I. Introdução
Certamente, a geração mais nova ainda não tinha vivenciado uma crise de proporções globais que atingira todos os continentes, de modo que a palavra pandemia universalizou o cotidiano dos lugares. Sendo uma presença marcante, o novo coronavírus se tornou a expressão global na convivência humana, manifestando o que Milton Santos havia designado como “universalidade empírica”, condição que permite ao sujeito observar e vivenciar no espaço local a totalidade-mundo se realizando.
Na geografia global da COVID-19, o Brasil se tornou um dos países mais impactados. Dados atualizados em 27 de outubro de 2020, indicam que o país ocupa o terceiro lugar em número de casos confirmados (5 439 641) e de óbitos (157 946), que podem ser mais expressivos, considerando as subnotificações e a politização das estatísticas feitas pelo governo brasileiro (MS-Brasil, 2020, em 27/10/2020).
Esse texto problematiza a expansão do novo coronavírus no Brasil, entendo-o como um evento global (Santos, 1996) potencializado com a crise econômica e social do país. Assim, pensando as desigualdades socioespaciais, vulnerabilidade no mercado de trabalho, renda e desemprego, no qual a pandemia encontrou terreno fértil para ampliar a crise social brasileira, a exemplo da cidade de Manaus, adotaram-se proposições de Milton Santos (1996; 2000) em sua teoria social do espaço geográfico, que nos legou aportes teóricos para o entendimento do fenômeno da globalização como perversidade.
II. Pandemia e globalização perversa: a situação do Brasil
Em sua crítica à globalização neoliberal, Milton Santos (2000) analisara três leituras do fenômeno que alcançara o planeta Terra, atingindo de forma desigual todos os países. Primeiro, designou a globalização como fábula, anunciada pelos think tanks do neoliberalismo como um mundo aberto e fluido a todos, uma aldeia global em que as diferenças e as fronteiras políticas estariam desaparecendo, daí a ideia-força de fábula. Segundo, indicou a globalização como perversidade, como realmente se revela em seu estado de miséria e desigualdades sociais multiescalares. Em todos os continentes, e no interior dos países desenvolvidos, as faces da desigualdade social cada vez mais se acentuam, ampliando o número de pobres ao tempo em que a riqueza tende a se concentrar (Piketty, 2014). Essa perversidade é sistêmica, sendo combustível às irrupções sociais, dado a ação dos Estados-nação em delegar ao mercado o regramento da vida social, fragilizando os pobres, os assalariados e parte da classe média. Por fim, Santos admite uma outra globalização, como caminho a ser construído pelos povos, a partir das condições históricas e das possibilidades da política, da técnica e da cultura, de modo a assentar novas solidariedades à condição humana, processo que o autor qualificou como período popular da História.
Atualmente, a pandemia do novo coronavírus empiriciza a globalização em sua perversidade sistêmica (Santos, 2000), a qual produz uma crise na saúde pública e, sobretudo, neste início de século XXI, uma grande crise econômica e social abrangente do mundo, na medida em que atinge, principalmente, a população mais pobre, que não tem acesso à saúde de qualidade e que nem se pode permitir ao luxo da quarentena, dado que precisa trabalhar diariamente para garantir a renda familiar. Essas vulnerabilidades socioeconômicas se acentuam e tornam esses grupos sociais mais suscetíveis aos impactos da pandemia. Desse modo, o que parecia global e distante alcança sua expressão social mais concreta quando atinge os lugares, o cotidiano compartido, e o que nasceu - a patologia - como impacto do ser humano na natureza e no meio geográfico, aceleradamente se desdobra em pandemia, ampliando as escalas geográficas da crise social (Santos, 1996; Costa Silva, 2020).
À compreensão do fenômeno pandêmico, o conceito de evento auxilia à leitura da globalização, quando se entende que “o evento é um veículo de uma ou algumas dessas possibilidades existentes no mundo”, e “o lugar é o depositário final, obrigatório, do evento”, dado que os eventos “são, simultaneamente, a matriz do tempo e do espaço” (Santos, 1996, p. 144-145). Nesse entendimento, a pandemia do novo coronavírus é um evento global com materialidade nos lugares, tendo em vista que a sociedade local, enraizada e inscrita no lugar, não se coloca como espectadora, mas como sujeitos e famílias atingidos pelo processo em escala global. Trata-se da universalidade empírica (Santos, 1996) que aproxima realidades distantes, porém, modeladas por processos globais, evidenciando o encontro do mundo nos lugares.
