I. Introdução
A identidade associada ao território é hoje uma questão chave no desenvolvimento regional e local. Trata-se de uma construção social que se estrutura, de um modo dinâmico, na articulação entre as comunidades e o território onde se inscrevem. Stobbelaar e Pedroli (2011, p. 322) definem “identidade da paisagem”, como a “unicidade percecionada de um lugar, no quadro de um determinado contexto espacio-cultural”, integrando o observador e o lugar de observação.
A Convenção Europeia da Paisagem refere a paisagem como “(...) uma parte do território, tal como é apreendida pelas populações, cujo carácter resulta da ação e da interação de fatores naturais e ou humanos” (Conselho Europeu [CE], 2000, p. 2; República Portuguesa, 2005). Acresce que a paisagem abarca uma perspetiva holística (Saraiva & Lavrador, 2005), integrando lugares físicos e construções mentais, que envolvem aspetos materiais, como o uso e a ocupação do solo e aspetos subjetivos, como sensações de pertença e de bem-estar, os quais conferem um caráter de singularidade aos lugares, valência estruturante da identidade (Castells, 2003, in Roca, 2004).
Os primeiros trabalhos sobre a questão da identidade ligada à paisagem referem-se à designação spatial identity (Van Zoest, 1994, in Stobbelaar & Pedroli, 2011), por alguns designada por landscape identity (Antrop, 2000; Palmer & Lankhorst, 1998). Estes trabalhos enfatizam o caráter da paisagem (Antrop, 1998; Wascher, 2005), reconhecido por formas, padrões e elementos, mas também cores, sons, cheiros e processos (Stobbelaar & Hendriks, 2006), resultantes das atuações das comunidades humanas, ao longo dos tempos, de acordo com padrões de valores e tecnologias variáveis.
O geógrafo Cosgrove (1998) introduz novas variáveis na discussão da paisagem e da identidade associada, afirmando que a paisagem é sempre “uma forma de ver”, não existe sem interpretação, é simultaneamente o espaço e seu significado, a paisagem é sempre “cultural”. Como foco dos trabalhos ligados à “paisagem cultural” distinguem-se: (i) os elementos que marcam o seu caráter, às escalas da região e/ou superiores, quer através de uma análise técnica multidisciplinar, quer tendo em conta a avaliação inerente aos seus habitantes e utilizadores (Wascher, 2005); (ii) dimensões não tangíveis, como memórias, tradições, eventos e topónimos, pois remetem para acontecimentos históricos (Jorgensen et al., 2006). No contexto da “paisagem cultural”, a identidade alia-se ao sentido de pertença e ao sentido de comunidade ligados a um lugar e consubstanciado na metáfora genius loci (Tuan, 1980). Esta metáfora resulta de um processo de referenciação pessoal e coletiva, assente na cultura (Pollice, 2003). Por outro lado, uma identidade associada ao território comporta dois tipos de valores: os simbólicos, associados à tradição, à autenticidade e à singularidade (Bertrand, 2002, in Davodeau, 2005) e outros valores patrimoniais, os quais expressam qualidades objetivas e subjetivas atribuídas ao espaço vivido, num horizonte espacial e temporal definidos (Maurel, 2016). Enquanto valor patrimonial, quanto maior for o carácter diferenciador de uma paisagem (legibilidade/grau de distinção dos elementos, diversidade, unicidade/caráter único, integridade dos elementos físicos e humanos, antiguidade dos mesmos, entre outros), maior o potencial de diferenciação positiva da mesma (Declaração de Cork, União Europeia, 2016), o que é particularmente válido no caso dos territórios mais remotos ou periféricos (López & García, 2006).
Noutra linha de investigação, Lowenthal (1975) introduz nas ciências territoriais o conceito de spatial personal identity referindo que a conceção do espaço resulta da combinação da perceção, memória, conhecimento, lógica, crença e imaginação, as quais variam de pessoa para pessoa. Esta perspetiva teve inspiração em estudos ligados à função de orientação nas cidades (Lynch, 1960), conceito largamente operacionalizado através de aplicações a mapas mentais (Gould & White, 1986; Lynch, 1960; Soini, 2001), assim como associados à determinação de caraterísticas espaciais: legibilidade (grau de distinção dos elementos), complexidade, coerência (definição espacial), diversidade, mistério, unicidade (Kaplan & Kaplan, 1989). Nesse mesmo sentido, Collot (2011) cria a ideia de pensée-paysage, que define a relação estabelecida entre a experiência da paisagem e o espaço vivenciado, aquilo que Shama (1995) refere como a experiência/vivência, fazendo eclodir qualidades intangíveis (memórias, sons, entre outras).
