I. Introdução
A pandemia causada pelo novo coronavírus tem assustado o mundo, não só pela velocidade de propagação da doença, mas também pelo impacto que teve na restrição da mobilidade humana e, consequentemente, na atividade económica e nas formas de relacionamento social. Para conter a propagação do vírus, Portugal e vários países da Europa e de outras regiões do mundo decretaram o estado de emergência - Regime declarado “nos casos de agressão efetiva ou iminente por forças estrangeiras, de grave ameaça ou perturbação da ordem constitucional democrática ou de calamidade pública (Lei n.º 44/86, de 30 de Setembro). Durante várias semanas encerraram as fronteiras internacionais e impuseram fortes medidas restritivas à circulação de pessoas, mesmo dentro dos respetivos territórios nacionais. Embora ninguém fique imune aos efeitos desta pandemia, não há dúvida que imigrantes e refugiados fazem parte do grupo de pessoas mais vulneráveis aos seus efeitos (Guadagno, 2020).
Considerando a relevância crescente da mobilidade internacional estudantil (Choudaha, 2017; Iorio & Fonseca, 2018), apresentam-se neste ensaio os resultados preliminares de um estudo exploratório sobre os impactos da pandemia neste grupo específico em Portugal. Os efeitos desta crise sanitária sobre os e as estudantes do ensino superior começaram logo assim que foi decretado o fecho dos estabelecimentos de todos os graus de ensino, a partir do dia 16 de março de 2020. O encerramento das universidades teve grande eco na comunicação social, através de uma série de notícias que procuravam relatar as dificuldades que os estudantes estrangeiros residentes no país estavam a viver.
A investigação baseou-se num questionário online dirigido aos estudantes internacionais e de nacionalidade estrangeira no ensino superior português. Neste estudo incluem-se os estudantes matriculados numa instituição portuguesa de ensino superior, em regime de mobilidade internacional, de crédito ou de grau, bem como os alunos e alunas de nacionalidade estrangeira, residentes em Portugal, independentemente do motivo da vinda para Portugal. Este inquérito esteve disponível entre 7 de abril e 7 de maio de 2020 (abarcando grande parte do período do Estado de Emergência em Portugal - que vigorou entre 19 de março e 2 de maio). Obtiveram-se 703 respostas válidas e foram analisadas as perspetivas dos respondentes, relativamente a quatro domínios fundamentais do impacto da pandemia: emprego, habitação, ensino e aprendizagem, e saúde e bem-estar.
II. Caracterização da amostra
De acordo com a Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC) (DGEEC, 2019), no ano letivo de 2018/2019 havia cerca de 53 mil estudantes em mobilidade de graui e créditoii, matriculados em Instituições de Ensino Superior portuguesas (IES). Apesar de o número de respondentes ao inquérito efetuado não corresponder a uma amostra representativa do universo em estudo, o elevado número de respostas obtidas, aliado à diversidade dos países de proveniência e às universidades e graus de ensino que frequentam em Portugal, permitiram conhecer a forma como a pandemia afetou a população estudantil de distintas origens geográficas, géneros, idades, situação familiar, ciclo de estudos e áreas científicas.
Comparativamente aos dados da DGEEC, observa-se uma sobre-representação das mulheres, dado que correspondem a 65% das pessoas que responderam ao inquérito e constituem 52% dos estudantes internacionais em Portugal. A amostra inclui pessoas originárias de 56 países, com destaque para o Brasil (61%), Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) (16%) e estados-membros da União Europeia (15%). Quanto ao grau de ensino, 44,2% dos respondentes frequentam cursos de licenciatura, 37,7% de mestrado e 17,8% de doutoramento, distribuídos por 23 instituições de ensino superior. Embora os estudantes do Brasil estejam sobre-representados, no geral, a composição da amostra é concordante com resultados de estudos anteriores, indicando que os estudantes internacionais em Portugal são maioritariamente provenientes dos países do Sul, sobretudo do Brasil (Iorio & Fonseca, 2018), seguido dos PALOP, nomeadamente de Cabo Verde e Angola (França, Alves, & Padilla, 2018). A maior parte dos inquiridos encontra-se em mobilidade de grau (63%) e não de crédito - que é um tipo de mobilidade mais frequente dos estudantes ERASMUS, oriundos da UE. O Programa Erasmus é “um programa de mobilidade, que conta com três décadas de funcionamento e destina-se a apoiar as atividades europeias das Instituições de Ensino Superior, com vista à promoção do intercâmbio e mobilidade dos seus estudantes, professores e funcionários” (Lucas et al., 2017, p. 178).
