Nesta reflexão, o nosso foco será a utilização de segundas residências numa situação de confinamento e a sua relação com o teletrabalho, do inglês “teleworking”, ou telependulação, uma tradução livre do termo “telecommuting”. Ambos os termos foram cunhados pela JALA International, uma empresa americana com origem na Califórnia do Sul, presidida por Jack Niles, do qual tive conhecimento, já nos anos 80, através da obra seminal The telecommunications-transportation tradeoff: options for tomorrow inicialmente publicada em 1976, com sucessivas edições até 2007. Ainda em 1992 (18 e 19 de junho) tive a oportunidade de participar, incentivado pelo João Ferrão, no II Meeting da ECTF (European Community Telework Forum), realizado em Santiago de Compostela (Galiza), onde também estiveram representantes daquela empresa. Posteriormente, a própria Comissão Europeia produziu bastante literatura cinzenta sobre o tema e foram inclusive assinados alguns protocolos com regras genéricas de funcionamento desta forma de trabalho apoiada em meios telemáticos, por parte de organizações do mundo do trabalho. Como nota breve, tem de se salientar que a identificação da necessidade de incentivar o teletrabalho surge em finais dos anos 60, devido à gravidade dos problemas de tráfego na cidade de Los Angeles, tendo já nessa altura muitas empresas optado por turnos alternados casa/escritório de uma parte dos seus trabalhadores.
Uma visão condensada e de síntese sobre os aspetos positivos e negativos do teletrabalho baseado na casa do trabalhador (há aquele que, já nos anos 80, poderia ser realizado em instalações de co-working, como forma de obviar algumas das externa lidades negativas do trabalho em casa), pode ser estruturada nos seguintes aspetos gerais de carácter supressivo ou condicionador: 1) a supressão da deslocação casa/emprego; 2) a supressão da utilização de instalações específicas, normalmente o escritório; 3) a supressão das relações pessoais de proximidade. Cada um destes aspetos reflete-se em consequências (efeitos) que se podem estruturar, por sua vez, de acordo com as diferentes dimensões operativas da vida humana (organização temática dos elementos, mecanismos e processos de enquadramento e funcionamento da vida humana traduzíveis em fixos e fluxos espaciais): ambiente natural, sociedade, economia e cultura. Vamos deter-nos nas referidas consequências, mas apenas do ponto de vista das atuais condições de confinamento, uma situação particular que se reflete numa maior amplitude de efeitos, dadas as relações cruzadas, por exemplo, com alguns serviços públicos.
Relativamente ao “ambiente natural”, o principal efeito, e de sinal positivo, é a redução significativa da poluição atmosférica, num contexto em que se reduzem drasticamente as deslocações casa-emprego, do mesmo modo que também se reduzem os resíduos do escritório, mas aumentam os resíduos residenciais, neste caso com um sinal negativo pois, por exemplo, a reciclagem fica comprometida pela forte redução da capacidade de recolha e triagem de resíduos (Cf. o caso da cidade de Lisboa).
No âmbito da “sociedade”, onde incluímos as problemáticas populacionais e familiares, podem ocorrer fenómenos distópicos derivados de algum desajustamento entre o tempo de trabalho e, por exemplo, o da parentalidade ou da conjugalidade. Há efeitos positivos, como a capacidade de executar tarefas diversificadas e dar resposta a problemas variados, mas também negativos, sendo neste último caso evidente a gestão do tempo disponível para aplicação em ambientes funcionalmente diferenciados que se torna o principal problema.
No que respeita à “economia”, os efeitos são mais abrangentes e merecem ser apresentados de forma segmentada de acordo com os aspetos gerais acima enunciados: i) os que derivam da inexistência de deslocação, refletem-se, por exemplo, em poupanças para o trabalhador, mas em perda de receitas para as gasolineiras ou as concessionárias das autoestradas; ii) os que resultam da não utilização do escritório começam por ser uma poupança para a empresa, a qual vai, por exemplo, reduzir custos operacionais como a provisão de overheads sobre o trabalho, mas a médio e longo prazo vai ter implicações, por exemplo, no funcionamento do mercado imobiliário, levando a uma eventual redução, tanto da oferta como da dimensão ou tipologia dos espaços de escritório; iii) a supressão das relações pessoais de proximidade, na ótica do teletrabalho, talvez seja o aspeto menos relevante para o domínio económico, ainda que também aqui possam coexistir duas visões antagónicas: por um lado, o aumento da produtividade pela inexistência de fatores distrativos mas, por outro, a diminuição dessa mesma produtividade devido à menor capacidade de interação pessoal que poderia ajudar, de forma mais expedita que a assistência remota, na solução de dúvidas e problemas técnicos, por exemplo.
