I. Introdução
As relações econômicas entre a China e a América Latina se desenvolvem no contexto da economia capitalista mundial na etapa que Karl Polanyi (1944) chamou de “a grande transformação na história mundial”: o surgimento do capitalismo de mercado como uma variação do próprio capitalismo. Dentro das variedades do capitalismo que não sejam os modelos anglo-saxão, renan e japonês (Becker, 2013), a China representaria o modelo mais bem-sucedido, enquanto outros exemplos, como o Brasil, que já havia feito progressos significativos no desenvolvimento econômico-industrial e tecnológico até o início da década de 2010, seria o único caso latino-americano que fazia parte do grupo de países com novos modelos de capitalismo (Becker, 2013) mas não continuou com o mesmo nível de dinamismo. Na década seguinte, o Brasil transitou para uma situação de paralisação da ascensão econômica, industrial e tecnológica, interrompendo a sua espiral de desenvolvimento, mantendo-se em uma condição semi-periférica dentro da economia mundial, mas de periferia em relação à China se se considerar a natureza do comércio interindustrial bilateral (Bernal-Meza, 2019a, 2019b). Tal fato é muito importante para compreender o impacto da presença da China na integração sul-americana e a gradual perda de poder de atração do Brasil como eixo e líder de uma sub-região. O poder econômico, comercial e financeiro é transformado em poder político.
II. A economia política das relações China-América Latina
Li e Shaw (2013) aplicaram a interpretação de Polanyi à análise das relações entre a China e África para explicar o processo de construção de uma relação centro-periferia e apontaram que havia uma interpretação dessas relações como imperialista o que não ocorre no caso latino-americano. Essa interpretação de centro-periferia ajuda a compreender a relação entre a China e a América Latina, uma vez que esta região também é parte, hoje, da periferia chinesa.
O processo de periferização, ou seja, o retorno a um estágio de desenvolvimento abandonado graças ao desenvolvimento da industrialização e a re-periferização, isto é, o fortalecimento ou reafirmação do caráter primário da economia, que sofrem os países da América do Sul como consequência dos efeitos da economia política internacional, causados pelo desenvolvimento econômico, industrial e tecnológico chinês em apenas trinta anos, motivou a análise em distintas publicações (Bernal-Meza & Li, 2020; Comissão Económica para a América Latina e o Caribe [CEPAL], 2015, 2018; Dussel, 2016; Ellis, 2009; Guelar, 2013; Moneta & Cesarín, 2016; Pastrana & Gehring, 2017; Sevares, 2015).
A periferização é o retrocesso às condições primárias em relação a outros centros do sistema-mundo e também em relação a outros países graças ao seu desenvolvimento industrial como Brasil e Argentina. A re-periferização corresponde à situação daquelas economias que haviam realizado alguns progressos no processo de industrialização primária ou primeira etapa da industrialização destinada à exportação (alimentos, roupas, sapatos, brinquedos e outros produtos de madeira, etc.) mas que regressaram ao estado de atraso anterior, como consequência do retorno à especialização produtiva primária. Ambas situações, postas contra o pano de fundo do desenvolvimento econômico e exportador da China, evidenciam o contraste entre o alto desenvolvimento econômico desta potência e as dificuldades dos países latino-americanos em reduzirem a sua dependência por seu profundo atraso tecnológico.
No comércio exterior latino-americano, embora tenha havido um crescimento moderado das exportações de origem industrial para o mundo, no caso do intercâmbio com a China essas exportações caíram consideravelmente. Segundo a CEPAL (2018, p. 41):
A cesta de exportações da América Latina e do Caribe à China é muito menos sofisticada do que as suas exportações para o resto do mundo. De fato, em 2016, os produtos primários representaram 72% do valor das exportações da região para a China, face a 27% no caso das exportações para o resto do mundo. Ao contrário, as indústrias de baixa, média e alta tecnologia representaram somente 8% das exportações desta região para a China, face a 57% para o resto do mundo. O contrário ocorre no caso das importações: enquanto as indústrias de baixa, média e alta tecnologia representaram, em 2016, 91% do valor das compras regionais da China, sua participação nas importações do resto do mundo, ainda que também elevada, foi substancialmente menor (68%). Em outras palavras, o comércio entre a América Latina e o Caribe e a China continua sendo essencialmente interindustrial: matérias-primas por indústrias.
O quadro I apresenta os principais produtos exportados pela América Latina e Caribe para a China.
A China tornou-se um ator chave na economia mundial e consolidou uma relação de dominação econômica com a região porque o seu modelo de produção estimulou o crescimento do resto das economias do mundo através da criação de um circuito virtuoso de investimento, produção e mercado. No contexto da economia-mundo capitalista, a América Latina foi arrastada por esse centro dinâmico (Oviedo, 2014) e transformou-se em uma região economicamente indispensável para a China.