III. Os impactos da covid-19 na continuidade dos estudos em Portugal
A maioria da população inquirida (62,4%) pensa que “a crise da COVID-19 irá afetar a conclusão dos seus estudos em Portugal”. Esta perceção resulta de 72,7% não terem bolsa de estudo, dependendo do financiamento dos pais ou de outros familiares (65%), e/ou de poupanças próprias (61,5%). Por conseguinte, receiam que a perda de rendimentos provocada pela pandemia poderá impedir a sua permanência no país. Numa análise mais desagregada, observam-se ainda diferenças entre os estudantes originários de estados-membros da União Europeia-27 e de países terceiros, sobretudo dos PALOP. Mais de 2/3 dos primeiros (68%) beneficiam de bolsa de estudo, a maior parte das quais no âmbito do Programa ERASMUS, enquanto a proporção de bolseiros dos PALOP e do Brasil é, respetivamente, de apenas 28,1% e 14%.
Como já referiram diversos autores (Findlay, King, Smith, Geddes, & Skeldon, 2012; Iorio & Pereira, 2018; Beech, 2019), o acesso ao ensino superior e a mobilidade estudantil internacional continuam a ser elitistas, pelo que os estudantes provenientes dos países desenvolvidos do Norte continuam a ter mais oportunidades de bolsas de estudo dos que os oriundos de países do Sul. Apesar disso, nos últimos anos, tem-se verificado uma tendência de aumento do número de estudantes universitários brasileiros e de alguns países africanos de língua oficial portuguesa, que estudam numa instituição de ensino superior estrangeira. Tendo em conta a diversidade dos estudantes internacionais em Portugal, relativamente ao país de origem, género, idade, estado no ciclo de vida e classe social, é natural que os impactos da COVID-19 não sejam sentidos por todos com a mesma intensidade, afetando particularmente os indivíduos mais vulneráveis do ponto de vista económico e social.
1. Trabalho e atividade profissional
Um dos efeitos imediatos e mais preocupantes da pandemia em Portugal, foi o aumento do desemprego e a precarização do emprego, especialmente nos setores de atividade mais afetados pelo encerramento das fronteiras internacionais e pelas restrições à mobilidade da população. Apesar de 79,5% dos participantes neste estudo, à data de realização do inquérito, não exercer nenhuma atividade profissional remunerada, mais de metade referiu que estava à procura de emprego desde antes do início desta crise e 9,4% afirmaram que ficaram desempregados devido à COVID-19.
As dificuldades de acesso dos estudantes ao mercado de trabalho decorrem também de o visto para fins de estudo não lhes permitir exercer uma atividade profissionaliii. Por outro lado, a morosidade no processo de reconhecimento de diplomas e os custos inerentes (Iorio, 2018), faz com que aqueles que dependam dos rendimentos do trabalho sejam “obrigados” a realizar tarefas pouco condizentes com as suas habilitações académicas (Góis & Marques, 2007), frequentemente, com vínculos precários, ou mesmo sem qualquer relação contratual. Deste modo, metade dos respondentes com uma atividade remunerada tinha um emprego que exigia poucas qualificações ou trabalhava em regime de prestação de serviços. Ainda assim, 75,7% destes julgam que a crise despoletada pelo novo coronavírus irá afetar a continuidade dos seus trabalhos.
