I. Enquadramento
A Geografia deve contribuir para o trabalho interdisciplinar integrando a dimensão espacial na conceptualização dos riscos associados à pandemia de Covid-19 (Brinks & Ibert, 2020). É fundamental um maior conhecimento das estruturas socio-territoriais, para reforçar a capacidade dos territórios amortecerem as ameaças e conseguirem enfrentar o risco, num cenário de elevada incerteza.
Os territórios, à escala local, evidenciam níveis de vulnerabilidade diferentes, resistem de forma irregular e diversificada e exibem variados graus de robustez (Bristow & Healy, 2020). Assim, os territórios estão diferentemente susceptíveis aos riscos.
As características da atual crise pandémica de Covid-19 e as medidas de política para prevenir os graves efeitos sanitários têm efeitos diversificados consoante as caraterísticas específicas dos territórios. Este pressuposto aponta no sentido de se conceberem estratégias regionalmente diversificadas, considerando precisamente a variabilidade espacial do grau de exposição aos riscos (Dowd et al., 2020).
O objetivo desta investigação é, precisamente, identificar o mosaico territorial de riscos face ao contágio e à morte por Covid-19, retratando perfis de vulnerabilidade (Murgante, Borruso, Balletto, & Dettori, 2020). Pretende-se contribuir para informar as políticas dirigidas à mitigação dos riscos de contágio e morte, atendendo à espacialidade de um cenário de vulnerabilidades.
Esta pandemia ameaça simultaneamente o estado de saúde (risco de contágio) e a vida das populações (risco de morte) (Brinks & Ibert, 2020). Para tal, delimitaram-se os domínios e as situações de maior vulnerabilidade, relativamente ao:
i) Risco de contágio - estruturado em quatro domínios:
• exposição externa, medido pela abertura da base económica ao exterior, pela atratividade turística, intensidade e tipologia de fluxos migratórios;
• concentração de pessoas, medido pela densidade demográfica, dimensão dos aglomerados populacionais, institucionalização dos idosos, concentração de população ativa nas médias e grandes empresas e famílias numerosas;
• interação pela mobilidade, medido pela população móvel e movimentos pendulares intra e inter-concelhios;
• exposição da atividade profissional, medida pelos ativos na indústria, construção, saúde, apoio social e população ativa.
ii) Risco de mortalidade - estruturado em três domínios:
II. O mosaico territorial das vulnerabilidades
Nesta pesquisa utilizou-se informação estatística oficial disponível ao nível do município e informação específica solicitada a produtores oficiais de informação geográfica. Construiu-se uma base composta por 22 indicadores para o risco de contágio e 15 indicadores para o risco de morte. Todos os indicadores foram categorizados utilizando o método de “quintis” e posteriormente aplicou-se uma Análises de Correspondências Múltiplas (ACM). Daqui resultaram um conjunto de fatores, que foram submetidos a uma classificação (K-means), tendo em vista a identificação de perfis territoriais.
Desta forma, foram produzidos: (i) perfis territoriais de vulnerabilidade associados ao risco de contágio por Covid-19; (ii) perfis territoriais associados ao risco de morte por Covid-19; (iii) uma tipologia de cruzamento das duas abordagens.
1. Risco de contágio à Covid-19
A análise destes perfis territoriais deve atender ao facto de que o risco decorre da conjugação da interação das caraterísticas endógenas de cada um dos concelhos. No risco de contágio emergem claramente dois blocos territoriais. Por um lado, surgem os territórios mais populosos, mais densos, socialmente interativos e mais abertos ao exterior, com risco de contágio claramente superior (perfis territoriais A, B e C). A redução de risco de contágio só pode ocorrer com a redução da interação social. Por outro lado, evidenciam-se os territórios menos populosos, socialmente menos interativos e mais isolados, com um risco de contágio genericamente inferior (perfis territoriais D, E e F). O agravamento da vulnerabilidade poderá ser ativado por fatores externos, como as entradas turísticas ou retornos migratórios.
Numa análise mais detalhada, apresentam-se os diferentes níveis de vulnerabilidade ao risco de contágio (fig. 1).