A China é o principal parceiro comercial do Brasil, Chile, Venezuela, Peru, Uruguai e Argentina (desde setembro 2019), segundo parceiro comercial da Colômbia, e o principal exportador para o Paraguai e Bolívia. Alcançou esta posição em menos de trinta anos, como o centro de uma estrutura centro-periferia, especializando a nossa região como exportadora de produtos primários, commodities e importadora de seus bens industriais, equipamentos, tecnologias, investimentos e empréstimos.
O aumento dessa presença econômica acelerou-se a partir da metade da década de 90. Foi o resultado a que Oviedo (2012a, 2012b) chamou de “a luta pela modernização”: a confrontação entre o modelo de desenvolvimento chinês - industrialização orientada à exportação - e o modelo latino-americano de modernização de industrialização por substituição de importações. Nesse processo, a China construiu com a América Latina uma estrutura econômica que evoluiu sob o clássico formato interpretado por Prebisch (1949, 1951) para explicar a relação de dependência econômico-comercial que sofre a América Latina na sua inserção no comércio mundial. A teoria da “deterioração dos termos de troca” explica as atuais relações entre a China e a América Latina; colocando em evidência um acelerado processo de re-primarização e primarização do intercâmbio comercial, com o desenvolvimento de uma nova etapa de dependência, que reproduz os ciclos de subordinação econômica - com as suas implicações políticas - que a nossa região viveu anteriormente com outras potências industriais hegemónicas no passado.
*SHDCM - Sistema Harmonizado de Descrição e Codificação de Mercadorias.
Fonte: CEPAL, com base em informações do Banco de Dados Estatísticos das Nações Unidas sobre Comércio de Mercadorias (COMTRADE; CEPAL, 2018)
Como argumentou Bernal-Meza (2017a), o pensamento chinês, através dos textos de Jiāng Shíxué, um dos principais especialistas chineses na América Latina, tentou negar a teoria da “deterioração dos termos de troca”, dado que a crítica latino-americana à estrutura de relações econômicas sino-latino-americanas sustenta que esta reproduz o padrão básico centro-periferia. Jiāng (2006), defendendo a posição da China, afirmou que aquela relação comercial se baseava em uma cooperação win-win, graças a que a demanda chinesa de commodities havia provocado um aumento dos seus preços internacionais, enquanto a exportação de seus produtos industriais, cuja produção era mais barata que os similares exportados por outras economias industrializadas, fazia com que estes bens chegassem mais baratos aos mercados latino-americanos. Portanto, a balança comercial resultaria favorável para os países latino-americanos, o que nega a tese de Prebisch.
As características da estrutura de comércio sino-latino-americano poderiam ter-se ajustado ao sinalizado por Jiāng até 2008, quando a China não alcançava ainda a posição de primazia que mais tarde conseguiria. O que ocorreu a partir de 2008 - e o caso argentino passou a ser o exemplo mais evidente (Oviedo, 2016; Sevares, 2015) - foi que a demanda chinesa de commodities latino-americanas começou a diminuir; retornando à tendência decrescente de seus preços internacionais, enquanto começava a aumentar o valor das importações de bens industriais chineses, reafirmando a vigência da tese de Prebisch sobre a volatilidade das exportações e dos preços destas commodities. A realidade da crise internacional de 2012 se refletiu em uma baixa nos preços destas, com a consecutiva deterioração do setor exportador primário que marcaria o fim do ciclo de ouro das matérias-primas (2001-2013). Com a exceção do Chile, Brasil, Venezuela e do Peru, a balança comercial bilateral com a China passou a ser deficitária, com um enorme peso devido ao impacto da balança comercial do México com Pequim, cujo deficit comercial é responsável por dois terços do deficit de todos os países da região em seu intercâmbio com Pequim (CEPAL, 2018).
Como aconteceu em outras épocas, a China foi a locomotora do crescimento econômico latino-americano pela via da demanda de exportações primárias. Mas a partir de 2014 elas caíram muito mais que as exportações ao mundo e, desde então, continuam caindo. Para a CEPAL (2015, p. 35), “a queda das exportações regionais à China em 2014 foi generalizada e obedece a uma redução da demanda de matérias-primas nesse país”. Porém, aumentaram cada vez mais as importações industriais procedentes da China e cresceram os empréstimos e investimentos chineses (Oviedo, 2016, 2017b; Sevares, 2016). Em uma análise recente a CEPAL (2018, p. 39) afirma que “a queda do valor das exportações da região à China entre 2013 e 2016 também foi de 25% e equivale a mais do dobro da contração registrada pelas importações regionais desde esse país (11%). Isso se explica, em grande medida, pelo fim do denominado “super ciclo” das matérias-primas. A relação comercial com a China é persistentemente deficitária para a região e o deficit projetado para 2017 era próximo aos 67 bilhões de dólares”. A figura 1 apresenta o comércio total, importações e exportações bilaterais.