O domínio da “cultura” talvez seja o menos influenciado pelo teletrabalho, mesmo numa situação de confinamento, pois retiradas todas as influências suplementares derivadas do contacto direto com objetos, eventos ou comemorações, ou pessoas de outras origens ou com outras atitudes, conhecimentos e práticas, pode afirmar-se que as atuais tecnologias de informação e comunicação providenciam boa parte parte do que é necessário à vivência cultural da maior parte dos indivíduos.
Apesar da pandemia, o teletrabalho já assume uma forte “posição” em, e entre, várias partes do globo, mas apenas nos “sítios” onde a oferta de infraestruturas e, logo, serviços telemáticos, tenham níveis aceitáveis de comunicação. “Sítio e posição” são dois conceitos fundamentais da Geografia que o de georreferenciação não consegue substituir. Comerciar à distância com a China ou os EUA, adquirir a execução de trabalhos de restituição cartográfica à distância na Índia ou na Tailândia, ou preparar a organização de eventos com participantes de todo o Portugal, são apenas alguns exemplos que fazem parte da minha experiência pessoal. Muitos outros se poderiam acrescentar, tal como já tinha sido previsto nos anos 80 por Christopher Jensen Butler, Jorge Gaspar e Svend Erik Jeppesen, num artigo onde já se discutiam as consequências de serviços de telecomunicações acima dos 140Mbit/s, quando na altura o padrão eram os 64kbit/s, o suficiente para o funcionamento de serviços de comutação de dados apoiados em telefax, por exemplo (Jensen-Butler, Gaspar, & Jeppesen, 1986). Atualmente, 200 Mbit/s são um padrão comum na prestação do serviço habitacional por parte dos fornecedores de acesso à internet.
A questão fundamental talvez deva ser porque só agora se viu a necessidade de colocar em teletrabalho muitas pessoas e alguns dos serviços que, até aqui, bem poderiam ter beneficiado desse regime. Isto é, apesar de continuar a ser verdade a velha máxima de que “a necessidade aguça o engenho”, e por isso a Covid-19 ter ajudado a algumas transições ou mudanças, existe um grande número de tarefas e atividades, tanto públicas como privadas, que já poderiam estar no regime de teletrabalho, nomeadamente toda a prestação de serviços dependente apenas da disponibilidade de informação, transmitida ou baseada/armazenada, e de meios de certificação digitais. Um levantamento exaustivo dessas possibilidades e formas de prestação, incluindo a monitorização da execução e dos resultados, poderá vir a ser um dos adventos destas experiências obrigadas pela pandemia.
A primeira pessoa que me alertou para a ligação entre teletrabalho e segundas residências foi Jorge Gaspar, quando nos encontrávamos em trabalho de campo no âmbito do projeto “Telecomunicações e desenvolvimento regional em Portugal: um projeto para a região Centro”, ainda nos anos 80. O seu exemplo era da Suécia, onde estudou, e tratava-se do “académico na sua cabana no meio da floresta, mas com ligações de grande velocidade, por modem, aos seus colegas e alunos na grande cidade”. Muito mais tarde, já em 2005, num projeto norueguês que contava com a participação da universidade de Lund, tive oportunidade de verificar isso, com algum diacronismo face ao que já era a evolução portuguesa. O teletrabalho e as segundas residências juntavam o melhor de dois “mundos”: “o trabalho sem sair de casa, e na casa de onde não se queria sair”.
