I. Introdução
O ano de 2020 desde cedo se viu ensombrado pelo fantasma de uma possível pandemia oriunda do sudeste asiático. O mês de março concretizou os piores receios da humanidade, com a explosão do contágio pelo Coronavírus na China e sua disseminação pelo sudeste asiático e para a Europa, inicialmente, e depois para todo o globo.
Esta realidade veio obrigar a uma reorganização da sociedade, tal como a conhecíamos, e trouxe restrições à circulação de pessoas, tendo o “Estado de Emergência” implementado em Portugal (de 18/03/2020 a 3/05/2020), implicado restritivas medidas de confinamento.
Uma situação que tem sido percecionada durante a pandemia, é a da drástica redução no número de ignições e da área ardida, nos primeiros 4 meses do ano.
Como se sabe, o desordenamento do território e a falta de gestão das áreas florestais, a par do clima, da meteorologia, do relevo e da eficácia do combate e da primeira intervenção, são algumas das variáveis fundamentais na explicação da dimensão que alguns incêndios atingem, mas a ação humana, quer por negligência, quer de forma intencional, é fulcral para o deflagrar de incêndios (Lourenço, Fernandes, Nunes, Bento-Gonçalves, & Vieira, 2013), mostrando as estatísticas que, entre 2010 e 2019, apenas 1,2% das ignições, não tiveram origem humana.
II. Condições meteorológicas condicionantes dos incêndios florestais no primeiro quadrimestre no quinquénio 2015-2019 e no ano de 2020
Um dos aspetos fundamentais para a propagação dos incêndios florestais em Portugal diz respeito ao clima e às condições meteorológicas existentes (Ferreira-Leite, F., Bento-Gonçalves, A., Vieira, A., Nunes, A., & Lourenço, L., 2016; Ferreira-Leite, F., Ganho, N., Bento-Gonçalves, A., & Botelho, F., 2017). Como referia Rebelo (1980, p. 12), “o clima desempenha um papel preponderante no desenvolvimento dos grandes incêndios na floresta”, pelo que é indispensável ter em consideração os aspetos relacionados com o seu comportamento quando nos propomos a analisar a variabilidade das ocorrências numa determinada área e num determinado período.
Considerando a necessidade de enquadrar esta análise num intervalo de tempo minimamente longo que permitisse discernir a existência ou não de influência meteorológica, decidimos ter em consideração um quinquénio, integrando os anos de 2015 a 2019, e analisando os meses de janeiro a abril, enquadrando o período imediatamente anterior ao início da pandemia em Portugal (meses de janeiro e fevereiro), e os dois primeiros meses em que ocorreu o período de confinamento (março e abril).
Tendo como fonte de informação os boletins climatológicos publicados pelo Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA), para o período referido, extraímos os valores médios para Portugal Continental relativos à Temperatura Média Mensal e à Precipitação Média Mensal.
Da análise do comportamento destes elementos no período considerado, podemos constatar que, no que diz respeito à temperatura média, não se observa grande discrepância entre a média dos valores médios registados no período 2015-2019 e a registada em 2020 (fig. 1). No entanto, deteta-se uma diferença de cerca de 2,5º C no mês de fevereiro, com a média da temperatura mais elevada em 2020 (considerado pelo IPMA como o mês de fevereiro mais quente desde 1931), sendo que nos restantes meses a diferença não alcança 1º C de diferença. Uma análise mais pormenorizada permite-nos identificar algumas diferenças interanuais. Ainda que quase todos os anos apresentem um comportamento não muito distinto, o ano de 2016 regista o mês de janeiro com a temperatura média mais elevada, com cerca de 1º C mais elevado que o ano de 2020, também ele com médias superiores aos restantes anos nos dois primeiros meses do ano. O ano de 2018, pelo contrário, apresenta a média mais baixa nos meses de fevereiro e março. Já relativamente ao mês de abril, destaque para a média mais elevada do ano de 2017, cerca de 2º C mais elevada que a de 2020.
No que diz respeito à precipitação, ainda que nos meses de janeiro, março e abril as discrepâncias entre as médias registadas no período de 2015-2019 e as de 2020 não sejam muito significativas, já no mês de fevereiro a diferença é significativa, tendo-se registado um valor superior a 60mm a menos em 2020, comparativamente com o período de 2015-2019 (fig. 1). De facto, este é um aspeto bastante significativo, uma vez que já no mês de janeiro de 2020 a precipitação ocorrida foi inferior ao valor normal (IPMA, 2020), agravando-se essa situação em fevereiro, registando-se apenas 17% do valor normal (relativo ao período de 1971-2000). Segundo o IPMA, o mês de fevereiro de 2020 foi o quinto mais seco desde 1931, agravando a situação de seca meteorológica que já se vinha a verificar nas regiões a sul do Tejo.
Por outro lado, o ano de 2016 foi particularmente chuvoso nos meses de janeiro e fevereiro, registando no primeiro mês do ano mais do dobro da quantidade observada nos restantes anos em análise. Também em abril, o ano de 2016 foi o mais chuvoso. Em março, o ano mais chuvoso foi o de 2018, registando mais de 250mm (segundo março mais chuvoso desde 1931).