Por seu lado, Ingold (2000) diferencia identidade espacial de identidade existencial: place identity (identidade do lugar) representa uma forma de união dos habitantes em torno de um lugar/região particular e distinto de outros (Haartsen et al., 2000; Jorgensen & Stedman, 2001; Kruit et al., in Stobbelaar & Pedroli, 2011; Proshansky et al., 1983), enquanto que existencial identity (identidade existencial) representa a forma como um lugar/região modela os seus habitantes (Boerwinkel, 1994; Gualtieri, 1983; Van Mansvelt & Pedroli, 2003). Trata-se de um quadro conceptual que a psicologia ambiental designou de place attachment, centrado no indivíduo (Bernardo & Palma-Oliveira, 2012), o qual procura relacionar a formação da sua identidade com base no espaço específico onde se inscreve, sendo que cada indivíduo ou coletividade assume múltiplas identidades, tendendo a optar por aquela que, em cada momento, lhe confere maior valor social ou satisfação (Bernardo & Palma-Oliveira, 2005). A modelação do indivíduo pelo contexto espacial envolvente e a perspetiva inversa, associada à forma como as comunidades modelam o espaço através das suas atividades, valores e crenças, conferindo-lhe um caráter e uma ambiência próprios, num processo interativo e iterativo, têm sido recentemente alvo de investigação (Loupa-Ramos et al., 2016; Stobbelaar & Pedroli, 2011) lançando um olhar alargado sobre as relações espaço-indivíduo.
Dentro deste quadro teórico diverso e complexo, procurou-se refletir sobre a identidade da região ribatejana, em particular na unidade de paisagem Charneca Ribatejana (Abreu et al., 2004), no concelho da Chamusca, tendo em vista critérios de abordagem da paisagem mencionados por Tissier (2003, in Legouy & Boulay, 2011): a dinâmica histórica, a importância da escala de observação, e as dimensões objetivas e subjetivas associadas aos territórios em análise. Complementarmente, foram realizadas entrevistas exploratórias a atores locais.
A investigação desenvolvida neste artigo integra-se nas atividades do Observatório de Paisagem da Charneca (OPC), criado em 2018, no concelho da Chamusca. O OPC segue o conceito de “Observatório da Paisagem” (OP) que surgiu na esteira das recomendações da Convenção Europeia da Paisagem (CEP). Este conceito pressupõe a constituição de redes, centros ou fóruns, tendo em vista a recolha, troca e dinamização de informação relativa à paisagem, promovendo o conhecimento e a participação das comunidades locais, podendo ser implantados a nível nacional, regional ou local. Existem diversos OP criados em países europeus com essas finalidades, constituindo experiências interessantes com modelos distintos de funcionamento e governança, quer numa ótica top-down de estrutura pericial de monitorização de paisagens específicas, quer de âmbito bottom-up de envolvimento das comunidades associadas a uma dada paisagem (Saraiva et al., 2017). O OPC segue esta última tipologia, constituindo uma associação, tendo como objetivos específicos o estudo e a sensibilização para a paisagem da charneca do Tejo, integrada na unidade Charneca Ribatejana (https://www.opc-paisagem.pt). Neste contexto, a presente investigação insere-se nessas linhas de orientação, visando contribuir para um melhor conhecimento, quer da paisagem da charneca, quer das representações da sua identidade.