2. Habitação
Relativamente à habitação, 61,3% dos participantes neste estudo vivem com uma ou mais pessoas, numa casa ou apartamento alugado. Neste sentido, 55% consideram que esta crise irá afetar o seu local de residência, sobretudo por causa da quebra dos seus rendimentos. Contudo, deve salientar-se que, no caso dos estudantes pertencentes a agregados familiares com rendimentos médios mensais mais elevados (superiores a quatro mil euros), apenas 30% referem que a pandemia vai agravar as suas condições de acesso à habitação. Por conseguinte, através do teste do qui-quadrado, verificou-se que existe uma relação significativa entre o rendimento familiar e a probabilidade de a situação residencial dos estudantes ser afetada por esta crise sanitária (p=0,018). Já o cruzamento das respostas a esta questão com o género, idade e país de proveniência dos alunos inquiridos não evidencia uma associação significativa com nenhuma destas características.
Como referimos anteriormente, a maioria dos respondentes não possui uma bolsa de estudo pelo que depende do financiamento dos pais ou outros familiares, ou de poupanças próprias. Além disso, as já reduzidas oportunidades de acesso ao emprego foram agravadas pela pandemia. Por conseguinte, é fácil compreender como as dificuldades financeiras para pagar a renda e/ou dividir as despesas da casa, irão afetar as suas condições de habitação: Será difícil os meus pais pagarem o aluguer; Não tenho dinheiro suficiente para pagar a minha renda, argumentaram alguns estudantes.
Muitos referiram também que tiveram (ou terão) que retornar para os seus países de origem (especialmente Brasil e estados-membros da União Europeia, com destaque para Espanha).
3. Ensino e Aprendizagem
A maioria da população inquirida (81,8%) afirmou que estava a ter aulas à distância e dispunha de computador (89,3%) e Internet (97,6%) em casa. Contudo, 10% partilham o computador com outra pessoa e 6,2% com mais de uma. Apesar disso, 30,2% dos respondentes ainda não se sentem à vontade para utilizar as ferramentas digitais necessárias para ter aulas por videoconferência.
Para fazer face às dificuldades com que têm sido confrontados durante esta crise, os estudantes internacionais, para além do auxílio recebido de familiares e amigos residentes no país de origem (57,6%) ou em Portugal (37,7%), destacaram o apoio da Instituição de Ensino Superior (27,7%) e, mais especificamente, o apoio dos professores na realização das tarefas (38,3%), para além de formações remotas para a participação em aulas online (25,8%) (fig. 1).
Além da ajuda relacionada com o ensino, é interessante notar que, depois das pesquisas na Internet (em motores de busca como o Google), é nas IES e nos respetivos websites institucionais que os estudantes procuram informações sobre a COVID-19.
Cerca de dois terços dos estudantes inquiridos (62,1%) avaliam positivamente a forma como as instituições de ensino superior que frequentam em Portugal, têm lidado com esta pandemia. No entanto, existem diferenças de opinião, estatisticamente significativas ou muito significativas, comprovadas pelo teste do qui-quadrado, em função do grupo etário (p=0,020), do grau de ensino que frequentam (p=0,000) e do país de proveniência (p=0,001). Deste modo, observa-se que a proporção de estudantes que têm opiniões menos favoráveis sobre a atuação das universidades portuguesas no contexto desta crise sanitária, é maior do que o esperado entre os mais jovens, os que estão inscritos em cursos do primeiro ciclo de estudos e os originários do Brasil.
4. Saúde e Bem-Estar
Durante o período de confinamento, os estudantes procuraram combater os efeitos do isolamento através de várias práticas. A leitura, visionamento de filmes, séries e TV, e ainda a audição de música foram as atividades mais referenciadas (78,6%). O exercício físico em casa foi também mencionado por mais de metade dos inquiridos (53,5%).