Fonte: Banco de Dados Estatísticos das Nações Unidas sobre Comércio de Mercadorias (COMTRADE), em CEPAL (2018).
Os analistas se referem às relações entre China e América Latina como relações Sul-Sul ou Este-Sul e/ou como relações entre semi-periferia e periferia, assim como entre semi-periferia e semi-periferia (Li & Christensen, 2012b; Pieterse, 2017).
Bernal-Meza e Li (2020), CEPAL (2015, 2018), Guelar (2013), Li (2010, 2012b), Li e Christensen (2012a), Medeiros e Cintra (2015), Pastrana e Gehring (2017), Prieto et al. (2017), Oviedo (2012a, 2014, 2017b), Sevares (2012) e Vadell et al. (2014), e coincidem em que, entre ambas as partes, se desenvolveu uma estrutura econômica que fez da região latino-americana a parte dependente e subordinada de uma relação que, para a América Latina, se tornou imprescindível. Paradoxalmente, também complementária e harmoniosa, porque cada parte da relação exporta à outra aquilo que constitui a sua cesta especializada de produção para a exportação.
Politicamente, a China não demonstra interesse em apoiar a autonomia da região no âmbito das relações hemisféricas e não é uma alternativa às relações com os Estados Unidos. Apesar de participar de distintos organismos e esquemas de regionalismo - observador da Organização dos Estados Americanos, Banco Interamericano de Desenvolvimento, Associação Latino-Americana de Integração e Aliança do Pacífico e ser o parceiro do fórum da Comunidade de Estados da América Latina e das Caraíbas com a China -, ela tem preferência por relações bilaterais, principalmente econômicas e numa perspectiva capitalista, privilegiando umas relações mais que outras (Defelipe, 2017; Ferrando, 2016; Legler et al., 2020; Tzili Apango, 2017; Velosa, 2017), e o fórum não representa ameaça aos princípios organizadores das organizações latino-americanas e hemisféricas (Tzili Apango, 2017).
Mas a China se transformou no principal destruidor dos processos de integração sul-americanos e em particular do Mercosul (Bekerman & Moncaut, 2016; Bernal-Meza, 2012; Hiratura, 2016; Oviedo, 2016). Esta situação se concretizou complementando duas vias: os efeitos da deterioração dos termos de troca e o efeito da primarização e a re-primarização das economias latino-americanas, já que a especialização primária impede a modernização produtiva e reduz drasticamente o potencial exportador industrial. Um dos efeitos deste processo foi o deslocamento do Brasil como o eixo dinâmico dos processos de integração econômica (Mercosul) - o Brasil não é mais o principal parceiro comercial da Argentina e Uruguai- e política (UNASUL), desde que os principais países da América do Sul, incluindo o Brasil, deixaram essa organização em 2019.
III. Evolução e interpretação do processo de relacionamento bilateral
Três elementos sustentam a relação centro-periferia entre a China e a nossa região: 1) a harmonia assimétrica do comércio interindustrial entre as exportações primárias latino-americanas e a importação de bens de capital e manufaturas chinesas; 2) a complementaridade comercial e financeira, derivada de uma interdependência comercial assimétrica e uma dependência das fontes chinesas de provisão financeira; 3) a transformação da região em uma função de desenvolvimento econômico chinês (no sentido do papel que desempenham estas relações dentro do desenvolvimento capitalista chinês), graças à complementaridade e harmonia de interesses econômicos e comerciais (Bernal-Meza, 2012, 2019a; Oviedo, 2014, 2016).
Em um esforço de incrementar o potencial que evidenciava este comércio, no princípio do século XXI, os países latino-americanos, começando pelo Chile, foram respaldando os objetivos chineses no contexto do comércio internacional. Ocorreram benefícios políticos para a China na medida em que os países latino-americanos foram apoiando a agenda internacional de interesses chineses: a política de uma China única (Taiwan); o não questionamento à ocupação do Tibete, o não questionamento à prática de violação dos direitos humanos por parte do poder político chinês e nem da aceitação da China como uma economia de mercado e o apoio ao seu ingresso à Organização Mundial do Comércio (Bartesagui, 2015; Bernal-Meza, 2012, 2017a).