III. Incêndios florestais
O nosso país reúne as condições para se poder afirmar que possui um “piro ambiente”, pois junta às caraterísticas mediterrânicas, que conjugam a época quente com a época seca, a feição atlântica, que lhe permite uma elevada produtividade vegetal (Pyne, 2006).
Os espaços florestais são uma construção social, lugar de confronto, de tensões, de conflitos de uso, de apropriação e transformação, ou seja, estão sujeitos a múltiplos interesses, na sua maioria legítimos, mas muitas vezes antagónicos (Bento-Gonçalves, 2019).
Esses confrontos, tensões e conflitos (ex: baldios, caça, etc.) dependentes de fatores de ordem pessoal, social, económica e ambiental, resultam muitas vezes em incêndios florestais, aqui entendidos como o conjunto de todos os incêndios em vegetação, exceto o fogo prescrito e os incêndios agrícolas, que, pelas suas caraterísticas e dinâmicas, os autonomiza.
Com efeito, no período de 2015 a 2019, 98,4% dos incêndios tiveram mão humana, e desses, 33,8% tiveram na sua origem “queimadas extensivas para gestão de pasto”, “queimadas extensivas de sobrantes florestais ou agrícolas” e “queimas de amontoados de sobrantes florestais ou agrícolas”, ou seja, uso do fogo em atividades relacionadas com criação de gado, pastorícia, silvo-pastorícia e agricultura.
No primeiro quadrimestre do ano, em séries temporais longas (2010-2019), o mês de março destaca-se pelo elevado número de ocorrências que normalmente regista, fruto, precisamente, do tipo de uso do fogo referido anteriormente, enquanto que o mês de abril, com menos ocorrências do que o de março, se destaca dos de janeiro e fevereiro, como o segundo com maior número de ignições (fig. 2).
O mês de março de 2020 seguiu a tendência geral, embora, com valores muito inferiores aos das médias do quinquénio ou da década anterior. Já o mês de abril apresentou um comportamento diferente do habitual, com um valor inferior ao do mês de fevereiro e pouco superior ao do mês de janeiro.
Relativamente ao primeiro quadrimestre do ano, verifica-se que o ano de 2020 apresenta um total de ocorrências inferior a todos os anos em análise, inclusive, em relação a 2016, ano particularmente chuvoso nos meses de janeiro, fevereiro e abril. Já no que respeita às áreas ardidas, fruto das condições climáticas muito favoráveis à ocorrência e propagação de incêndios, o ano de 2020 ultrapassou o de 2016, ficando muito abaixo dos restantes anos (2017, 2015, 2019 e 2018) [figs. 3ª) e b)].
Com efeito, as medidas de confinamento refletiram-se diretamente no número de ocorrências e, indiretamente na extensão das áreas ardidas. No mês de março, após a instauração do Estado de Emergência, no dia 18 de março, verificou-se uma abrupta descida no número de ocorrências, a qual recuperou após uma semana, mas com uma significativa alteração de comportamentos, pois o sábado deixou de ser o dia da semana com o mais elevado número de ignições, e assistiu-se a um expressivo aumento das eclosões em horário noturno (das 20h às 04h).
IV. Discussão e conclusões
A leitura dos dados apresentados, ainda que necessariamente ligeira por se tratar de uma realidade bastante recente e limitada pelos dados pouco abundantes e ainda provisórios, não deixa de nos confirmar a perceção da realidade que se vive na atualidade, significativamente condicionada pela pandemia da COVID-19, que afeta todos os setores da atividade humana e da nossa sociedade.
Dada a relação que se tem vindo a estabelecer entre a ocorrência de incêndios florestais e a intervenção humana (Lourenço et al., 2012), parece-nos relevante ter em consideração que o estabelecimento de um confinamento obrigatório à generalidade da população e o próprio estado emocional e sociológico que enquadra a situação possa ser fator suficiente para explicar a redução de incêndios florestais e da consequente área ardida.
Esta interpretação parece-nos ainda mais verosímil quando acompanhada por condições de ordem meteorológica, ocorridas durante o período de confinamento e o que o antecedeu, que facilmente se poderiam considerar favoráveis à deflagração de incêndios florestais e num período tradicional de renovação de pastagens. A observação de condições semelhantes no primeiro quadrimestre de anos anteriores revelou um número bastante superior de ocorrências, facto que reforça a nossa perspetiva.
Obviamente que, independentemente da atual pandemia, esta breve reflexão também mostra, de forma inequívoca, a relação entre o uso do fogo no mundo rural e parte substancial da ocorrência de incêndios florestais, demonstrando a causalidade destes por ação humana.
Neste sentido é necessário e urgente repensar o mundo rural, apoiando as populações que, com grande esforço e sacrifício, se mantêm nas áreas montanhosas e no interior e que, com a desestruturação do mundo rural e a extrema litoralização do nosso país, se sentem, muitas vezes, à margem das estratégias de desenvolvimento, sendo, no entanto, cruciais na manutenção das nossas paisagens e de boa parte dos serviços ecossistémicos gerados em Portugal (Bento-Gonçalves, Vieira, Ferreira-Leite, Martins, & Costa, 2010).