I. Introdução
O tema do temporário no planeamento urbano tem sido alvo de debate pela academia, principalmente em períodos de crise ou pós-crise. Essa íntima conexão se deve pela incapacidade de respostas ágeis frente à rapidez na qual edificações e espaços urbanos entram em um estado de abandono e de vacância durante períodos de retração da economia. No entanto, alguns autores afirmam que este estado é igualmente gerado mesmo em períodos de ascensão económica, ou seja, a especulação imobiliária é capaz de manter os espaços vacantes até que as condições político-financeiras sejam criadas para o seu redesenvolvimento (Moore-Cherry, 2015). Diante desta constante condição que marca a paisagem urbana contemporânea, o debate sobre possibilidades de reuso intermédio dos espaços extrapola o momento de crise e avança com a possibilidade de um planeamento urbano mais conectado à comunidade, ao lugar, as diferentes temporalidades da cidade e, sobretudo, a uma prática atemporal.
Na última década, projetos de investigação financiados por fundos comunitários como o TUTUR - Temporary Use as a Tool for Urban Regeneration (2013-2015) ou o REFILL - Reuse of vacant spaces as driving Force for Innovation on Local Level (2016-2018), se esforçaram para trazer à luz experiências de reutilização temporária dos espaços urbanos e produzir manuais ou possíveis planos de ação para intervenções desta natureza, sejam elas iniciadas por indivíduos, coletividades, comunidades ou pelas estruturas governamentais. Diante de um variado conjunto de tipologias de usos e de espaços, é possível reconhecer experiências temporárias que possam ser desenvolvidas em outros sítios, nesse momento de pandemia e além.
Uma das indicações da Organização Mundial da Saúde para conter a COVID-19, tanto no momento de quarentena quanto no de flexibilização do confinamento, é o distanciamento social. O contato e a proximidade entre as pessoas devem ser feitos com muita cautela e respeitando regras de não aglomeração. Todos estes são fatores que elevam as cidades ou os centros urbanos a lugares de risco acrescido. No entanto, o tecido urbano é composto por cheios e vazios, onde terrenos vagos outrora vistos como problemas para as cidades que constantemente buscavam a fórmula da cidade compacta, tornam-se zonas para novas soluções e experimentações de usos ao ar livre e com distanciamentos adequados.
A partir da análise do impacto da COVID-19 nas dinâmicas urbanas e vislumbrando um horizonte futuro sem o vírus, o grupo URBinLAB - urbanism and territorial Dynamics (grupo de investigação vinculado à Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa) - logo após os primeiros meses da pandemia publicou em seu website um importante manifesto com dez medidas para a adaptação da cidade no período pós-COVID-19. Seis destas medidas se referem à utilização de espaços exteriores e de atividades ao ar livre, sendo duas com indicações específicas para o uso temporário do espaço: “Promoção de novas atividades comerciais, culturais e de fruição do espaço exterior (ex: instalações temporárias, móveis, adaptáveis)”; “Estruturação e reforço de áreas de produção agroalimentar de proximidade e integradas nos espaços urbanos, incluindo a utilização temporária de espaços vacantes e expectantes” (URBinLAB, 2020, p. 3).
Segundo dados do projeto NoVOID - Ruínas e Terrenos vagos nas cidades portuguesasi, são 335,7ha de terrenos vagos na cidade de Lisboa (aproximadamente 4% do território) com características que “maioritariamente, correspondem a solo expectante ou, menos frequentemente, a espaços com algum tipo de condicionamento à construção ou ocupação urbana” (Brito-Henriques, Morgado, & Cruz, 2018, p. 123). Deste modo, um importante stock de espaços ao ar livre está disponível para usufruto imediato; oportunidades para se repensar a vida urbana e experimentar possibilidades através de ações rápidas.
II. O vago enquanto incerteza e disponibilidade
O termo “vago”, habitualmente utilizado para descrever espaços que estão aparentemente sem uso, vazios ou desocupados, é ambíguo e muito rico na língua portuguesa. Do contrário do termo “vacante”, também utilizado sob estas circunstâncias, que deriva do latim vacans e significa inexistente ou algo estar vazio, “vago” é um adjetivo que surge da junção entre dois outros termos do latim e seu significado está entre vazio, desocupado ou disponível (vacuus) e indeterminado, indefinido, incerto e versátil (vagus) (Houaiss & Villar, 2002). Ou seja, as áreas e os terrenos vagos são espaços de características únicas e necessárias ao desenvolvimento da cidade, já que representam além de uma situação incerta, um espaço disponível. A sua disponibilidade é um convite a repensar a cidade de forma a criarmos diferentes experiências urbanas e testarmos novos usos para estes espaços.