Apesar da preocupação em se manterem ativos e saudáveis, a maioria dos inquiridos considerou que o isolamento social estava a afetar a sua saúde mental. Numa análise desagregada por sexo, verificou-se ainda que a pandemia afetou mais a saúde mental das mulheres do que dos homens dado que este problema foi referido, respetivamente, por 69,8% das primeiras e 54,5% dos segundos, sendo que a percentagem de homens que não responderam a esta questão é superior à das mulheres (15,3 e 10,2%, respetivamente). Como se pode ver na figura 2, os problemas mais referenciados relativamente ao bem-estar psíquico, incluem: falta de iniciativa, dificuldade em relaxar, falta de pensamento positivo e insónia.
A aplicação do teste do qui-quadrado permitiu verificar diferenças estatisticamente muito significativas nos efeitos da pandemia COVID-19 no bem-estar físico e na saúde mental dos estudantes internacionais, segundo o género e o país de residência anterior à vinda para Portugal (p<0,01 em ambos os casos). Efetivamente, observou-se que o número de mulheres, de estudantes do 1º ciclo de estudos e dos originários do Brasil é superior aos valores esperados, se a distribuição dos respondentes que referiram que a crise do novo coronavírus afetou a sua saúde mental fosse independente do género e do país de residência antes da vinda para Portugal.
IV. Conclusões preliminares e reflexões finais
Os resultados da análise exploratória dos efeitos da COVID-19 na vida dos e das estudantes internacionais que frequentam IES portuguesas, representam apenas uma visão parcial dessa realidade, pelo que não se podem generalizar a todo o universo em estudo. No entanto, a dimensão e diversidade de perfis dos respondentes ao inquérito que serviu de base a este ensaio, permitiram pôr em evidência um conjunto de aspetos ilustrativos da maior vulnerabilidade desse grupo de estudantes relativamente aos nativos, bem como diferenças na forma e intensidade com que a crise sanitária e as medidas de confinamento impostas pelo governo português, afetaram os estudantes do género masculino e feminino, diferentes idades, níveis de rendimento, origens geográficas e grau de ensino frequentado.
O rendimento familiar é um fator diferenciador dos efeitos da crise sanitária no acesso e condições de residência. A opinião dos estudantes relativamente às respostas das IES à situação de pandemia, variam em função da idade, grau de ensino e país de origem. Por sua vez os impactes na saúde mental variam em função do género e da origem geográfica dos participantes neste estudo.
Durante a crise da COVID-19, as instituições governamentais e universitárias em Portugal têm apoiado a população estudantil de um modo geral, mas não têm considerado as necessidades específicas dos estudantes internacionais/estrangeiros, no que diz respeito às suas condições de habitação, saúde mental e necessidades académicas. Tratando-se de uma população com maior diversidade e vulnerabilidade, devido à ausência de uma rede de apoio de proximidade (família e amigos), é fundamental que as IES criem mecanismos de resposta adequados para atender a dificuldades de indivíduos ou grupos particulares. Deste modo, importa perceber como estas instituições pretendem garantir a assistência aos estudantes internacionais e quais as estratégias que irão adotar para o recrutamento de novos estudantes. Muitos foram forçados a abandonar o seu plano de estudos numa universidade portuguesa, tendo regressado aos seus países de origem, desconhecendo-se o efeito que a pandemia pode ter nos seus projetos futuros.
Identificaram-se dificuldades de adaptação aos novos métodos de ensino à distância, carências habitacionais e problemas de saúde mental, particularmente no caso das mulheres, mas não se sabe a forma como estas situações irão repercutir-se no desempenho escolar e na qualidade da formação académica. Deste modo, muitos são os questionamentos que permanecem acerca dos impactos imediatos e futuros desta crise, nas trajetórias académicas desses estudantes, no desenvolvimento de novos métodos de ensino, nas formas de cooperação e transferência de conhecimento entre instituições universitárias, países e regiões e na evolução da mobilidade estudantil internacional. Trata-se, portanto, de um problema complexo, que exige respostas integradas e colaborativas entre universidades, governos, instituições e organizações representativas da comunidade estudantil, que deverão trabalhar em conjunto para minimizar os efeitos negativos da pandemia nos estudantes e nas instituições universitárias.