O apoio que a região concedeu à China para sua adesão à OMC tornou-se um fator negativo. Desde que a China ingressou na OMC até o ano anterior à crise financeira internacional (2008), as exportações chinesas à região aumentaram em 34%. A China substituiu fornecedores nacionais na região (Bernal-Meza, 2012, 2016; Dussel, 2016; Medeiros & Cintra, 2015) afetando os objetivos do Brasil em se tornar o centro de um subsistema produtivo-industrial sub-regional. Introduziu um fator de profundo desequilíbrio ao se transformar em um ator chave da economia política internacional da América do Sul, deslocando o Brasil dessa posição. O Brasil perdeu posições entre os principais parceiros comerciais da América Latina, incluindo seu principal parceiro: Argentinai. Os anos de 2000 a 2010 coincidem com o crescimento das exportações da China para a América Latina com a tendência decrescente das exportações brasileiras para a região. Esse período correspondeu ao estágio de maior ativismo político do Brasil na América do Sul, sob os governos de Lula da Silva. O quadro II indica a evolução das exportações.
Como defende Li (2019), a sinergia dos fatores internos (relações estado-mercado-sociedade) e fatores externos (geopolíticos, relações geoeconômicas em um contexto sistêmico) chegou a configurar as estratégias do desenvolvimento chinês e da América Latina em diferentes direções. O sucesso chinês permitiu articular o seu desenvolvimento e economia com o mercado global (competição, cadeias de produção e cadeias de valor). Ao mesmo tempo, esse sucesso expôs o fracasso das políticas de modernização e industrialização implementadas pela região.
A razão desta relação “dependentemente harmoniosa” e cada vez mais importante entre a nossa região e a China, foi o extraordinário crescimento econômico chinês e a diferença no nível de desenvolvimento científico e tecnológico favorável à China. Este fator a transformou em um país cada vez mais relevante para as relações econômicas internacionais de exportação e importação e às ofertas de investimento. Graças a esta diferença nos níveis de desenvolvimento científico e tecnológico no setor industrial, o avanço das exportações primárias latino-americanas à China coincidiu com o aumento das exportações industriais chinesas à América Latina. A economia do Brasil normalmente havia sido maior que a da China até ser superada por ela em 1990. Há trinta anos, o Brasil tinha uma maior inserção econômica na economia mundial medida em porcentagem e em dólares e as exportações industriais brasileiras superavam de longe as exportações industriais chinesas. A realidade atual é justamente o contrário.
A confrontação de modelos de modernização socioeconômica entre os exemplos chinês e latino-americano, principalmente desde a recuperação da democracia na América do Sul, é a outra cara da moeda do êxito da inserção econômica internacional chinesa e também do fracasso latino-americano. As respectivas democracias não conseguiram transformar as estruturas produtivas dos países. Não diversificaram as exportações, não diminuíram a pobreza, nem reduziram a profunda desigualdade na distribuição da riqueza interna dos países. Os governos populares ou de esquerda também não souberam aproveitar o boom das exportações de commodities para promover uma restruturação dinâmica das suas estruturas produtivas e industriais. Procuraram tirar vantagem das receitas das exportações destinando esses recursos a objetivos de políticas públicas que não promoveram a modernização produtiva (De Gori et al., 2017; Oviedo, 2012b).
A situação entre a China e os países latino-americanos aprofundou a heterogeneidade estrutural de nossas economias em termos de produtividade, devido a diferenças no valor agregado da produção e a especialização produtiva destinada à exportação para os mercados chineses. A essa situação foi adicionada a importação de mercadorias chinesas, que impactaram negativamente o intercâmbio comercial e a integração intra latinoamericano que complementariam as economias nacionais. Este fenômeno está relacionado também com a heterogeneidade das estratégias comerciais aplicadas pela China em relação a cada parceiro latino-americano. Como consequência das diferenças entre os países da região no seu comércio com a China, seus respectivos perfis de especialização e seus ganhos relativos, existe uma diversidade de posições e percepções entre os países latino-americanos sobre o que a China representa para as suas respectivas condições de desenvolvimento econômico (Bernal-Meza, 2014), além do desafio que sua presença econômica representa, num curto e médio prazo, para as suas próprias políticas de modernização industrial, diversificação produtiva e de exportações ( Moneta & Cesarín, 2016; Pastrana & Gehring, 2017).
