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Finisterra - Revista Portuguesa de Geografia

versão impressa ISSN 0430-5027

Finisterra  no.115 Lisboa dez. 2020  Epub 31-Dez-2020

https://doi.org/10.18055/finis20341 

Artigo

Pandemia e desigualdades socioespaciais no Brasil. O caso de Manaus, Amazônia

Pandemic and socio-space inequalities in Brazil. The case of Manaus, Amazon

Ricardo Gilson da Costa Silva1  2  3 
http://orcid.org/0000-0002-3348-9629

1Professor, Departamento de Geografia (DGEO), Universidade Federal de Rondônia (UNIR/Brasil), Brasil

2Doutor em Geografia Humana Universidade de São Paulo (USP/Brasil),Brazil

3Coordenador, Grupo de Pesquisa em Gestão do Território e Geografia Agrária da Amazônia (GTGA/CNPq), Avenida Presidente Dutra, 2965, 76801-974, Porto Velho (RO), Brazil. E-mail: rgilson@unir.br


Resumo

Nesta reflexão, adotaram-se algumas proposições da teoria social do espaço de Milton Santos para relacionar pandemia e globalização. A expansão do novo coronavírus no Brasil se potencializou com a crise econômica e social do país. A vulnerabilidade no mercado de trabalho, renda e desemprego fez com que a pandemia encontrasse terreno fértil para ampliar a crise social, a exemplo da cidade de Manaus (Amazônia).

Palavras-chave: Globalização; desigualdades socioespaciais; evento; Milton Santos; Amazônia

Abstract

In this reflection we adopted the propositions of Milton Santos’s social theory of space to relate the pandemic and globalization. The expansion of the new coronavirus in Brazil was enhanced by the country’s economic and social crisis. Due to the vulnerability in the labour market, income and unemployment, the pandemic found fertile ground to amplify the social crisis, the example of the city of Manaus (Amazon).

Keywords: Globalization; socio-spatial inequalities; event; Milton Santos; Amazon

I. Introdução

Certamente, a geração mais nova ainda não tinha vivenciado uma crise de proporções globais que atingira todos os continentes, de modo que a palavra pandemia universalizou o cotidiano dos lugares. Sendo uma presença marcante, o novo coronavírus se tornou a expressão global na convivência humana, manifestando o que Milton Santos havia designado como “universalidade empírica”, condição que permite ao sujeito observar e vivenciar no espaço local a totalidade-mundo se realizando.

Na geografia global da COVID-19, o Brasil se tornou um dos países mais impactados. Dados atualizados em 27 de outubro de 2020, indicam que o país ocupa o terceiro lugar em número de casos confirmados (5 439 641) e de óbitos (157 946), que podem ser mais expressivos, considerando as subnotificações e a politização das estatísticas feitas pelo governo brasileiro (MS-Brasil, 2020, em 27/10/2020).

Esse texto problematiza a expansão do novo coronavírus no Brasil, entendo-o como um evento global (Santos, 1996) potencializado com a crise econômica e social do país. Assim, pensando as desigualdades socioespaciais, vulnerabilidade no mercado de trabalho, renda e desemprego, no qual a pandemia encontrou terreno fértil para ampliar a crise social brasileira, a exemplo da cidade de Manaus, adotaram-se proposições de Milton Santos (1996; 2000) em sua teoria social do espaço geográfico, que nos legou aportes teóricos para o entendimento do fenômeno da globalização como perversidade.

