As cidades inteligentes representam tanto visões de futuros urbanos quanto reproduções práticas do tempo presente. Em meio à crise desdobrada pela pandemia COVID-19, por mais que sejam observadas mudanças significativas em relação a estes imaginários urbanos, a prática de cidades inteligentes continua a conservar o seu modelo habitual. Apesar disto, neste momento histórico singular, os futuros alternativos ganham visibilidade através de reflexões sobre uma crise de dimensões globais e de aspetos disruptivos. Nesta perspetiva, nota-se o crescimento de discussões sobre modelos alternativos de desenvolvimento urbano que questionam os padrões atuais. Como os atores das cidades inteligentes irão responder a esta crise? Haverá uma continuidade em incentivar iniciativas com foco em soluções tecnológicas que atendem sobretudo aos interesses corporativos? Ou haverá uma transição para modelos alternativos e socialmente inclusivos que priorizem as necessidades dos cidadãos? Neste sentido, observa-se, em pesquisas académicas, uma união de esforços com objetivo de evitar que o mundo pós-COVID-19 se mantenha igual ao anterior através da transformação do status-quo do regime atual e de mudanças paradigmáticas, por exemplo, pelo meio de estudos críticos do sistema capitalista globalizado e seus impactos socioambientais. Assim como argumentado por Bina, Ferrão, e Tulumello (2015), o objetivo final de crescimento económico como modelador de futuros urbanos precisa ser questionado. Este singular momento histórico poderá ser oportuno para enriquecer perspetivas esperançosas e lutar pelo afastamento do business as usual ou “antigo normal”, em busca de futuros possíveis e preferíveis, mais desejáveis e sustentáveis (fig. 1).
Durante a última década, observou-se o crescimento do debate crítico sobre as cidades inteligentes, principalmente no âmbito da geografia económica e social e dos estudos urbanos. Diferentes linhas de pensamento apresentam perspetivas variadas sobre o tema, pelo que podem ser descritas em três escolas: 1) os académicos que se baseiam no determinismo tecnológico, fundamentados na neutralidade da tecnologia e na crença em seu “solucionismo” (Morozov, 2013); 2) os estudiosos que defendem a utilização da tecnologia como uma ferramenta para políticas públicas centradas nos cidadãos; e 3) os críticos que questionam as relações de poder, a comercialização do espaço público e o domínio tecnológico para criar uma ordem social neoliberal. Recentemente, mudanças de paradigma têm sido investigadas, por exemplo, no estudo da busca por práticas alternativas na formulação de políticas de cidade inteligente, como no caso de soberania tecnológica em Barcelona. Autores como Rob Kitchin e Ayona Datta assumem o protagonismo nesta matéria ao questionarem o modelo empreendedor neoliberal adotado na prática de cidades inteligentes que são atualmente planeadas e desenvolvidas com base nos interesses de fornecedores e grandes empresas de tecnologia. Estes dois autores, dentre outros, argumentam que o padrão favorece o avanço dos interesses corporativos e do Estado, de forma a não atender às necessidades dos cidadãos de forma geral e, principalmente, de grupos mais vulneráveis. No livro The Right to the Smart City (O Direito à Cidade Inteligente), Cardullo, Di Feliciantonio, e Kitchin (2019) defendem a necessidade de repensar a cidade inteligente de forma emancipatória, a fim de beneficiar todos os cidadãos, não apenas os grupos privilegiados. Este questionamento é ilustrado através do caso de Chennai, na Índia, no segundo capítulo do livro, em que uma estratégia de limpeza contida no plano de cidade inteligente promoveu a exclusão de grupos marginalizados compostos por trabalhadores informais ao desconsiderá-los no projeto, o que resultou no seu deslocamento para fora do centro da cidade e no aumento das desigualdades sociais já existentes. Esta passagem demonstra como o paradigma atual de cidade inteligente ainda está enraizado em discursos e hábitos pragmáticos, instrumentais e paternalistas, o que diverge de conceitos como os direitos sociais, a cidadania política e o bem-estar, características que representam o direito à cidade inteligente.