IV. Uma explicação estrutural para a nova etapa de dependência da América Latina
A presença econômica da China se acelerou a partir de meados da década de 90 e se estendeu amplamente a princípios de 2000, como resultado da confrontação entre o modelo de desenvolvimento chinês - industrialização orientada para a exportação - e o modelo latino-americano de modernização - industrialização por substituição de importações, destinado a satisfazer a demanda dos mercados internos . Entretanto, esta luta foi acompanhada, mais tarde, pelo fracasso do modelo de inserção pela via da desregulação, do desmantelamento das indústrias estatais, das privatizações dos bens públicos e da abertura comercial unilateral que foram promovidas pelas políticas neoliberais aplicadas pela maioria dos países sul-americanos, com exceção do Chile, que tinha iniciado ditas políticas em 1975, e pelo México a partir dos anos 90.
Ao analisar a evolução do Produto Interno Bruto (PIB) das vinte principais economias do mundo, entre 1980 e 2000, é possível observar como a China e também a Índia e a Coreia do Sul crescem no ranking mundial, enquanto países como o Brasil, México e Argentina retrocedem. O sucesso da modernização chinesa, sob um sistema político autoritário, pôs em evidência o fracasso dos líderes latino-americanos para promover, sob sistemas políticos democráticos, exitosas modernizações econômicas. O quadro III mostra a evolução das principais economias mundiais, incluindo Brasil, México e Argentina e a figura 2 apresenta a evolução do PIB dos principais países do mundo desde 1980.
A relação complementar e harmoniosa se desenvolveu sob uma estrutura econômica centro-periferia graças ao êxito do modelo de industrialização aplicado pela China e ao fracasso do modelo de desenvolvimento e modernização da região latino-americana. A estrutura é o resultado de uma relação econômica sustentada em variáveis de progresso econômico-industrial e científico-tecnológico muito diferentes, e seria difícil provar que fora o resultado de um objetivo político chinês. Os governos da nossa região tampouco foram capazes de tirar vantagem do ciclo de bonança da demanda importadora chinesa (De Gori et al., 2017) e a crítica ao neoliberalismo - ao qual recorreram os governos progressistas durante as décadas de 2000 e 2010 - não veio acompanhada de novas ideias. Foi o “giro à esquerda” que se expressou em países cujas experiências industriais haviam sucumbido diante da competição derivada das cadeias globais de valor articuladas pelo Nordeste Asiático, mas principalmente pela China.
1. Brasil e Argentina na frente da China
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV), divulgados pela Agenciabrasil.ebc, a China continuou sendo o principal destino das exportações brasileiras em 2018. Graças a este comércio, o Brasil obteve um excedente global de US$ 58,7 bilhões em transações comerciais no exterior naquele ano. A FGV informou que o aumento da participação chinesa entre 2017 e 2018 - de 21,8% para 26,8% - foi impulsionado pelas três principais commodities exportadas para esse país: soja em grão, petróleo e minério de ferro. Juntos, esses produtos representam 82% das exportações brasileiras para a China. A natureza interindustrial do comércio bilateral é observada ao analisar a cesta de importações daquele país. O quadro IV apresenta as exportações brasileiras para a China.
No âmbito multilateral, a relação entre o Brasil e a China no contexto do grupo de países do BRICS (Brasil, Rússia, China e África do Sul) também reproduziu as características da relação centro-periferia. Esta situação tem debilitado não só os BRICS, uma vez que reproduz internamente uma relação norte-sul e centro-periferia que o mesmo grupo questiona ao nível da economia política internacional, mas também deteriora o objetivo de multilateralismo da política exterior brasileira (Bernal-Meza, 2019b).
Como destacam Becard, Barros-Platiau e Lessa, uma segunda macro tendência na ascensão da China no BRICS é a do país ser responsável por mais de 75% do PIB da coalizão. O seu surgimento como parceiro comercial bilateral pode levar a graves desagregações. Em outras palavras, Pequim é tão poderosa, que Brasília está cada vez mais preocupada com a dependência do Brasil em relação ao comércio e investimentos chineses. Uma terceira tendência é que o Brasil também é mais dependente do BRICS e espera melhorar as relações comerciais com a Índia e a Rússia num curto prazo. Nesse sentido, a saída não é uma opção. Ao mesmo tempo, o país está perdendo sua voz nos BRICS e no Novo Banco de Desenvolvimento. Então, a pergunta para o futuro é: a lealdade aumentará nesse caminho de crescente dependência brasileira? (Becard et al., 2019, p. 144)
Como argumentou Bernal-Meza (2019a, p. 125), “Brasil entrou nos BRICS em busca de uma aliança estratégica com a China no campo da política e economia internacionais, mas isso não aconteceu”. E a razão fundamental tem sido a relação centro-periferia que se desenvolveu entre a China e o Brasil.
