I. Pandemia e confinamento
Não sendo novas, as pandemias difundem-se cada vez mais depressa. A COVID-19 provocou um choque coletivo ao revelar que, apesar da forte tecnicidade, temos grandes vulnerabilidades, e mostrar que não podemos recorrer a experiências passadas para lidar com a doença. Exige-se uma nova racionalidade para avaliar a situação aqui e agora, comparar com outros países e decidir.
Revelou também com clareza dois problemas decorrentes do modo de organização das sociedades ocidentais dominadas pelo capitalismo financeiro, nas últimas décadas. Em primeiro lugar, o desinvestimento nos serviços públicos, concretamente na saúde, mostrou a necessidade urgente de reverter caminho e repensar o papel do Estado e das relações entre Estado, sociedade e mercado. Em segundo lugar, percebeu-se a vulnerabilidade da Europa cujas cadeias de abastecimento estão muito dependentes dos países de mão de obra barata do Oriente, o que veio colocar na agenda política a necessidade de repensar as cadeias de abastecimento e produção, com provável reindustrialização dos países ocidentais.
Outro ponto de carácter geral que merece ser sublinhado é a enorme importância assumida pela tecnologia, não apenas no controle da epidemia e na saúde em geral, mas no nosso quotidiano.
Com o confinamento, a cidade que associamos a movimento e animação, deu origem a um lugar de lojas fechadas, menos transportes e quase vazios, poucas pessoas nas ruas que evitam cruzar-se com medo nos olhos onde se pressentia também vontade de solidariedade.
O número de veículos nas ruas e de aviões caiu a pique e, com isso, o ruído do trânsito, das buzinadelas, das sirenes das ambulâncias, e o stress. O silêncio ganhou espaço sobre o ruído. Cada dia pareceu domingo. As pessoas assomavam às janelas e varandas para contemplar a rua quase deserta.
No domínio urbano, o confinamento determinou um alargamento das funções desempenhadas em casa, alteração nos hábitos de consumo e revalorização da proximidade, temas que abordarei depois de dedicar um ponto à questão das desigualdades.
II. Desigualdades
Para além da crise sanitária, vai haver uma forte crise na economia global devido a perturbações nas cadeias de abastecimento e encerramento de muitas empresas, com consequências pesadas na produção e no emprego, revelando diferentes vulnerabilidades entre pessoas e territórios (Mendez, 2020; Chronopoulos Lukas, & Wilson, 2020). No geral, as crises como a que estamos a viver afetam todos, mas os danos são mais gravosos nos mais vulneráveis e desfavorecidos, praticamente sempre os mais pobres. Na pandemia provocada pela COVID-19 a vulnerabilidade tem uma dimensão económica e outra etária. Deste ponto de vista, os idosos e os jovens parecem ser os mais afetados.
Conhece-se o risco acrescido dos idosos e dos que têm problemas de saúde crónicos, mas também dos que vivem em condições de sobreocupação e deficientes condições de higiene, aos quais se acrescentam os que continuaram a ter de sair de casa para procurar trabalho ou para exercer a atividade em serviços básicos à vida, saúde e segurança de todos. Pelos contactos sociais a que são obrigados e dependência dos transportes coletivos sofrem risco agravado de infeção, como se verificou com a maior incidência da doença nas mulheres, numa primeira fase e principalmente no Norte do país, e com vários surtos na região de Lisboa, já no início de junho. Muitos destes fazem parte da “nova classe trabalhadora” progressivamente marcada por desigualdades de género e étnicas, sujeitos a um duplo risco como lembra Harvey (2020). Para além da maior exposição direta, arriscam-se a sofrer corte, quando não mesmo total ausência de rendimentos, pela crise global induzida pelo vírus.
Muitas empresas aderiram ao lay-off, outras dispensaram colaboradores e os rendimentos caíram a pique. Um inquérito efetuado pela Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal (AHRESP), entre 1 e 3 de abril com 1819 respostas válidas, revelou que 74% das empresas de hotelaria e restauração estavam encerradas, cerca de 50% iam avançar para o lay-off, 30% não tinha conseguido pagar os salários em março e 80% estimavam não faturar em abril e maio. Precariedade e informalidade do trabalho empurraram muitos para a pobreza extrema e crescem os pedidos de ajuda. Outro sinal de constrangimento financeiro é dado pelo aumento das marcas próprias nos artigos não perecíveis, de 34% no final de 2019 para 40% em maio, nas lojas Pingo Doce.
Os jovens foram igualmente alvo da crise, numa dupla vertente. Para os mais novos o confinamento representou perda da autonomia em construção e do convívio que a escola deixou de assegurar. Apenas a tecnologia foi escape, embora para os privados do acesso às condições requeridas pelo ensino à distância agrave a desigualdade. Para os jovens adultos, instalou-se a crise do emprego, para muitos a segunda no período de entrada na vida ativa, o que arrasta o adiamento de sonhos e projetos de vida.