No perfil territorial A o risco muito forte advém da conjugação da exposição externa muito elevada associada à presença de grandes empresas. A grande densidade demográfica e elevada mobilidade intra e interconcelhia, marcada pelo exercício de profissionais de saúde e apoio social reforçam a vulnerabilidade. Este grau de risco emerge essencialmente nas duas áreas metropolitanas, no litoral algarvio e nalgumas cidades médias (Coimbra, Braga, Aveiro, Bragança Évora e Beja, entre outras).
No perfil territorial B o risco é forte devido à presença muito marcante da atividade industrial, associada a uma economia muito aberta ao exterior. Evidencia ainda uma forte interação social derivada da elevada densidade demográfica, das famílias numerosas e da pendularidade, sobretudo intraconcelhia, e da grande dimensão da população ativa. Este risco de contágio concentra-se sobretudo no noroeste, nomeadamente nos concelhos a sul do Alto Minho, Cávado, Ave, Sousa e Tâmega e coroa exterior da Área Metropolitana do Porto.
No perfil territorial C existe um risco forte, ainda que inferior ao anterior. A abertura ao exterior muito forte, conjugada com a forte presença de grandes empresas e com um elevado número de entradas de população móvel são situações de vulnerabilidade ao contágio. Diferencia-se do perfil anterior pela presença significativa de população imigrante mas também por uma menor densidade demográfica. Territorialmente distribui-se por alguns dos concelhos da margem sul da Área Metropolitana de Lisboa, pelo Oeste e Médio Tejo, pelo Vale do Tejo, o entorno de Aveiro e algumas cidades médias (Vila Real, Viseu-Mangualde, Guarda, Covilhã, Castelo Branco, Portalegre, entre outras).
No perfil territorial D observa-se um risco moderado, caraterizado pela presença muito forte de empresas de média dimensão e de uma significativa população móvel. O povoamento assenta maioritariamente em aglomerados com menos de 10 000 habitantes e com uma presença pouco significativa de população imigrante. Este grau de risco de contágio tem uma distribuição territorial dispersa, sobretudo nas regiões Norte e Centro.
No perfil territorial E o risco é baixo graças à fraca densidade demográfica em pequenos aglomerados urbanos. A pouca mobilidade da população e a presença de famílias de pequena dimensão contribuem para reduzir a vulnerabilidade. Ainda assim apresenta uma população idosa muito institucionalizada que pode agravar subitamente o risco. Este perfil ocupa sobretudo a região do Alentejo, alguns concelhos da serra algarvia e do Norte e Centro.
O perfil territorial F é o que exibe menor risco, justificado pelo forte isolamento face ao exterior, pela baixa densidade e interação social, quer no trabalho quer nos movimentos pendulares. No entanto, observa-se uma presença de idosos institucionalizados muito significativa, que pode agravar subitamente a vulnerabilidade ao contágio. Este perfil distribui-se essencialmente pelos concelhos raianos, com incursões, nomeadamente no vale do Douro.
O contágio é um pressuposto para a ocorrência de óbitos por Covid-19, daí ter-se iniciado a análise pela identificação e caraterização territorial deste risco. O comportamento territorial face ao risco de contágio não é necessariamente semelhante ao risco de morte, pois parte de situações de vulnerabilidade diferentes.
2. Risco de morte por Covid-19
A análise destes perfis territoriais atende ao facto de que o risco decorre da conjugação da interação das caraterísticas endógenas associadas às caraterísticas da população idosa e às fragilidades de saúde.
Emergem claramente dois blocos territoriais. Por um lado, surgem os territórios mais envelhecidos e mais marcados por doenças (perfis territoriais A, B e C). Evidentemente que, em termos absolutos, dado estarmos perante territórios menos populosos, o número de óbitos por Covid-19 será menor, mas o seu peso local poderá ser muito alto, caso ocorra um agravamento do risco de contágio pelos fatores externos enunciados anteriormente. Por outro lado, evidenciam-se os territórios mais rejuvenescidos, onde o peso dos problemas de saúde é menor (perfis territoriais D, E e F). Evidentemente que, em termos absolutos, dado estarmos perante territórios muito populosos, o número de óbitos por Covid-19 será maior, ainda que o seu peso local seja menor. O agravamento do risco de morte poderá advir da propagação do forte contágio às populações idosas e debilitadas que residem nestes territórios.
Numa análise mais detalhada, apresentam-se os diferentes níveis de vulnerabilidade ao risco de mortalidade (fig. 2).