São muitos os projetos e experiências urbanas que utilizam os terrenos vagos como uma forma de urbanismo temporário (Costa & Cavaco, 2018). A ideia por trás deste movimento é que estes espaços estão sob uma condição transitória e não num momento terminal. Sendo assim, é possível praticar novos usos e propor diferentes temporalidades. Os usos temporários são constantes na história urbana (feiras, exposições, circos, etc.), todavia em períodos de crises os usos espontâneos e/ou práticas menores se acentuam. Da reutilização do Tiergarten City Park em Berlim como hortas comunitárias por aqueles que passavam fome nos anos após a segunda guerra mundial (Blumner, 2006) até às mais recentes atividades do chamado “urbanismo tático”, movimento que ganhou muita atenção a partir das crises económicas do princípio do milénio (Lydon & Garcia, 2015).
Em Londres, cada verão tem sido uma diferente experiência em um terreno vago localizado no nº 101 da Union Street (Bishop & Williams, 2012). Em 2008, em meio à grande crise financeira global, um grupo de indivíduos liderados pelo coletivo EXYZT, criaram o Southwark Lido. Através de estruturas temporárias, construíram um local de encontro, relaxamento e recreação, com piscina, espreguiçadeiras, bar e saunas. Também neste local, em 2010, surgiu o Union Street Urban Orchard, um pomar urbano com 85 espécies frutíferas e uma pequena estufa que foram desmantelados e todas as árvores foram doadas para escolas, jardins comunitários ou simplesmente foram replantadas em sítios próximos.
Intervenções temporárias voltadas à agricultura urbana também ganharam destaque na última década em Detroit. Após o colapso da indústria automotiva e a perda de 60% de sua população, hortas comunitárias e pequenos mercados passaram a utilizar parte dos 10 000ha de terrenos vagos da cidade (e.g., D-Town Farm, Earthworks Urban Farm). A agricultura urbana foi um movimento de contrarresposta das comunidades mais afetadas pelo declínio urbano em busca de melhores condições de vida (Bishop & Williams, 2012; Lawson & Miller, 2013).
Na Alemanha, durante um período de incertezas após sua unificação, uma mescla de expectativa e estagnação económica promoveu tanto um aumento na quantidade de espaços vagos quanto a proliferação de práticas informais e temporárias que aproveitavam esta situação e este momento (Oswalt, Overmeyer, & Misselwitz, 2013). A sua porção oriental foi palco para muitas experiências como o Schwarzer Kanal Trailer Park - um parque de autocaravanas criado em 1990 em um terreno vago onde anos mais tarde se iniciaria a construção da nova sede do sindicato dos trabalhadores, ou o Fusion - festival de música eletrónica em um aeroporto militar soviético desativado no distrito de Müritz.
A prática temporária em terrenos vagos ocorre em diversas partes do mundo e podem ter características distintas entre si - usos, utilizadores, dimensões, tipologias, etc. Todavia, em grande parte destas experiências, o momento inicial é realizado de forma espontânea, informal e experimental. O aproveitamento do “vago” enquanto “disponível” é a matriz inicial para o desenvolvimento destas atividades e, consequentemente, para o (re)pensar da cidade.
III. Entre performances, máscaras e buzinas
Assim como as experiências temporárias que surgiram em contextos de crises e provocaram diferentes reflexões sobre os espaços vagos nas cidades, o atual momento histórico de pandemia, de confinamento, de flexibilização do confinamento ou de reabertura gradual, está a gerar movimentos de contrarrespostas em diversas cidades do mundo. Da flexibilização das leis e normas para a sobrevivência de comércios em cidades da Inglaterra ao oferecimento de licenças para uso de parte dos espaços públicos externos (passeios, ruas, parques, praças, etc.) para atividades comerciais em São Francisco nos Estados Unidos; do fechamento de ruas para o aumento do espaço para os pedestres em Calgary à expansão temporária da rede de ciclovias de Bogotá ou de Berlim, os municípios e os seus cidadãos estão em busca de soluções temporárias que possam responder às necessidades da sociedade. Já no setor do entretenimento, está a acontecer um movimento que poderá desvendar alguns caminhos possíveis para o pós-COVID-19 ou até mesmo para futuras novas vagas do vírus. Os drive-ins, muito comuns nas cidades americanas durante as décadas de 1950 e 1960, se tornaram soluções para manter a prática cultural e recreativa ao mesmo tempo em que se cumprem regras de distanciamento social.