III. Aspetos de mudança na vivência urbana
1. A plurifuncionalidade da casa
A 16 de março encerraram as escolas e entraram em vigor várias restrições no acesso a estabelecimentos comerciais e de restauração. No dia 18 foi decretado o estado de emergência e grande parte dos estabelecimentos comerciais e muitos serviços não essenciais fecharam as portas. As ruas ficaram praticamente vazias, mas a cidade manteve a sua vitalidade; de forma invisível e diferente as pessoas continuaram a trabalhar, comunicar, comprar, viver, “em cada rua deserta [Lisboa] ainda resiste” (Alegre, 2020).
Grande percentagem dos trabalhadores mais qualificados passou a trabalhar a partir de casa, onde também ficaram as crianças e os jovens, obrigados a seguir as aulas à distância. Deste modo, a casa adquiriu novas funções e sentidos. Para além de abrigo, converteu-se em escritório, em lugar de compras e de lazer. (Ascher, 2001) alertou para a importância que a portabilidade e as TIC têm para converter o transporte e a casa em lugar de trabalho. O confinamento alargou imenso essa potencialidade, atenuando impactes da economia, mas com algumas consequências graves para a vida social e familiar, aumento de conflitos e violência como (Chung, Xu, e Zhang, 2020) e outros têm lembrado.
Os empresários perceberam que as empresas podiam funcionar bem e poupar despesas com os trabalhadores em casa, mas ligados em rede. Parece, pois, que o trabalho à distância veio para ficar, pelo menos nalguns sectores e atividades, possivelmente com carácter parcial (uns dias por mês ou por semana). Isto constitui um desafio para o desenho e funcionamento dos edifícios de escritórios e alguns, até de prestígio, podem tornar-se rapidamente estruturas obsoletas. Também o aumento do trabalho à distância terá implicações no volume das deslocações pendulares e na procura de serviços complementares como cantinas, ginásios ou lojas.
O confinamento no lar, o trabalho no domicílio, a redução da mobilidade, do tempo com deslocações e da pressão da velocidade, o encerramento dos estabelecimentos, forçaram uma nova relação não apenas com o espaço de atividade quotidiana, mas também com o tempo. Foi preciso racionalizar o uso do tempo e acomodar espaços próprios para todos nas suas várias tarefas e obrigações, tanto mais difícil no caso das famílias confinadas em casas pequenas. Criaram-se novas rotinas e descobriu-se que é possível ter tempo para várias atividades, algumas que nem praticávamos, i.e. vivemos com e no tempo lento.
2. Alterações no consumo
Dados da China revelam que períodos de quarentena longos provocam mudanças no consumo (Cohen, 2020). Outras informações apontam para um aumento acentuado das despesas numa primeira fase, próxima da declaração da situação de pandemia, para depois, com o confinamento, se assistir a uma redução acentuada, embora com diferença entre regiões e categorias de bens. Também se notou um reforço da importância do comércio online.
Na semana de 24 fevereiro a 1 março, as vendas nos hiper e supermercados do país rastreados pela (Nielsen, 2020) aumentaram 14% nas categorias de alimentação, produtos de higiene e frescos, valor bem acima dos 6% verificados desde o início do ano. Lisboa com 18%, Setúbal, Leiria e Santarém foram os distritos onde o consumo mais cresceu. Nas primeiras semanas de março houve uma corrida aos supermercados e a certos bens que chegaram a desaparecer das prateleiras, apesar de apelos de órgãos ligados ao sector. No dia 25 o governo informava que se tinha retomado a normalidade na afluência aos supermercados.
As compras privilegiaram produtos alimentares básicos (arroz, massas, farinha, açúcar) e conservas, com crescimentos acima dos 200%, produtos instantâneos, alimentação infantil, congelados, azeite, óleos e temperos, com aumentos superiores a 100%. Os produtos de higiene pessoal e do lar também registaram grandes incrementos tendo as vendas de papel higiénico subido 200%, entre 9 a 15 de março. As quotas destes produtos mantiveram-se altas na semana seguinte, tendo-se Lisboa e Setúbal destacado pelos maiores incrementos. Este comportamento dos consumidores é consistente com uma atitude de armazenamento preventivo, mas não deixa de revelar também alguma irracionalidade associada a pânico que leva a adquirir o que não se precisa, porque é escasso nas prateleiras ou os outros clientes levam. Em sentido inverso, houve quebra nas vendas de produtos de maquilhagem (54%), perfumes (53%) e produtos para calçado (47%), justificada pela permanência em casa.
O confinamento refletiu-se numa quebra geral de vendas entre 23 a 29 de março, menos 6% (12,5 milhões) face a 2019 e menos 12% em comparação com a semana anterior. A cadeia Pingo Doce registou em abril quebras nas vendas de 16% em relação a abril de 2019, apesar de ter ocorrido a Páscoa.
A composição por categorias manteve-se, tendo-se notado alguns ajustes com diminuição das compras nos artigos de higiene pessoal e do lar, designadamente no papel higiénico e produtos para a roupa que tinham registado aumentos muito expressivos nas semanas anteriores. Outra alteração no consumo referida pelas grandes cadeias refere-se à maior procura de artigos de produção nacional, tendência também presente noutros países.