Argentina e China representam também dois exemplos opostos de desenvolvimento capitalista: o bem-sucedido modelo de orientação externa chinês e o fracassado modelo argentino de desenvolvimento pela substituição das importações (Li, 2019; Oviedo, 2012a, 2012b). Tal como todos os processos similares da região, a Argentina não conseguiu inserir-se eficiente e dinamicamente em uma economia mundial dominada pelo desenvolvimento científico-tecnológico, na qual o papel da China é cada vez mais importante (Bekerman & Moncaut, 2016; Dussel, 2016; Moneta, 2016; Sevares, 2015). A figura 3 indica a cesta principal das exportações argentinas para a China, enquanto o quadro V compara importações e exportações da Argentina e China por setor.
O choque das modernizações, o atraso tecnológico e a especialização confluíram para conduzir a Argentina ao que Oviedo (2016) denominou de “o paradoxo dos alimentos”. Ele questiona o porquê da Argentina, sendo um país produtor de matérias-primas alimentícias beneficiado pelo aumento do preço mundial das commodities agrícolas, transferir, entre 2008 e 2014, mais de US$ 24 bilhões mediante um deficit comercial com a China, um país com crescente necessidade de importação de alimentos. Ou seja, a lógica não parece funcionar no comércio sino-argentino.
Como argumentou Moneta (2016), a Argentina, o MERCOSUL e o resto da América Latina enfrentam situações complexas em relação ao desenvolvimento e à inserção internacional. Os problemas são percebidos como de difícil solução nas suas relações econômicas e financeiras com a China, e as assimetrias - com esta potência e outras economias dinâmicas da região Ásia-Pacífico - se multiplicarão dramaticamente durante as próximas décadas.
O Brasil e a Argentina têm as chamadas parcerias estratégicas com a China, mas apenas o Brasil tem uma agenda de interesses políticos globais ao lado da China no âmbito do sistema internacional com os BRICS. Mais nenhum dos dois países latino-americanos conseguiu levar essa relação a um plano equilibrado dos intercâmbios comerciais setoriais. Como afirma Becard,
as relações entre a China e o Brasil se caracterizam mais por serem relações verticais com compensações limitadas - principalmente nas relações comerciais -, que por serem uma associação estratégica horizontal e recíproca, baseada no intercâmbio balanceado de produtos e serviços de valor agregado, investimentos e cooperação em áreas fundamentais para o projeto de desenvolvimento do Brasil”. (Becard, 2017, p. 405)
2. Investimento e diversificação produtiva
O Investimento Direto Estrangeiro (IDE) joga um importante papel no desenvolvimento econômico da região. Para a China, o IDE é cada vez mais importante e a América Latina e o Caribe estiveram no alvo desta. O início do processo de investimento na região coincidiu com o “Livro Branco para a América Latina” de 2008, que respaldou o argumento de que as estratégias de investimento foram decisões políticas muito específicas (Oviedo, 2017a; Sevares, 2016). Desde 2007, a China se tornou a segunda fonte de investimento direto estrangeiro para a região e um fornecedor importante de financiamento, através de diferentes mecanismos de empréstimo. Os projetos de infraestrutura “chave na mão”, proporcionados pelas empresas chinesas, passaram a ser importantes instrumentos para promover tecnologia, financiamento, mão-de-obra, manutenção e processos de pós-venda, de origem chinês.
O IDE chinês provoca uma condição contraditória. Apesar da importância que tem para a América Latina, ele gera uma séria consequência econômica ao processo de desenvolvimento na região, já que não possui vínculos com a estrutura produtiva e social dos países latino-americanos e do Caribe (Bernal-Meza, 2012; Ortíz Velázquez & Dussel Peters, 2016). Apesar de a região ser o segundo destino de exportação do capital chinês, paradoxalmente a quantidade e qualidade da produção de tratados de investimentos com a América Latina não promovem o investimento direto estrangeiro chinês na região (Liss, 2018). O autor cita Lin (2015, p. 11), que concluiu que o IDE “demonstra a intenção das empresas estatais chinesas de obter fontes de petróleo e recursos minerais na América Latina e o Caribe”. Outros analistas chegaram à conclusão de que as empresas estatais chinesas não têm a motivação comercial para investir na América Latina e Caribe porque procuram aplicar a “estratégia de desenvolvimento (chinês) a longo prazo” (Liss, 2018). Embora o IDE chinês se concentre em projetos e aquisições intensivas em setores de recursos naturais (mineração, petróleo e gás), nos últimos cinco anos cresceram seus interesses pelo setor das telecomunicações, da indústria indústria automotiva, de eletricidade e das energias não convencionais. Segundo a CEPAL (2018), estes setores oferecem oportunidades atrativas às empresas chinesas e, ao mesmo tempo, podem desempenhar um papel muito relevante para o desenvolvimento da América Latina e Caribe através de investimentos e empréstimos. Estes têm sido decisivos no processo de re-periferização das economias industriais da região, tais como a do Brasil e Argentina. Quanto mais dependente é a América Latina das importações chinesas e das suas exportações de capital, mas comprometida está a região com a sua autonomia econômica e financeira internacional. A figura 4 mostra a distribuição do IDE chinês em 21 países da América Latina e do Caribe.
