I. Territórios de baixa densidade
Um dos aspetos mais definidores de um território, com implicações ao nível da modelação da sua paisagem cultural e natural, é a forma como a população nele se organiza e distribui, a estrutura do seu povoamento. Daqui decorrem, naturalmente, diferenças de densidade populacional, sendo que esta resulta, na sua formulação mais comum e elementar, de uma relação que se estabelece entre duas variáveis: dimensão populacional (nº de habitantes) e área (km2).
A existência de uma população mais concentrada ou mais dispersa num dado território tem implicações a vários níveis. Desde aspetos relacionados com a estrutura fundiária ou com a organização funcional até ao perfil e à localização das atividades económicas, passando pela morfologia das infraestruturas de transportes e comunicações e pelas opções de localização de equipamentos coletivos e sua cobertura, pela maior ou menor capacidade de gestão das vulnerabilidades e até, como veremos mais adiante, no que toca à difusão espacial de fenómenos eminentemente geográficos tais como, por exemplo, a pandemia da Covid-19.
Na ausência de uma definição universal de território de baixa densidade, existindo desafios de natureza metodológica que não são de resposta unívoca, habitualmente, entende-se que estes territórios correspondem àqueles (tipicamente, municípios ou regiões) que apresentam, como sugerido na Deliberação da Comissão Interministerial de Coordenação Portugal 2020, densidades populacionais ou rendimentos per capita inferiores às médias nacionais.
Em 2014, uma deliberação da Comissão Interministerial de Coordenação Portugal 2020, que viria a ser alterada no ano seguinte, recorrendo a uma abordagem multicritério em que, para além da densidade populacional, considerava também a demografia, o povoamento, as características físicas do território, as características socioeconómicas e as acessibilidades, classificou a maior parte dos municípios de Portugal continental como sendo de baixa densidade.
A cartografia do Portugal de baixa densidade é, em larga medida, sobreponível ao Portugal descrito por (Ferrão, 2002) essencialmente como um produto do processo de modernização social e económica iniciado na década de 60 do século passado. Quando na viragem do século, parecia ser possível vislumbrar a emergência de um Portugal da pós-modernidade, aquilo que Ferrão (2002, p. 155) chamava “o arquipélago organizado em rede”, duas décadas volvidas, percebemos que essa configuração eminentemente policêntrica e/ou reticular que era, aliás, um dos grandes desígnios do Programa Nacional da Política de Ordenamento do Território na sua versão original de 2007, não se concretizou.
Mesmo salvaguardando algumas excepções, designadamente cidades médias de reduzida dimensão com capacidade polarizadora, os “indícios de um reequilíbrio, ainda incerto e incipiente, com alguma possibilidade de compensar a fuga maciça dos Portugueses para o Litoral” (Mattoso, Daveau, & Belo, 2010, p. 45), nunca passaram disso mesmo.
O choque das políticas de austeridade, sobretudo levadas a cabo nos “anos de chumbo” da Troika (2011-2014), desempenhou um papel fundamental num retrocesso generalizado que teve também profundos impactes de natureza socioterritorial (Rodrigues & Silva, 2015). Neste período, como descreve (Reis, 2018, p. 251-252), “os processos de mobilidade das pessoas e das qualificações intensificaram-se num só sentido, das periferias para um único centro. O país descentralizado que tinha alcançado alguma coesão está hoje afetado não apenas pela paralisia do processo de convergência regional, mas sobretudo por um deslaçamento original”.
Este deslaçamento inviabilizou ou, pelo menos, adiou, o aprofundamento de uma trajetória de desenvolvimento regional, acentuando-se a tendência de declínio socioeconómico e despovoamento do interior que contribui para reforçar o peso relativo dos territórios de baixa densidade no continente.
II. COVID-19 no Alentejo
No Alentejo, os primeiros dois casos de Covid-19, confirmados pela Direção Geral de Saúde (DGS), datam de 18 de março, duas semanas mais tarde que os primeiros casos ocorridos no país. Em meados de junho, a região registava menos de 300 casos (pouco mais de quatro casos confirmados por 10 mil habitantes) e apenas um óbito, ocorrido no início de abril.
Tratando-se de uma pandemia viral de origem externa ao país, com uma difusão rápida, associada à interação pessoal, a exposição das regiões à importação do vírus, define-se, desde logo, pela sua abertura ao exterior (Ferrão, 2020). No Alentejo, a baixa densidade esbate a exposição da região e a sua suscetibilidade ao vírus, inclusivamente no que respeita à estrutura demográfica envelhecida.
Numa região que abrange, na soma das suas quatro sub-regiões (o Alto Alentejo, o Alentejo Central, o Baixo Alentejo e o Alentejo Litoral), 26 931km², perto de um terço da superfície do país, mas onde reside pouco mais de 7% da população nacional, o território, de matriz rural, marcado quer pela escassez e irregularidade da distribuição da água quer pela estrutura da posse e da exploração da terra (latifúndio), sempre foi pouco povoado. Depois do êxodo rural do século XX, nas últimas décadas mantém-se o processo migratório com reflexos no despovoamento, mais intenso nas áreas rurais deprimidas, onde a população é cada vez mais idosa e a fecundidade cada vez menor.