No domínio do online, em termos universais, as vendas da semana que terminou a 14 de março foram 91% mais altas do que as efetuadas um ano antes. Em Portugal, na semana de 23 a 29 de março também o e-commerce aumentou 77% no que respeita a ocasiões de compra e 75% na captação de lares. Entre 6 a 12 de abril as vendas online continuaram com crescimentos muito elevados, acima de 100%. Com este aumento as grandes cadeias tiveram dificuldades em dar resposta atempada. Na 1ª quinzena de março o Continente agendava as entregas, habitualmente realizadas até 48 horas, para daí a um mês, situação que se mantinha no início de abril. Também há notícia do grande aumento das compras online nos eletrodomésticos de consumo como televisores, consolas, impressoras o que se relaciona com as funções acrescidas no domicílio.
A Confederação do Comércio e Serviços de Portugal (CCP), e os Correios de Portugal (CTT) assinaram, na última semana de março um protocolo que dava acesso às plataformas digitais dos CTT para oferecer um novo serviço Criar Lojas Online. Com isso procurava-se acelerar a digitalização dos negócios, assegurar às empresas condições para continuar a operar com as lojas fechadas e, num prazo mais largo, fornecer soluções multicanal.
3. Re-territorialização: a valorização da proximidade
Com os consumidores em casa e restrições às deslocações, as pessoas optaram por fazer as suas compras na proximidade da residência, nas mercearias, talhos e outras lojas tradicionais ou mesmo nos supermercados de bairro, reforçando uma tendência que já se vinha a sentir com os investimentos das grandes cadeias de distribuição alimentar dirigidos para o interior dos núcleos urbanos, com unidades de média ou mesmo pequena dimensão. Um estudo da Nielsen (2020) de 15 de abril refere alterações nos lugares de compra habitual no período COVID em três países. No caso da Itália o deslocamento das compras para os mercados, pequenas lojas e comércio de conveniência subiu de 9 para 24%, enquanto as compras em super e hipermercados desceram de 68 para 38%.
Alguns dos estabelecimentos de proximidade “reinventaram-se” facilitando entregas ao domicílio ou em take-away nos bairros, iniciativa que a Câmara Municipal de Lisboa (CML) em parceria com a AHRESP, a União de Associações do Comércio e Serviços (UACS) e as Juntas de Freguesia apoiou durante o estado de emergência, associando táxis e serviços de estafetas. A CML divulgou a oferta disponível no comércio local da cidade através de uma plataforma com mapa interativo e de listagens dos estabelecimentos por freguesia.
Outro aspeto da valorização da proximidade prende-se com o aumento da apropriação do espaço público pelos residentes, para caminhadas, para estar com os filhos, para usar a bicicleta. Quando o tempo melhorou e se ganhou coragem para sair, surgiram crianças a andar de bicicleta ou trotineta em liberdade, coisa que não sucedia nos dias “normais”.
IV. Nota final
É difícil fazer previsões, especialmente porque não conhecemos todos os fatores em presença nem as suas relações. O modo como se fará a retoma da economia e a existência ou não de uma segunda onda de infeções no outono-inverno mantém tudo em suspenso. Tudo pode voltar a ser igual, mas os desastres podem dinamizar mudanças e creio que isso vai acontecer, porque as pessoas puderam experimentar e perceber que há modos alternativos de trabalhar e de viver que funcionam. Vejo possível um novo normal com alterações significativas no trabalho, nos espaços de vida e talvez nas deslocações. Pelo menos para alguns, o teletrabalho parcial e as compras a partir de casa vão continuar.
É de prever uma quebra acentuada e alteração no consumo devido à redução dos rendimentos e perda de confiança. Há unidades que não vão reabrir e o desemprego vai crescer, não apenas no comércio, mas também nos serviços, com grande destaque para os que se ligam com o turismo, sector com grande peso na economia do país, nas exportações e no emprego, marcado por forte sazonalidade e precariedade.
No domínio do comércio é provável o fortalecimento da proximidade, tendência que importa apoiar por razões de sustentabilidade e resiliência, bem como grande expansão do comércio e de serviços, como os de saúde, online e multicanal.
A recuperação será diferente nos vários ramos de atividade e zonas das cidades. Assim, é de antever problemas nas áreas centrais como a Baixa de Lisboa (e também a do Porto) cuja dinamização estava muito ligada ao turismo, o que vai exigir um esforço de acompanhamento e intervenção colaborativa entre o sector público e os atores privados.
Vai levar tempo, umas mudanças serão visíveis mais cedo do que outras, mas sem dúvida continuará a assistir-se à revalorização da proximidade em simultâneo com as conexões à distância, ao crescimento do online e a uma maior integração do online e do offline, do mundo real e do virtual, e talvez a práticas de vida mais sustentáveis, designadamente, mas não apenas, na mobilidade.