V. Conclusões
O extraordinário e rápido crescimento da China na estrutura de poder econômico mundial como um fato sem precedentes na história do capitalismo (Li, M., 2008; Li, X., 2010, 2019), tem impactado a região com respeito à redução do desenvolvimento científico-tecnológico e industrial nas suas relações econômicas internacionais. Mas, de acordo com Muchi e Li (2010, p. 53):
“O surgimento da China, por um lado, inevitavelmente gerará uma mudança de poder e moldará de novas maneiras a ordem internacional, mas, por outro lado, ajudará a construir um novo tipo de equilíbrio de poder na política mundial, baseada no multilateralismo e no institucionalismo”.
O fato de passar da periferia ao centro em menos de quarenta anos tem gerado profundas transformações nas relações entre o centro, a semi-periferia e a periferia (Li, 2012a, 2012b; Li & Christensen, 2012b). Esse movimento ao centro da economia mundial modifica a hierarquia de posições na estrutura econômica mundial. Se tornou uma fonte de conflitos entre os países que vão ficando para trás no processo, principalmente aqueles, como Brasil e Argentina, que haviam iniciado a sua industrialização nos anos 1910-1920, e que em 1970 já eram identificados internacionalmente como parte do segmento “semi-periférico” da economia mundial (Arrighi, 1997, 1998; Wallerstein, 1979).
Visto desde essa perspectiva, a centralização da China está conduzindo à re-periferização dos países hoje semi-periféricos, substituindo as suas produções e mercados de exportação de caráter industrial. Esse fenômeno foi destacado por Li (2012a, 2012b) e Li e Christensen (2012a), que defendiam que já era possível prever que o crescimento econômico da China e a sua participação ativa, especialmente nas zonas da semi-periferia, provocariam mais desafios e restrições ao desenvolvimento dos países mais atrasados. Como destacam Bernal-Meza (2019a) e Oviedo (2012b), os desafios para os países periféricos e semi-periféricos surgem em consequência da bem-sucedida modernização chinesa. Lamentavelmente para a América Latina,
as características que apresenta o comércio entre a região e a China são dificilmente modificáveis no curto prazo. O seu caráter interindustrial é o resultado principalmente da complementaridade entre as respectivas dotações atuais de fatores produtivos, em particular no caso das economias exportadoras de matérias-primas da América do Sul. (CEPAL, 2018, p. 95)
Assim como os governos populares e de esquerda não aproveitaram a bonança para modernizar as estruturas econômicas, o crescimento dos governos liberais e neoliberais e suas políticas de abertura e desregulamentação tem sido um fator de grande importância para entender também a baixa no incremento do setor produtivo sul-americano.
Sete argumentos permitem sustentar o complexo diagnóstico sobre o caráter da relação bilateral sino-latino-americana:
- Aparentemente, não há razão para assumir que, politicamente, a China representa para a América do Sul e para a América Latina uma alternativa à autonomia política e econômica com respeito aos Estados Unidos. Ademais de ter o Brasil associado à sua agenda de interesses na cooperação sul-sul e no contexto dos BRICS, nem ele nem os outros países têm sido associados aos seus planos internacionais em relação aos temas de política mundial: segurança estratégica; conflitos regionais; reforma e ampliação do Conselho de Segurança, etc.;
- Paradoxalmente, a busca pela primazia econômica mundial fez com que a América Latina desempenhasse um papel importante na estratégia internacional da China. Como destaca Cesarín (2016), os objetivos chineses na região convergem com as suas crescentes aspirações de poder globais, da vontade de projetar seu poder à periferia estadunidense e de acessar os recursos naturais essenciais para sustentar o seu crescimento económico;
- Economicamente para a América Latina se repete o ciclo de relações econômicas norte-sul ou centro-periferia que caracterizaram a etapa de hegemonia econômica norte-americana no século XX;
- As relações políticas da China com a região reproduzem um padrão de pragmatismo e funcionam de acordo com os interesses econômicos chineses;
- Tanto o comércio quanto os investimentos chineses estão vinculados aos seus interesses nacionais, no sentido em que proporcionam segurança alimentar, insumos básicos, comunicação estratégica e acesso ao transporte (Cesarín, 2016; Oviedo, 2016; Sevares, 2015);
- A América Latina desempenha um importante papel na estratégia capitalista global da China, através da especialização produtiva e do comércio inter industrial;
- A China impacta negativamente nos processos de integração da América Latina, particularmente no MERCOSUL, ao substituir os fluxos comerciais e estimular a especialização. Este fenômeno desintegra a relação econômica internacional entre os países da América do Sul e os distancia economicamente entre eles, devido à falta de complementação e ao aumento da competição produtiva entre eles: Peru e Chile exportam cobre; Argentina, Brasil e Paraguai exportam soja; Venezuela e Argentina abastecem petróleo, etc.