II. Pandemia e globalização perversa: a situação do Brasil

Em sua crítica à globalização neoliberal, Milton Santos (2000) analisara três leituras do fenômeno que alcançara o planeta Terra, atingindo de forma desigual todos os países. Primeiro, designou a globalização como fábula, anunciada pelos think tanks do neoliberalismo como um mundo aberto e fluido a todos, uma aldeia global em que as diferenças e as fronteiras políticas estariam desaparecendo, daí a ideia-força de fábula. Segundo, indicou a globalização como perversidade, como realmente se revela em seu estado de miséria e desigualdades sociais multiescalares. Em todos os continentes, e no interior dos países desenvolvidos, as faces da desigualdade social cada vez mais se acentuam, ampliando o número de pobres ao tempo em que a riqueza tende a se concentrar (Piketty, 2014). Essa perversidade é sistêmica, sendo combustível às irrupções sociais, dado a ação dos Estados-nação em delegar ao mercado o regramento da vida social, fragilizando os pobres, os assalariados e parte da classe média. Por fim, Santos admite uma outra globalização, como caminho a ser construído pelos povos, a partir das condições históricas e das possibilidades da política, da técnica e da cultura, de modo a assentar novas solidariedades à condição humana, processo que o autor qualificou como período popular da História.

Atualmente, a pandemia do novo coronavírus empiriciza a globalização em sua perversidade sistêmica (Santos, 2000), a qual produz uma crise na saúde pública e, sobretudo, neste início de século XXI, uma grande crise econômica e social abrangente do mundo, na medida em que atinge, principalmente, a população mais pobre, que não tem acesso à saúde de qualidade e que nem se pode permitir ao luxo da quarentena, dado que precisa trabalhar diariamente para garantir a renda familiar. Essas vulnerabilidades socioeconômicas se acentuam e tornam esses grupos sociais mais suscetíveis aos impactos da pandemia. Desse modo, o que parecia global e distante alcança sua expressão social mais concreta quando atinge os lugares, o cotidiano compartido, e o que nasceu - a patologia - como impacto do ser humano na natureza e no meio geográfico, aceleradamente se desdobra em pandemia, ampliando as escalas geográficas da crise social (Santos, 1996; Costa Silva, 2020).

À compreensão do fenômeno pandêmico, o conceito de evento auxilia à leitura da globalização, quando se entende que “o evento é um veículo de uma ou algumas dessas possibilidades existentes no mundo”, e “o lugar é o depositário final, obrigatório, do evento”, dado que os eventos “são, simultaneamente, a matriz do tempo e do espaço” (Santos, 1996, p. 144-145). Nesse entendimento, a pandemia do novo coronavírus é um evento global com materialidade nos lugares, tendo em vista que a sociedade local, enraizada e inscrita no lugar, não se coloca como espectadora, mas como sujeitos e famílias atingidos pelo processo em escala global. Trata-se da universalidade empírica (Santos, 1996) que aproxima realidades distantes, porém, modeladas por processos globais, evidenciando o encontro do mundo nos lugares.

Nesse processo, a metáfora global-local ganha sua expressão mais empírica, quando diariamente acompanhada por milhões de pessoas que assistem aos telejornais que, por sua vez, noticiam como a pandemia perpassa todas as latitudes do planeta. Nos diversos centros de mídias e em diferentes universidades e núcleos de pesquisa, numerosas ideias referentes a esse evento global ressaltam os impactos sociais que a pandemia causa nas nações, narrativas essas que indicam a fragilidade da população e dos lugares com maior vulnerabilidade socioeconômica, no qual tanto os indicadores de acesso à saúde demonstraram - a despeito do receituário neoliberal - a importância do Estado em suprir as necessidades da sociedade, principalmente, para os grupos sociais mais pobres, quanto às condições de trabalho e renda, que atingem a população mais vulnerável da sociedade.

A crise socioeconômica e política no Brasil atinge diretamente os pobres, os trabalhadores informais e assalariados que estão em situação de vulnerabilidade social, principalmente nas metrópoles e nos Estados das regiões Norte e Nordeste. Nos últimos anos, o quadro de desigualdade econômica tem agravado a situação social, principalmente, quando se verifica o mercado de trabalho e a crescente informalidade.