A partir desta estrutura teórico-conceitual, surge o questionamento sobre o momento pós pandemia COVID-19: será esta uma oportunidade para redirecionar e reformular as políticas de cidade inteligente em direção a futuros mais desejáveis e sustentáveis? Até ao momento da elaboração deste texto reflexivo, notou-se que, assim como antes da pandemia, a questão da privacidade continua um tema central nestas iniciativas, pelo que se observa em soluções tecnológicas criadas em resposta à COVID-19. Por exemplo, a parceira entre as grandes corporações de tecnologia Google e Apple para desenvolver uma aplicação de rastreamento de infetados que tem como objetivo reduzir a disseminação do coronavírus foi amplamente criticada, uma vez que ressalta questões relativas à privacidade no tratamento de dados dos cidadãos. Em caso similar, Datta (2020) retrata a utilização de tecnologias de vigilância na Índia para tentar combater a pandemia, criticando o governo de se aproveitar da crise e utilizar uma aplicação móvel de controle dos cidadãos de forma experimental com o objetivo de aumentar o seu alcance em futuros métodos de vigilância íntima.
No contexto Europeu anterior à COVID-19, apesar de se observarem sinais de mudança no discurso de cidades inteligentes para uma abordagem mais colaborativa, conforme sugerido no estudo sobre a agenda de dados abertos de Lisboa, em Portugal (Carvalho & Vale, 2018), os aspetos neoliberais e não-democráticos destas políticas urbanas ainda são intensamente criticados. Por exemplo, no caso da iniciativa da Comissão Europeia, European Innovation Partnership for Smart Cities and Communities (Parceria Europeia de Inovação para Cidades e Comunidades Inteligentes), em que houve uma tentativa de reformular os projetos de cidade inteligente para aumentar o foco nos cidadãos e endereçar os direitos sociais, a cidadania política e o bem comum, que não foi bem sucedida (Cardullo & Kitchin, 2019).
De forma similar, o projeto Lisboa Inteligente, da Câmara Municipal de Lisboa, que consiste em uma série de iniciativas com o objetivo de tornar a capital uma cidade inteligente, apresenta uma continuidade dos padrões anteriores, tanto na escala europeia quanto na escala portuguesa. O projeto Lisboa Inteligente precede uma estratégia nacional marcada pelo projeto PlanIT Valley, que previa a criação de uma cidade completamente nova para testar tecnologias de cidades inteligentes e que nunca foi efetivamente construída, ficando assim reconhecido como um caso de adoção de estratégia implementada de cima para baixo e orientada para fornecedores (Carvalho & Vale, 2018).
No projeto Lisboa Inteligente, uma aplicação chamada Lisboa.24 foi lançada no período da pandemia com o suposto objetivo de comunicar aos cidadãos sobre os acontecimentos da cidade como, por exemplo, situações de emergência, intervenções urbanas, condicionamento de trânsito, parques de estacionamento e redes de bicicletas compartilhadas. Esta aplicação solicita a localização do utilizador, solução que segue os mesmos princípios das iniciativas anteriores dentro do mesmo projeto, como a aplicação chamada Na Minha Rua LX, um canal para que os cidadãos reportem ocorrências que necessitam de intervenções urbanas da Câmara Municipal. Isto é, este projeto perpetua o modelo fundamentado no solucionismo tecnológico e enfatiza as questões de privacidade, por exemplo, ao requerer que o utilizador forneça a sua localização em tempo real, propagando o papel dos cidadãos apenas como pontos de dados e consumidores de aplicações (Cardullo & Kitchin, 2019).