Nesse processo, a metáfora global-local ganha sua expressão mais empírica, quando diariamente acompanhada por milhões de pessoas que assistem aos telejornais que, por sua vez, noticiam como a pandemia perpassa todas as latitudes do planeta. Nos diversos centros de mídias e em diferentes universidades e núcleos de pesquisa, numerosas ideias referentes a esse evento global ressaltam os impactos sociais que a pandemia causa nas nações, narrativas essas que indicam a fragilidade da população e dos lugares com maior vulnerabilidade socioeconômica, no qual tanto os indicadores de acesso à saúde demonstraram - a despeito do receituário neoliberal - a importância do Estado em suprir as necessidades da sociedade, principalmente, para os grupos sociais mais pobres, quanto às condições de trabalho e renda, que atingem a população mais vulnerável da sociedade.
A crise socioeconômica e política no Brasil atinge diretamente os pobres, os trabalhadores informais e assalariados que estão em situação de vulnerabilidade social, principalmente nas metrópoles e nos Estados das regiões Norte e Nordeste. Nos últimos anos, o quadro de desigualdade econômica tem agravado a situação social, principalmente, quando se verifica o mercado de trabalho e a crescente informalidade.
A taxa de informalidade no mercado de trabalho é um indicador de vulnerabilidade social muito importante, porque indica a intensidade da desigualdade sócioespacial e o grau de precariedade do mercado de trabalho. A informalidade refere-se ao conjunto de trabalhadores sem carteira assinada, de empregador sem registro legal, de trabalhadores autônomos e trabalhadores familiares auxiliar (Loschi, 2020). Em janeiro de 2020, a taxa média nacional da população ocupada em condições de informalidade atingiu 41,1%, seu maior índice desde 2016. A média nacional foi superada por 18 estados (variação de 41,2% a 62,4%), com forte evidência nas regiões Norte e Nordeste, onde 11 estados apresentam taxa de informalidade superior a 50%, com destaque para o Pará, com 62,4%, a maior taxa do Brasil (fig. 1) (IBGE, 2020).
De modo geral, a leve queda do desemprego (de 12,3%, em 2018, para 11,9%, em 2019), foi “compensada” pela alta informalidade no mercado de trabalho, somada a precarização das relações trabalhistas. Em números absolutos, são 38,4 milhões de pessoas (equivalente à população do Canadá) sem direitos trabalhistas e proteção previdenciária (IBGE, 2020). Assim, a informalidade é um indicador das desigualdades socioespaciais, em que os Estados mais pobres e sua população mais vulnerável sofrem, tanto com as limitações no atendimento à saúde, quanto à política de distribuição de renda básica, ou seja, a classe trabalhadora vive em condições de precarização de trabalho e sem defesa institucional para os períodos de crise. Esses milhões de homens e mulheres, outrora aclamados pela mídia corporativa como “empreendedores” do Brasil, foram as primeiras vítimas da crise social, com a paralisação da economia causada pela pandemia, evento global que atingiu os lugares, a exemplo da cidade de Manaus.
III. Manaus, a pandemia na metrópole amazônica
Localizada na Amazônia, a cidade de Manaus, capital do estado do Amazonas, ocupa o sétimo lugar no ranking das metrópoles brasileiras, com 2 182 763 de habitantes (representa 52% da população estadual) (IBGE, 2020). O acesso à cidade e ao Estado se faz, prioritariamente, por via aérea e fluvial, considerando que não há estrada trafegável que as conecte às demais regiões do Brasil. Desse modo, através do transporte fluvial fazem-se as conexões com o mercado internacional e nacional, cujo modais hidroviário e rodoviário são efetivados nas cidades de Porto Velho e Belém (outra metrópole amazônica), que se conectam aos demais centros econômicos do país.