De facto, nos países nórdicos, as segundas residências fazem parte da vida de cerca de metade da população e, particularmente para os noruegueses, elas suportam uma cultura nacional de atividades de ar livre para todas as idades, tanto de inverno, como de verão. Pensamos que o exemplo desta parte do globo nos ajudará a perceber melhor o que já se passa atualmente em Portugal. Com a pandemia, Tor Arnesen (Arnesen, 2020), fez notar ideias interessantes sobre o modo como as segundas residências foram equacionadas na Noruega, no contexto da propagação da Covid-19. Essas ideias, para além de evidenciarem a forte diferença comparativa no tratamento dessas residências face ao que se faz em Portugal, nomeadamente em termos do ordenamento do território, ainda clamam por uma ideia de home (o “lar”), independente do número de casas (ou fogos, ou houses), já que “dwelling as a process always involves personal commitment to place” (Müller & Marjavaara, 2012, p. 55). Isto é, a noção quasi-Heidgeriana ou de tagline de que a casa (o lar) é “onde está o nosso coração”, implica uma visão muito mais abrangente do conceito de habitar e de ordenar as casas onde residimos, desde a primeira à segunda residência, não obnubilando o conceito pós-moderno de multi-residência, mais recentemente transformado no de multi-local living (Dick & Duchêne-Lacroix, 2016), pela maior importância que têm as relações com a geografia e com os lugares (mobilidade, topofilia e terrafilia) (Oliveira, Roca, & Leitão, 2010), mais do que com a arquitetura (as características da casa enquanto edifício).
A frequência de utilização por necessidade “vital” de alternância de ambiente urbano-rural, juntamente com as tipologias familiares e as disponibilidades de infraestruturas, equipamentos e serviços, levaram as autoridades norueguesas a pedir o regresso das famílias às suas primeiras residências, já que havia o receio de que os equipamentos e serviços públicos locais, nomeadamente os serviços de saúde, pudessem não ter capacidade de resposta à procura gerada pela pandemia. Na Noruega trata-se de um sistema funcionalmente hierarquizado e perfeitamente delimitado. Há aglomerações de segundas residências que dependem funcionalmente de vilas ou aldeias rurais que, por sua vez, dependem de cidades ou centros regionais. Não é como em Portugal, onde as segundas residências se encontram disseminadas por todos os aglomerados ou, porque num contexto rural pós-produtivista, em desordenada dispersão pelos campos.
Em Portugal, durante o estado de emergência, foram detetadas inúmeras situações de pessoas e famílias que rumavam às suas segundas residências. A proibição de deslocação entre concelhos foi uma das medidas ativas de redução da mobilidade. Ninguém questionou essa limitação de movimento, talvez porque, na essência, o pensamento dos governos norueguês e português fosse muito semelhante. Essencialmente, a questão principal, numa ótica de conjunto, é a de que a propagação do vírus em áreas rurais de localização preferencial de segundas residências é menos perigosa, mas mais difícil de combater, dadas as limitações de equipamentos e serviços de saúde. No caso da Noruega, o governo central pediu o regresso das pessoas às áreas urbanas das suas primeiras residências. Em Portugal, parece ter-se privilegiado a inibição, ainda que de forma não explícita, do movimento inverso, da primeira para a segunda residência. No entanto, há uma outra diferença substancial entre os dois países que espelha também duas realidades bem diferentes relativamente ao fenómeno das segundas residências. Nos dois casos, estas são um local de refúgio e de segurança, mas enquanto na Noruega elas começaram por acolher uma população urbana que fugia das áreas com maiores probabilidades de infeção, em Portugal, para além de um movimento idêntico, acresceu um outro que, quanto a nós, foi muito responsável pela expansão da epidemia em áreas rurais: a chegada de emigrantes que interromperam ou perderam os seus empregos em países de acolhimento onde acabaram por se revelar situações mais graves, tais como a Espanha, a França e a Suíça.
Em qualquer um dos casos, seja em Portugal seja na Noruega, a pandemia da Covid-19 deve ser encarada como uma oportunidade para a reformatação das nossas relações com o trabalho, independentemente da “residência” a partir da qual ele se realiza. Neste caso, será fundamental a continuação do investimento em serviços telemáticos de grande qualidade, de que as redes 5G começam a ser um avanço. Será necessário, também, encontrar formas de dimensionamento e funcionamento de serviços locais de saúde, nomeadamente em áreas de baixa densidade onde as segundas residências, ainda que sazonalmente, serão um parceiro interessante na ajuda da viabilização financeira desses serviços. Também neste caso, o recurso a serviços de telemedicina poderá ser uma possibilidade bem-vinda. Por último, não se podem esquecer todos os investimentos em equipamentos e infraestruturas que o Estado foi executando ao longo de décadas e que terão de ser mobilizados para formas de proteção e combate a futuras ameaças que impliquem o confinamento das pessoas. Segundas residências e teletrabalho poderão ser uma associação com futuro, tanto nos modos de vida, como na logística desses combates.