Em contrapartida, a cidade de Barcelona, conforme mencionado, segue um modelo alternativo de desenvolvimento de cidade inteligente. Este projeto de cidade inteligente da cidade, sugerindo uma mudança de paradigma, pelo que agrega iniciativas voltadas para os interesses dos cidadãos e para a inclusão social. Sob o conceito de soberania tecnológica, o projeto adota as tecnologias digitais como ferramentas para atender às necessidades da população, em oposição à adoção da tecnologia para interesses corporativos. Uma das iniciativas do projeto, a plataforma Decidim.barcelona promove debates populares, democráticos e participativos como, por exemplo, ações de cocriação de políticas e de orçamentos abertos. Em outra iniciativa, o governo municipal de Barcelona lançou um canal público para reclamações anticorrupção adotando uma tecnologia que garante o anonimato dos cidadãos que utilizam a ferramenta. Assim, evitaram problemas relacionados à privacidade dos dados pessoais e asseguraram os direitos digitais de seus utilizadores. De acordo com Morozov e Bria (2018), Barcelona tem uma abordagem crítica à cidade inteligente neoliberal já que em vez de concentrar-se nos interesses corporativos, desenvolve políticas para cidades digitais democráticas e abertas, construídas de baixo para cima. A cidade passou por uma reorientação, pelo que se observou uma transição de um plano governamental com objetivo de criar uma cidade inteligente neoliberal para uma nova abordagem política, mais participativa e cidadã, sob a noção de soberania tecnológica, em que a tecnologia é orientada para servir os residentes e produzida como um bem comum.
Ao investigar diversos casos de cidades inteligentes, diferentes abordagens conceituais e modelos praticados, ressaltam-se aspetos específicos que permitem uma caracterização de cidades que estão mais avançadas na reformulação do “antigo normal”, em oposição cidades que apresentam características de continuidade do business as usual, isto é, da perpetuação de modelos atuais. Através da comparação de iniciativas implementadas em Lisboa e em Barcelona, assim como a consideração de outros exemplos globais, nota-se que já havia uma tendência de prática de modelos de desenvolvimento de cidades inteligentes fundamentados no urbanismo empreendedor e que, no contexto da pandemia COVID-19, são mais evidentes os problemas e os riscos destes modelos. Assim, torna-se ainda mais importante do que antes da pandemia, a busca por novos modelos como o adotado em Barcelona, que procura resolver problemas sociais, políticos e económicos através de soluções democráticas, com a utilização de tecnologias digitais como ferramentas e não como objetivos finais, de forma a proteger os direitos digitais e desenvolver políticas baseadas na justiça e na inclusão social.
Assim como sugerido por Harvey (2020) e Latour (2020), o momento global marcado pela pandemia COVID-19 deve ser aproveitado para repensar as dinâmicas sociais e económicas. Harvey (2020) argumenta que o projeto neoliberal das últimas quatro décadas deixou a esfera pública exposta e despreparada para enfrentar uma crise com estas dimensões. Segundo o geógrafo, esta crise atinge uma espiral de crescimento e de expansão intermináveis caracterizada pelo modelo consumista que domina os países mais ricos. Ele observa também que, de forma contraditória, os países menos neoliberais, como a China e Coreia do Sul, atravessaram a pandemia com menos impactos do que os países mais neoliberais, como a Itália, por exemplo. Porém, questiona que este sucesso tenha ocorrido devido ao emprego de políticas de vigilância pessoal em níveis invasivos e autoritários, ou seja, apesar de estes países terem sido mais eficientes em controlar a pandemia, este controle ocorreu por meio de estratégias problemáticas e rodeadas de questões relativas à privacidade dos cidadãos. Já Latour (2020), defende o uso da imaginação para projetar alternativas ao período pós-crise COVID-19, de forma que a retomada da economia não fortaleça o regime anterior, o “antigo normal”. Para ele, esta crise expôs a capacidade, antes escondida, de frear o “trem do progresso”, ou seja, de reduzir a intensidade de produção e consumo, características da globalização contemporânea. O autor interpreta esta exposição como uma oportunidade de repensar hábitos e de imaginar gestos que atuem como barreira a este modelo de produção.
Seguindo as reflexões de Harvey (2020) e Latour (2020), podemos e devemos observar as oportunidades que a COVID-19 despertou. No âmbito das cidades inteligentes, em que mudanças de paradigma já são observadas, o momento pode servir para impulsionar os modelos alternativos e quebrar a perpetuação do “antigo normal”, e, seguindo esta linha de pensamento, desenvolver cidades mais inclusivas e sustentáveis através da esperança em novos imaginários urbanos.