A complementaridade comercial e a harmonia do intercâmbio entre a China e os países latino-americanos não contribui ao desenvolvimento e à modernização produtiva e industrial dos países da região, já que ambos acontecem para satisfazer a um ator externo, que induz a especialização produtiva.
Por causa do comércio, dos investimentos e dos empréstimos, existe o risco de que os governos de alguns países latino-americanos sofram pressões do estado chinês, como foi observado em alguns casos com as economias mais industrializadas da América do Sul: no contexto do Brasil e do Chile, através dos investimentos chineses no setor elétrico, segmento economicamente estratégico dada a importância que tem para a indústria e os serviços, e no caso da Argentina, através da negociação de acordos com a inclusão da cláusula cross default, que determina que uma vez negociados os termos de um contrato que inclui vários projetos, a revisão de um deles põe fim a todos eles. Desta forma, fica vinculada toda a rede de acordos negociados entre China e Argentina. Esse mesmo mecanismo impediu a Argentina de renegociar com sucesso as condições dos acordos assinados em Pequim, durante os mandatos de Cristina Fernández, cujas condições têm sido consideradas muito benéficas para a China, mas não tanto para a Argentina (Bernal-Meza & Zanabria, 2020; Oviedo, 2016; Sevares, 2015).
O poder acumulado pela China na economia mundial durante os últimos quarenta anos se traduz em uma “consequência não desejada” para outros países, como os da América Latina. Talvez não fosse o “plano original” da China desde um princípio (estratégico ou deliberado) transformar a América Latina na sua periferia. A tática industrial escolhida pela potência asiática criou uma consequência involuntária para outros países, tanto do norte como do sul, porque essas relações estão induzidas pela lei do valor e pela lógica econômica do capitalismo. Parece não haver um processo colonial entre a China e a América Latina - apesar de que algumas características históricas se repitam -, mas sim a existência de claras manifestações de subordinação e de dependência econômica e financeira que derivam das desigualdades de desenvolvimento tecnológico entre uma e os outros.
Neste sentido, deve-se enfatizar que alguns dos fatores que destacam a força e o auge econômico da China também são a expressão das debilidades dos países da região. Ou seja, a outra cara do sucesso chinês é a desgraça da América Latina, dado que, há quarenta anos, a China era um país periférico, como todos os países da América Latina, com exceção da Argentina e do Brasil. O motivo está que, em razão ao amparo e à proteção do modelo de industrialização por substituição de importações, nem o setor privado- que se beneficiou dos mercados dependentes -, nem o Estado - que não impulsionou o seu apoio -, nem as universidades fizeram o investimento em ciência e tecnologia necessários. Melhor dizendo, o desenvolvimento tecnológico e a relação inovação-desenvolvimento não foram uma política pública e tampouco uma direção do setor privado. A consequência tem sido a primarização e a re-primarização econômica da região. O processo de periferização tem sido acompanhado por uma eficiente e bem-sucedida diplomacia chinesa (Bartesagui, 2015; Ferrando, 2016; Oviedo, 2005; Rodríguez & Yan, 2013), com base no win-win rhetoric, que supostamente está nos princípios da cooperação Sul-Sul (Bernal-Meza, 2016, 2017a, 2017b).
A América Latina parece estar se concentrando não somente no investimento, no comércio e na tecnologia chinesas dominantes, mas também na “economia política” provocada pelo auge econômico desse país: os efeitos e as consequências da estrutura de relacionamento bilateral frente às relações econômicas e políticas internacionais de cada parte, no contexto da evolução do sistema capitalista a nível mundial.
Durante quarenta anos, a China veio implementando um plano para conseguir tornar-se o que é hoje. Por outro lado, não vemos um exemplo similar na América Latina. Consequentemente, a natureza da relação China-América Latina deve ser considerada como um resultado da análise precedente. A posição alcançada pela China e o poder econômico-científico-tecnológico que a sustenta evidenciam o rotundo fracasso das estratégias de desenvolvimento executado pelos países da América Latina.