A taxa de informalidade no mercado de trabalho é um indicador de vulnerabilidade social muito importante, porque indica a intensidade da desigualdade sócioespacial e o grau de precariedade do mercado de trabalho. A informalidade refere-se ao conjunto de trabalhadores sem carteira assinada, de empregador sem registro legal, de trabalhadores autônomos e trabalhadores familiares auxiliar (Loschi, 2020). Em janeiro de 2020, a taxa média nacional da população ocupada em condições de informalidade atingiu 41,1%, seu maior índice desde 2016. A média nacional foi superada por 18 estados (variação de 41,2% a 62,4%), com forte evidência nas regiões Norte e Nordeste, onde 11 estados apresentam taxa de informalidade superior a 50%, com destaque para o Pará, com 62,4%, a maior taxa do Brasil (fig. 1) (IBGE, 2020).

De modo geral, a leve queda do desemprego (de 12,3%, em 2018, para 11,9%, em 2019), foi “compensada” pela alta informalidade no mercado de trabalho, somada a precarização das relações trabalhistas. Em números absolutos, são 38,4 milhões de pessoas (equivalente à população do Canadá) sem direitos trabalhistas e proteção previdenciária (IBGE, 2020). Assim, a informalidade é um indicador das desigualdades socioespaciais, em que os Estados mais pobres e sua população mais vulnerável sofrem, tanto com as limitações no atendimento à saúde, quanto à política de distribuição de renda básica, ou seja, a classe trabalhadora vive em condições de precarização de trabalho e sem defesa institucional para os períodos de crise. Esses milhões de homens e mulheres, outrora aclamados pela mídia corporativa como “empreendedores” do Brasil, foram as primeiras vítimas da crise social, com a paralisação da economia causada pela pandemia, evento global que atingiu os lugares, a exemplo da cidade de Manaus.

Fonte: IBGE (2020)

Fig. 1 Brasil - Taxa de Informalidade no mercado de trabalho (2020) 

III. Manaus, a pandemia na metrópole amazônica

Localizada na Amazônia, a cidade de Manaus, capital do estado do Amazonas, ocupa o sétimo lugar no ranking das metrópoles brasileiras, com 2 182 763 de habitantes (representa 52% da população estadual) (IBGE, 2020). O acesso à cidade e ao Estado se faz, prioritariamente, por via aérea e fluvial, considerando que não há estrada trafegável que as conecte às demais regiões do Brasil. Desse modo, através do transporte fluvial fazem-se as conexões com o mercado internacional e nacional, cujo modais hidroviário e rodoviário são efetivados nas cidades de Porto Velho e Belém (outra metrópole amazônica), que se conectam aos demais centros econômicos do país.

Contudo, a condição de quase isolamento geográfico não se tornou obstáculo à expansão da Covid-19 na cidade de Manaus, que rapidamente passou a ser a metrópole em que a pandemia alcançou maior calamidade pública. Os primeiros registros da Covid-19 ocorreram no início de março, quando alguns cidadãos haviam retornado da Europa, elevando-se a uma situação caótica no mês de maio, quando atingiu 15 020 casos (FVS, 2020). Atualmente (26/10/2020), a cidade de Manaus registra 61 422 casos confirmados (39% da taxa estadual - 157 688 total), 2834 óbitos (63,5% do estado - 4460 total), taxa de letalidade de 4,6% (a do estado é 2,8%, a nacional é 2,9%), e taxa de mortalidade de 132,1 (109,3 no estado e 75,2 no país).

Esses números expressam a situação crítica que a pandemia levou ao estado do Amazonas. As taxas de incidência da Covid-19 superiores a 1000 casos por 100 mil habitantes, atingiram quase todos os municípios e, praticamente, toda a cidade de Manaus, onde 40 dos 61 bairros apresentaram alto grau de incidência (FVS, 2020). A abertura gradual do comércio na região central de Manaus ampliou esse processo, de modo que o Centro é o bairro com maior taxa de incidência (10 722 casos/100 mil hab., em 13/06/2020), área de intenso comércio ambulante (trabalho autônomo), feiras de alimentos, comércio de vestuários, serviços públicos e privados, que se potencializou com a retomada das atividades econômicas. Em sua totalidade, a cidade de Manaus sucumbiu à pandemia, cuja ação governamental (Estado e União) não foram as mais adequadas, urgentes e eficientes, considerando o que já se evidenciava na Europa ocidental.