Trata-se de eventos produzidos em espaços vagos - desocupados, subutilizados ou ociosos, onde as pessoas podem assistir e ouvir as performances a partir de seu automóvel. Todavia, em tempos de pandemia, o drive-in deixou de ser exclusivo para filmes e abrange uma panóplia alargada de possibilidades. Neste formato, os concertos musicais são os mais comuns; desde a apresentação pioneira do cantor Mads Langer em Aarhus na Dinamarca em abril (fig. 1) ao projeto Friends in Low Places do cantor country Garth Brooks que levará seu espetáculo a 300 sítios em simultâneo no final de Junho para dezenas de cidades americanas; do primeiro festival drive-in de música eletrónica The Road Rave para 500 carros em Orlando até à rave do clube Index na pequena cidade Schüttorf na Alemanha. Pequenas, médias ou grandes apresentações, são muitas as experiências onde fileiras de carros se espalham por espaços ao ar livre e diante de palcos onde é possível ouvir o som das apresentações através de uma frequência FM no rádio do próprio automóvel.
Em Portugal, a primeira experiência durante a pandemia aconteceu em Lisboa na Fábrica Braço de Prata, um centro cultural que teve seus espaços fechados e eventos cancelados no princípio da quarentena. No entanto, logo retomou os concertos musicais em uma de suas salas com apresentações sem público presente, mas com transmissão online em suas redes sociais. No dia 13 de maio, dias após o anúncio do fim do estado de emergência em Portugal, a Fábrica decidiu reabrir seu espaço exterior e utilizar um dos seus muros exteriores como ecrã para projeção da performance que estiver a acontecer em uma das suas salas de espetáculos. Sua outrora esplanada de apoio ao bar e seu estacionamento, transformaram-se em um drive-in onde o público pode acompanhar os concertos dentro dos seus carros enquanto jantam ou bebem algum aperitivo.
Já no distrito de Leiria, o espaço para eventos - Estúdio 33, recebeu em seu estacionamento o concerto “#vensdecarrinho” do cantor Pedro Abrunhosa, um importante nome para a música portuguesa contemporânea acostumado a grandes plateias. Semelhante ao que ocorre em outras cidades, cerca de 100 carros foram dispostos distantes entre si e os condutores/espectadores acompanharam a performance através de uma frequência FM do rádio. O sucesso da experiência e do formato atraiu outros tipos de eventos; no princípio de junho aconteceu a apresentação de stand-up comedy do humorista Nilton, assim como o espetáculo do ilusionista Luís de Matos. Em todas as situações, o público se manteve dentro das viaturas durante toda a performance e utilizaram as ferramentas disponíveis para interação com os artistas: o rádio, a buzina e o telemóvel.
Em suma, o avanço do formato de drive-in para ações de entretenimento nesse pe ríodo de pandemia mostra uma demanda reprimida de indivíduos e coletividades que ainda buscam interações pessoais entre si. O crescimento das linguagens e soluções virtuais, como espetáculos, reuniões, aulas, etc., através de plataformas onde cada “espectador” está isolado em casa, traz diferentes possibilidades, mas de forma nenhuma inibe ou substitui esta interação.
IV. Notas conclusivas
Já na terceira década do milénio estamos a presenciar uma segunda vaga de crise global. A primeira, nos primeiros anos e marcada pelo aspeto financeiro especulativo, trouxe uma grande recessão económica para muitas cidades e ascendeu o chamado “urbanismo da austeridade” (Peck, 2012) cuja escassez de recursos produziu movimentos de contrarresposta que trabalham “(…) nas fissuras entre o planeamento formal, o investimento especulativo e as possibilidades locais” (Tonkiss, 2013, p. 313). O uso temporário, que sempre esteve presente na história das cidades, também se transformou em uma ferramenta de experimentação e apropriação dos espaços vagos, tanto por indivíduos e coletividades afetadas pelas crises, quanto pelas autarquias e estruturas governamentais que passaram a perceber esta prática como uma forma low-cost e imediata de regeneração.
As experiências apontadas no presente artigo, assim como os seus desdobramentos no âmbito da gestão urbanística de suas cidades, deflagram uma nova prática do planeamento urbano onde regulações e leis são mais flexíveis e permissivas frente a projetos de usos intermédios nos espaços vagos. Em termos de processo instrumental, é possível concluir que o planeamento deve atuar em duas frentes: i) no reconhecimento e inventariação tanto dos espaços vagos quanto das ações - espontâneas ou induzidas e informais ou formais - que lá ocorrem; ii) na mediação entre proprietários dos espaços e possíveis usuários, proporcionando bases, mesmo que temporárias, para seu reuso.
Os usos temporários que estão a decorrer neste período de pandemia, podem ser vistos e analisados sob esta diferente ótica. Os drive-ins nos terrenos vagos representam não apenas uma resposta possível para a sobrevivência de parte do setor do entretenimento e cultura, mas também ilustram como os terrenos vagos podem ser, acima de tudo, espaços de possibilidades frente às dificuldades de setores distintos. O planeamento urbano pode estimular o seu uso para experimentações e para soluções com diferentes temporalidades; não se trata de criar novas demandas, mas reconhecer o espaço vago enquanto possibilidade de repensar a cidade.