Contudo, a condição de quase isolamento geográfico não se tornou obstáculo à expansão da Covid-19 na cidade de Manaus, que rapidamente passou a ser a metrópole em que a pandemia alcançou maior calamidade pública. Os primeiros registros da Covid-19 ocorreram no início de março, quando alguns cidadãos haviam retornado da Europa, elevando-se a uma situação caótica no mês de maio, quando atingiu 15 020 casos (FVS, 2020). Atualmente (26/10/2020), a cidade de Manaus registra 61 422 casos confirmados (39% da taxa estadual - 157 688 total), 2834 óbitos (63,5% do estado - 4460 total), taxa de letalidade de 4,6% (a do estado é 2,8%, a nacional é 2,9%), e taxa de mortalidade de 132,1 (109,3 no estado e 75,2 no país).
Esses números expressam a situação crítica que a pandemia levou ao estado do Amazonas. As taxas de incidência da Covid-19 superiores a 1000 casos por 100 mil habitantes, atingiram quase todos os municípios e, praticamente, toda a cidade de Manaus, onde 40 dos 61 bairros apresentaram alto grau de incidência (FVS, 2020). A abertura gradual do comércio na região central de Manaus ampliou esse processo, de modo que o Centro é o bairro com maior taxa de incidência (10 722 casos/100 mil hab., em 13/06/2020), área de intenso comércio ambulante (trabalho autônomo), feiras de alimentos, comércio de vestuários, serviços públicos e privados, que se potencializou com a retomada das atividades econômicas. Em sua totalidade, a cidade de Manaus sucumbiu à pandemia, cuja ação governamental (Estado e União) não foram as mais adequadas, urgentes e eficientes, considerando o que já se evidenciava na Europa ocidental.
Toda essa situação se agravou ainda mais com a crise no mercado de trabalho. Os dados do IBGE (2020), em 2017, indicaram que o salário médio mensal em Manaus era de 3,0 salários mínimos, com proporção de pessoas ocupadas (com trabalho) em relação à população total de 23,7%. Os domicílios com rendimentos mensais de até meio salário mínimo por pessoa alcançavam 37,9% da população. Se pensarmos as condições de moradia, apenas 62,4% de domicílios tinham esgotamento sanitário apropriado, e somente 26,3% de domicílios urbanos em vias públicas com urbanização adequada (presença de bueiro, calçada, pavimentação e meio-fio). Se observarmos que a taxa de informalidade do mercado de trabalho no Amazonas corresponde a 57,6% (média nacional é de 41,1%), a terceira maior do país (fig. 1), tem-se todo um quadro social, cuja crise foi potencializada com a geografia da Covid-19, em evento global que atingiu os lugares mais distantes na Amazônia brasileira.
Ao término deste artigo, a situação da pandemia em Manaus convergia para uma segunda onda de contaminações. Em função disso, o Governo do Estado anunciou o fechamento de parte do comércio, embora as escolas estaduais continuassem a funcionar normalmente. Com restrições aos setores comerciais e de serviços, os trabalhadores informais são os mais prejudicados, ampliando o quadro de vulnerabilidade social. Tal situação se torna mais sensível com as crescentes demandas das demais cidades do estado do Amazonas que se direcionam à Manaus, pressionando os serviços públicos de saúde. Assim, acesso à saúde pública, trabalho e renda são as variáveis que tornam mais drástica, para os mais pobres, vulneráveis, trabalhadores informais e autônomos, a geografia do novo coronavírus na metrópole amazônica, e nos estados da região norte do país (Belforte, Reis, Paulino da Silva, & Cavalcante, 2020).
No plano nacional, o desemprego atingiu a taxa recorde de 14,4%, ou seja, 13,8 milhões de pessoas sem trabalho, sendo o maior problema social do país, e a taxa de informalidade atingiu 38,0% da população ocupada, o que significa 31 milhões de trabalhadores informais, chamado pela imprensa corporativa de novos “empreendedores” do Brasil. Por sua vez, entre os meses de janeiro a outubro de 2020, a inflação dos alimentos chegou a 9,75%, em parte causada pela exportação de alimentos, resultando em mais desigualdades socioespaciais, o que levou o país a retornar ao mapa da fome (IBGE, 2020). Enquanto o Brasil assumia o terceiro lugar no ranking global de taxa de mortalidade, o governo federal propunha a privatização do Sistema Único de Saúde - SUS, fazia oposição à vacina chinesa (coronavac) e colocava-se contra a vacinação dos brasileiros, atuando mais uma vez na politização da vida e da saúde pública.
Assim, desemprego, fome e saúde pública evidenciam a face da globalização perversa, que atinge todas as regiões do Brasil.