimulando contactos diretos com a natureza (Prats Ferret, 2020). (Pinheiro, 2020) debruça-se sobre a justiça ambiental e procura identificar injustiças na fruição dos espaços públicos nas envolventes habitacionais. Tendais e Ribeiro, 2020) refletem sobre os impactos do confinamento na saúde mental e nas vantagens do contacto com espaços verdes urbanos (parques urbanos, jardins públicos e privados) e outros espaços naturais (praias, zonas ribeirinhas) na redução do stress. (Bento-Gonçalves, Vieira, Santos, e Rocha, 2020) relacionam a diminuição das ocorrências de incêndios florestais com a pandemia e as medidas de confinamento, especialmente durante o período do Estado de Emergência. (González-Alejo, Ajuria, Manzano-Fischer, Flores, e Monachon, 2020) abordam a necessidade de criar redes alimentares alternativas levando à reconfiguração dos ambientes alimentares no México.
Os efeitos do confinamento no turismo estão tratados nos artigos de (Brito-Henriques, 2020), (Cocola-Gant, 2020) e (Alpestana, 2020), centrando-se as suas atenções, no primeiro caso, na COVID-19 apresentada como um evento socionatural, e discutida a relação entre a pandemia, o sobreturismo e a crise turística mundial atual. No segundo texto, é equacionado o mercado de apartamentos turísticos em resposta à pandemia, aumentando a vulnerabilidade dos inquilinos e colocando em causa a função social da habitação. Já o terceiro, perspetiva medidas de dinamização do turismo urbano ao nível local, considerando os novos desafios impostos pela pandemia e a renovação da atratividade dos destinos turísticos.
( Roque de Oliveira, 2020) reflete sobre crises semelhantes que ocorreram no passado e a atual crise pandémica da COVID-19, fornecendo um conjunto de elementos para uma análise da pandemia sob o prisma da geopolítica, enquanto (Gonçalves, 2020) aborda a atual crise (sanitária, económica e social) e as difíceis relações entre um nível de comando de escala nacional e os níveis operacionais intermunicipais e locais, encarregados de fazer a sua tradução territorial.
Através da revisão da literatura, (Rodríguez-Barcón, 2020) identifica quatro áreas centrais que sustentam a construção da nova cidade pós-Covid, instando a um apelo global e multidisciplinar para o debate e reflexão sobre as oportunidades que se abrem neste contexto de crise para a construção de cidades resilientes e igualitárias. Também (Ferrás Sexto, 2020) reflete sobre os conceitos de cidade dispersa, aldeia virtual, a revolução da informação e do marketing, no novo cenário que a Covid-19 e a pós-pandemia começam a desenhar no mundo urbano.
(Nofre, Garcia-Ruiz, Fuarros, e Pires, 2020) exploram o cenário incerto que a indústria da vida noturna enfrenta nos próximos tempos pós-pandemia. O número fecha com o artigo de (Devides Oliveira, 2020), discutindo o futuro de Timor-Leste pós-pandemia, território marcado por vulnerabilidades socioespaciais, alta dependência externa e baixa diversificação económica, propondo o reforço de redes de solidariedade e de economias alternativas sustentáveis, enquanto peças-chave na superação de crises da dimensão do novo coronavírus neste território frágil.