Toda essa situação se agravou ainda mais com a crise no mercado de trabalho. Os dados do IBGE (2020), em 2017, indicaram que o salário médio mensal em Manaus era de 3,0 salários mínimos, com proporção de pessoas ocupadas (com trabalho) em relação à população total de 23,7%. Os domicílios com rendimentos mensais de até meio salário mínimo por pessoa alcançavam 37,9% da população. Se pensarmos as condições de moradia, apenas 62,4% de domicílios tinham esgotamento sanitário apropriado, e somente 26,3% de domicílios urbanos em vias públicas com urbanização adequada (presença de bueiro, calçada, pavimentação e meio-fio). Se observarmos que a taxa de informalidade do mercado de trabalho no Amazonas corresponde a 57,6% (média nacional é de 41,1%), a terceira maior do país (fig. 1), tem-se todo um quadro social, cuja crise foi potencializada com a geografia da Covid-19, em evento global que atingiu os lugares mais distantes na Amazônia brasileira.

Ao término deste artigo, a situação da pandemia em Manaus convergia para uma segunda onda de contaminações. Em função disso, o Governo do Estado anunciou o fechamento de parte do comércio, embora as escolas estaduais continuassem a funcionar normalmente. Com restrições aos setores comerciais e de serviços, os trabalhadores informais são os mais prejudicados, ampliando o quadro de vulnerabilidade social. Tal situação se torna mais sensível com as crescentes demandas das demais cidades do estado do Amazonas que se direcionam à Manaus, pressionando os serviços públicos de saúde. Assim, acesso à saúde pública, trabalho e renda são as variáveis que tornam mais drástica, para os mais pobres, vulneráveis, trabalhadores informais e autônomos, a geografia do novo coronavírus na metrópole amazônica, e nos estados da região norte do país (Belforte, Reis, Paulino da Silva, & Cavalcante, 2020).

No plano nacional, o desemprego atingiu a taxa recorde de 14,4%, ou seja, 13,8 milhões de pessoas sem trabalho, sendo o maior problema social do país, e a taxa de informalidade atingiu 38,0% da população ocupada, o que significa 31 milhões de trabalhadores informais, chamado pela imprensa corporativa de novos “empreendedores” do Brasil. Por sua vez, entre os meses de janeiro a outubro de 2020, a inflação dos alimentos chegou a 9,75%, em parte causada pela exportação de alimentos, resultando em mais desigualdades socioespaciais, o que levou o país a retornar ao mapa da fome (IBGE, 2020). Enquanto o Brasil assumia o terceiro lugar no ranking global de taxa de mortalidade, o governo federal propunha a privatização do Sistema Único de Saúde - SUS, fazia oposição à vacina chinesa (coronavac) e colocava-se contra a vacinação dos brasileiros, atuando mais uma vez na politização da vida e da saúde pública.

Assim, desemprego, fome e saúde pública evidenciam a face da globalização perversa, que atinge todas as regiões do Brasil.

Referências bibliográficas

Belforte, L. C. M., Reis, R. S. P., Paulino da Silva, G., Cavalcante, M. M. A. (2020). Leitura geográfica no contexto da Covid-19 em Rondônia ao norte do Brasil [Geographical reading in the context of COVID-19 in Rondônia to the North of Brazil]. Revista Tamoios, 16(1), 145-153. DOI: https://doi.org/10.12957/tamoios.2020.50379 [ Links ]

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Recebido: 01 de Junho de 2020; Aceito: 01 de Setembro de 2020

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