A conjugação dos fatores escassez demográfica, áreas de povoamento concentrado, rede urbana autocentrada e mobilidade reduzida, associou-se à imposição de confinamento da população a nível nacional (o estado de emergência vigorou de 19 de março até 17 de abril). Estes aspetos ter-se-ão reforçado enquanto barreiras à difusão espacial da doença. O primeiro, de natureza estrutural, o segundo, eminentemente, conjuntural.
No Alentejo, as assimetrias regionais abordadas com o foco nas baixas densidades indiciam suscetibilidades diferenciadas. A amplitude da baixa densidade varia entre os menos de 5 hab./km2 do município de Mértola, no Baixo Alentejo, e os 67 hab./km2 de Sines, no Alentejo Litoral. Os valores da baixa densidade, conjugados com os da população envelhecida e do número de infetados, tanto em valor absoluto como relativo, permitem uma primeira interpretação da expressão da difusão da doença no território (quadro I).
Enquanto o isolamento de Mértola contribui para a ausência de doentes, apesar da população muito envelhecida (embora potencialmente suscetível, o concelho revelou-se pouco vulnerável), já em Sines ocorrem, como em todos os municípios do Alentejo Litoral, alguns casos associados ao maior dinamismo económico, contiguidade espacial e interação deste território com o exterior (maior exposição e vulnerabilidade destes territórios). Entretanto, em Moura, as tradições e hábitos culturais de uma fração significativa da comunidade residente, pouco permeável às práticas de confinamento e distância social revelou, pontualmente, a vulnerabilidade deste território (potencialmente exposto e suscetível, tornou-se vulnerável).
III. Um futuro para os territórios de baixa densidade
Territórios de baixa densidade, como o Alentejo, acumulam um conjunto abrangente de desvantagens e/ou problemas estruturais que, numa relação dialética, são simultaneamente causa e consequência de uma paisagem humana rarefeita, muito marcada pela ruralidade que os caracteriza (Domingues, 2011). Contudo, um atributo definidor destes territórios que é habitualmente encarado enquanto problema - a baixa densidade - revelou agora, no quadro da pandemia da Covid-19, que pode também ser visto como virtuoso. Desde que devidamente gerida e potenciada, a baixa densidade de alguns territórios, poderá revelar-se um importante eixo estruturante do seu futuro desenvolvimento. Efetivamente, aquilo que parece ser uma debilidade, num mundo pós-pandemia, poderá revelar-se um aspeto diferenciador, pela positiva, destes territórios. É preciso, como defende Covas (2019) prestar atenção ao “lado virtuoso dos territórios de baixa densidade”.
Como foi anteriormente sugerido, a atual pandemia resulta de uma interação cada vez mais disfuncional entre a cultura e a natureza, no quadro de processos intensivos de produção animal que aumentam as probabilidades de aparecimento e rápida difusão de doenças infecciosas. Em larga medida, traduzem um processo de distanciamento progressivo das comunidades relativamente aos territórios que habitam e a partir dos quais estruturam as suas vidas quotidianas. Como lembra (Cupeto, 2016, p. 69), “todos pertencemos a um ecossistema natural que nos acompanhou na evolução desde os primitivos hominídeos até hoje. Fazemos parte da Terra [contudo] vivemos em sistemas artificiais cada vez mais distantes da Terra e sempre exponencialmente mais exigentes em recursos e energia”.
Os territórios de baixa densidade, ao preservarem uma paisagem ainda pouco antropizada (embora em acelerada transformação), fruto da sua pouca população, do isolamento e da distância, emergem enquanto locais privilegiados para que um certo reencontro entre a sociedade e a natureza possa ter lugar, dando forma a uma “economia das experiências emocionais” (Covas, 2019).
Não bastam, porém, a tranquilidade e a calma, as paisagens a perder de vista e o silêncio apenas pontualmente interrompido. É necessário que os territórios de baixa densidade possam, recuperando o impulso observado na viragem do século, reconfigurar-se em torno daquilo a que Ferrão já então chamara “o arquipélago organizado em rede”. Ao mesmo tempo, em cada um dos locais integrados neste espaço-tempo de geometria variá vel, é “necessário aprender e ensinar a viver o dia-a-dia, a hora-a-hora, na casa e no território, a valorizar a cidade e a natureza” (Gaspar, 1996, p. 718). Nesta ótica, a reconciliação da sociedade com a natureza não pode prescindir dos territórios de baixa densidade. A questão é saber se existem condições para que se concretize, contribuindo assim para a melhoria da qualidade de vida e para o reequilíbrio do território.