No perfil territorial A o risco muito alto advém da conjugação de uma presença muito marcante do grupo etário dos idosos, que residem maioritariamente sós ou institucionalizados e que manifestam fragilidades de saúde muito profundas e diversificadas. Este grau de risco muito alto emerge essencialmente nos concelhos raianos, no Pinhal Interior sul e em parte do Alentejo.
No perfil territorial B o risco alto advém da conjugação de uma presença marcante do grupo etário dos idosos, que residem maioritariamente sós e manifestam algumas fragilidades de saúde. Este grau de alto risco emerge ao longo de uma “dorsal” que se estende de norte a sul do Continente.
No perfil territorial C o risco moderado a forte advém da conjugação de uma presença significativa do grupo etário dos idosos que manifestam algumas fragilidades de saúde. Este grau de risco distribui-se por algumas das cidades médias (Bragança, Mirandela, Castelo Branco, Portalegre, Elvas, Santarém entre outros), predominando ainda na região de Coimbra, em alguns concelhos da Lezíria do Tejo e do Alentejo.
No perfil territorial D o risco moderado resulta dum peso menos significativo da população idosa e de uma presença menos marcada de fragilidades de saúde. Este grau de risco ocupa fundamentalmente a mancha territorial a Norte da Área Metropolitana de Lisboa e a coroa interior do Noroeste, assim como algumas cidades médias (Vila Real, Régua, Lamego, Guarda, Viseu, Évora, Beja e Faro).
No perfil territorial E o risco fraco deriva de um peso pouco expressivo da população idosa face à população ativa e jovem, tendencialmente inseridos em contextos familiares e com menos fragilidades de saúde. Nestes territórios existe, no entanto, uma incidência de risco relacionada com a existência de população com HIV. Este grau de risco predomina claramente na Área Metropolitana de Lisboa.
No perfil territorial F o risco muito fraco provém dum peso muito pouco expressivo da população idosa face à população ativa e jovem, inserida no núcleo familiar e onde as fragilidades de saúde são diluídas pela presença duma população mais jovem. Este grau de risco predomina claramente no noroeste.
A constatação de uma distribuição espacial diferenciada entre o risco de contágio e o risco de morte por Covid-19 sublinha a necessidade de espacializar as políticas dirigidas à mitigação da pandemia.
III. Síntese conclusiva
A distribuição territorial do risco de contágio não é igual à do risco de morte por Covid-19. Cruzando estes riscos é possível construir um cenário constituído por três perfis de vulnerabilidade territorial (fig. 3).
Por um lado, os territórios de alta densidade (população, relações sociais, relações externas) exibem tendencialmente um elevado risco de contágio. Por outro, os territórios de baixa densidade e envelhecidos exibem tendencialmente um elevado risco de mortalidade por Covid-19. Por último, os territórios de densidades intermédias e com estruturas demográficas menos envelhecidas apresentam riscos moderados quer ao contágio quer à morte.
Comparando estes três perfis com a situação de contágio a 26 de outubro verifica-se uma assertividade do cenário retratado na síntese das vulnerabilidades.
As políticas para os territórios de baixa densidade devem dirigir-se essencialmente para impedir a entrada de fatores externos que possam gerar o contágio, pois o impacto na mortalidade pode ser muito forte. A emergência de focos de contágio nestes territórios é o gatilho para que o elevado risco de mortalidade se possa concretizar, pelo que, a ocorrer, necessita duma identificação precoce e duma intervenção imediata e contínua para evitar a propagação.
As políticas para os territórios de alta densidade devem dirigir-se essencialmente à preservação do distanciamento social para reduzir o elevado risco de contágio, com particular incidência em equipamentos e instalações com efeito disseminador (ex. grandes superfícies comerciais, grandes empresas, infraestruturas intermodais, grandes eventos e outros com este perfil).
As políticas para os territórios de densidades intermédias carecem de um duplo cuidado, pois são territórios onde o risco mediano de contágio e mortalidade se con jugam. Por isso, devem articular as políticas dirigidas aos territórios de baixa e alta densidade.
Face ao exposto é necessário robustecer o sistema de monitorização territorial, para promover sistemas de governança multinível (World Economic Forum, 2020) adaptados aos perfis territoriais de risco. O que funciona bem num conjunto de circunstâncias pode ser inadequado para outro, portanto não se recomendam panaceias universais.