Desde dezembro de 2019 que as sociedades de todo o mundo enfrentam uma crise de saúde pública sem precedentes - a pandemia de COVID-19 causada pelo coronavírus da síndrome respiratória aguda grave 2 (SARS-CoV-2). A COVID-19 atingiu a Europa a 24 de janeiro de 2020 e chegou a Portugal no dia 1 de março do mesmo ano (Spiteri et al., 2020). De acordo com os dados mais recentes disponibilizados pela Direção-Geral de Saúde (13 de junho de 2020), em Portugal, até à data, registaram-se 36 463 casos de COVID-19 e 1512 mortes relacionadas com a doença (DGS, 2020).
Na ausência de intervenções farmacológicas eficazes, muitos governos implementaram confinamentos e outras medidas de isolamento social. Em Portugal, no dia 18 de março de 2020, foi decretado o estado de emergência, o qual foi sucessivamente renovado até 2 de maio de 2020, altura em que foi decretada a vigência da situação de calamidade que permitiu um gradual desconfinamento da população. Durante o estado de emergência, salvo algumas exceções, os portugueses estavam apenas autorizados a deslocar-se para o trabalho, para a aquisição de bens essenciais, para dar assistência a pessoas vulneráveis, e para a utilização dos serviços de saúde. Ao contrário de outros países, eram permitidas saídas de curta duração para passear o animal de companhia e para a prática de atividade física.
Embora os confinamentos sejam uma das medidas mais eficazes para travar a difusão de epidemias (Wilder-Smith & Freedman, 2020), eles estão associados a uma deterioração da saúde mental e do bem-estar da população, podendo originar sintomas de stress pós-traumático, depressão, e ansiedade (Brooks et al., 2020). Estes problemas advêm do isolamento social e da alteração das rotinas, mas também das preocupações financeiras e de saúde inerentes a esta crise de saúde pública.
Os efeitos deletérios do confinamento na saúde mental da população poderão ser mais acentuados nas comunidades urbanas devido ao maior risco (e medo) de infeção e à escassez de espaço público que permita com que a população possa sair à rua em segurança. De facto, as cidades - devido à maior interação social, maior intensidade de troca de bens e serviços, forte ligação com outras cidades nacionais e internacionais e maior desigualdade social - têm sido o epicentro da pandemia da COVID-19 (Lee et al., 2020). Em Portugal, usando os dados mais recentes (13 de junho de 2020), se dividirmos os municípios por quartis de densidade populacional, um marcador de urbanidade, temos que o quartil mais densamente povoado (≥173hab./km2) apresenta uma taxa de notificação por COVID-19 de 41/10 000, valor 4 vezes superior ao observado no quartil menos densamente povoado (≤24hab./km2).
A vida urbana também limita o acesso à natureza. No entanto, a utilização e contacto com espaços verdes urbanos (ex.: parques urbanos, jardins públicos e privados) e de outros espaços naturais (ex.: praias, zonas ribeirinhas) poderão reduzir o stress causado pelo confinamento e proporcionar oportunidades de relaxamento, promovendo a resiliência urbana. Esta hipótese advém da já abundante literatura científica, nacional e internacional, acerca dos benefícios dos espaços verdes urbanos na saúde da população. Um número crescente de investigações tem vindo a demonstrar que o contato físico e/ou visual (inclusive a mera contemplação através de uma janela) com espaços verdes está associado a melhores indicadores de saúde mental, designadamente menores níveis de ansiedade (Triguero-Mas et al., 2017), menor risco de depressão (Gascon et al., 2018), menores níveis de marcadores biológicos de stress (Ribeiro, Tavares, Guttentag, & Barros, 2019) e maior bem-estar psicológico (Triguero-Mas et al., 2017).
Vários mecanismos, esquematizados na figura 1, podem explicar o efeito salutogénico dos espaços verdes na saúde mental das populações, destacando-se dois importantes modelos teóricos: a teoria da restauração da atenção (do inglês, Attention Restoration Theory) e a teoria da recuperação do stress (Stress Recovery Theory). Segundo a teoria da restauração da atenção, a utilização e contemplação de espaços naturais diminui a fadiga mental associada aos estímulos constantes do quotidiano (ex.: ruído, trânsito, aglomeração), melhorando assim a concentração e atenção (Kaplan, 1995). Já a teoria da recuperação do stress defende que o contato com os espaços naturais é capaz de reduzir as respostas psicofisiológicas ao stress (Ulrich, 1983). Por outras palavras, o contacto com espaços verdes pode ajudar a amortecer o impacto de eventos disruptivos e de adversidades. Veja-se o exemplo de um estudo holandês que constatou que o impacto de eventos stressantes (ex.: desemprego, crise financeira, violência) no estado de saúde geral é menor nos indivíduos com uma maior quantidade de espaço verde no entorno da sua residência do que aqueles com menor quantidade de espaço verde residencial (van den Berg, Maas, Verheij, & Groenewegen, 2010). Ora, o confinamento e a vivência de uma pandemia são, sem dúvida, eventos disruptivos e adversos.
Além disso, o contacto com espaços verdes e natureza encoraja a prática de atividade física, um determinante bem estabelecido de bem-estar psicológico, particularmente se esta for realizada em ambientes naturais (Mitchell, 2013); favorece a coesão social, crucial durante períodos de adversidade psicossocial (Peters, Elands, & Buijs, 2010); e oferece uma oportunidade de contacto com o mundo exterior, gerando sentimentos de pertença ao lugar e à sociedade (Rugel, Carpiano, Henderson, & Brauer, 2019). Num contexto de grandes restrições à vida quotidiana, o contacto com espaços verdes e com a comunidade que os frequenta pode contribuir também para promover uma sensação de normalidade. Isto pode ser especialmente importante para grupos vulneráveis, tais como crianças e idosos. No caso das comunidades de baixo rendimento, o acesso a espaços verdes pode ter o efeito adicional de reduzir a duração da exposição a condições adversas como habitação de fraca qualidade e frequente sobrelotação.
Por tudo isto, desde há séculos que os espaços verdes são reconhecidos pelas suas funções estéticas, sociais e sanitárias (Madureira, Andresen, & Monteiro, 2011). Foi precisamente nos séculos XVIII/XIX, época em que as cidades industrializadas europeias e norte-americanas eram assoladas por sucessivas epidemias de cólera, tifo, tuberculose e febre amarela, que se deu uma importante revolução sanitária e urbanística e se cons truíram os primeiros espaços verdes urbanos. Urbanistas e arquitetos como Frederick Law Olmsted (1822-1903), Haussmann (1809-1891) ou Ebenezer Howard (1850-1928) estiveram por detrás da construção de centenas de parques urbanos e corredores verdes na Europa e EUA com o objetivo de melhorar a qualidade do ar e a qualidade de vida da população.
Coincidentemente, os dados de mobilidade da Google mostram que, em algumas regiões do mundo, a população está a usar os parques durante a pandemia da COVID-19, possivelmente para escapar ao confinamento doméstico e, eventualmente, ao stress causado pela pandemia (Google, 2020). Inclusivamente, em países com medidas de confinamento menos estritas, como a Suécia, a população está a usar mais os parques do que no período pré-pandemia. Na figura 2 podemos ver a evolução do uso de diferentes tipologias de espaços na Suécia e em Portugal entre 15 de fevereiro e 16 de maio usando a informação de localização da empresa Google e tendo como referência os níveis médios de mobilidade do período de 3 a 6 de fevereiro de 2020. Na Suécia, todas as categorias registaram uma quebra acentuada, com exceção das zonas residenciais e dos parques. Em Portugal, com medidas de confinamento mais severas e onde, inclusivamente, se procedeu ao encerramento de muitos parques e jardins públicos, os parques seguiram a geral tendência de quebra.
Embora a ligação entre a saúde mental durante o confinamento e o contacto com espaços verdes careça de confirmação, a evidência existente aponta nesse sentido. Assim, é fundamental que, durante esta e na preparação para futuras pandemias, os decisores públicos estejam cientes dos benefícios dos espaços verdes e garantam o acesso aos mesmos. Tal implica que as restrições de mobilidade e acesso impostos durante os confinamentos sejam mais complacentes (ex.: possibilidade de passeios ao ar livre, não encerramento de espaços verdes), mas envolve também alterações na organização do território (ex.: provisão de espaços verdes públicos mais isolados perto de zonas residenciais, mas garantindo ainda assim a segurança pública), no regime de propriedade (ex.: predomínio dos espaços públicos em oposição aos privados) e na habitação (ex.: criação de espaços verdes dentro dos complexos habitacionais sejam eles unifamiliares ou plurifamiliares).