II. Metodologia
Na persecução dos objectivos enunciados recorreu-se a uma abordagem metodológica multi-disciplinar e multi-escalar, o que implica também o recurso a multi-métodos. São mobilizados saberes científicos, designadamente das ciências sociais que incidiram em três níveis territoriais: (i) a região do Ribatejo; (ii) a “Charneca Ribatejana” e (iii) a Charneca no concelho da Chamusca. A investigação tem inspiração no método de análise da paisagem de Tissier (2003, in Legouy & Boulay, 2011) no âmbito de uma abordagem regional, que privilegia a escolha de diferentes escalas territoriais, a reconstrução da dinâmica histórica da região, bem como um enfoque eminentemente qualitativo na identificação de aspetos naturais, socioeconómicos e culturais associados a cada escala de análise.
Os critérios de seleção das fontes incidiram sobre documentação textual e cartográfica nos domínios da história, da geografia e da ecologia. Deu-se especial atenção à evolução da divisão administrativa do território ao longo do tempo, tendo em conta a sua contribuição para a construção de identidades regionais e locais. No plano cartográfico, pesquisaram-se mapas relativos à delimitação e caracterização do Ribatejo a diferentes escalas, integrando representações produzidas desde os finais do séc. XIX.
No sentido de captar perceções sobre a identidade da paisagem, recorreu-se à realização de inquéritos à população do concelho da Chamusca, maioritariamente integrado na charneca ribatejana. Conduziram-se entrevistas exploratórias a dez atores-chave locais, cobrindo vários sectores de atividade, público e privados, a fim de perceber as perceções quanto a atributos identitários (elementos naturais e humanos distintivos, modos de vida, sensações, emoções, entre outros) associados à charneca. Esta parte do estudo beneficiou de trabalhos realizados no âmbito de atividades desenvolvidas no Observatório de Paisagem da Charneca (Baelen et al., 2018).
III. Perspetivas geográficas, históricas e ecológicas na construção da identidade da paisagem
1. O Ribatejo à procura dos seus limites
Numa escala de análise mais abrangente, abordou-se a região do Ribatejo através da evolução administrativa que a foi marcando ao longo do tempo, assumindo que os limites administrativos são importantes para a emergência das identidades territoriais.
Consultaram-se trabalhos de referência (Mattoso et al., 1977; Moreira, 2013; Santos, 1985; Sousa, 2014) que permitem reconstituir os limites administrativos do Ribatejo desde o Antigo Regime até à atualidade.
“Riba Tejo” era a expressão de “que a Ordem de Santigo se serviu desde o século XIII para designar primeiramente pequenos lugarejos da margem esquerda do Tejo, “entre as ribeiras de Coina e Enguias” os quais tinham por sede paroquial Sabona [atualmente Santarém] e que formavam, no final daquele século, um grémio municipal” (Azevedo, in Mattoso et al., 1977, p. 15). Uma carta régia do tempo de D. João I (1387) falava de “Benavente, Salvaterra de Magos e Coruche, e outros lugares dessa comarca “da par do Tejo” ou Borda d’Água (Mattoso et al., 1977).
No século XV, durante o reinado de D. João II, realizaram-se grandes remodelações às escalas regional e sub-regional, que confirmaram a divisão do país em seis grandes comarcas: “Ante Douro e Minho e Tralos Montes”, a norte do rio Douro; “Estremadura e Beira”, entre os rios Douro e Tejo; “Antre Tejo e Odiana e Algarve”, a sul do rio Tejo: “Em 1421, como em 1527, a comarca estremenha espraiava-se para além do Tejo médio e inferior, à custa da área de influência administrativa de Vila Franca, Abrantes e sobretudo Santarém. Compreendiam-se no termo escalabitano os territórios dos futuros municípios de Alpiarça, Chamusca, Ulme, Lamarosa, Montargil e Almeirim” (Santos, 1985, p. 38).
A partir do séc. XVI, as comarcas passaram a ser designadas por províncias, integrando-se este território na província da Estremadura. Desde finais do século XVI até ao século XX, os contornos provinciais demonstraram certa variabilidade, nomeadamente nas zonas de contacto entre a Estremadura e o Alentejo: “A circunscrição estremenha dilatou grandemente a transposição do Tejo, por territórios tradicionalmente alentejanos, ao compreender mais os concelhos da margem sul do estuário até Grândola (inclusive), e os de Samora Correia, Benavente, Salvaterra, Muge, Almeirim, Coruche, Erra, e Ponte de Sor” (Santos, 1985, p. 40). Em 1599, a província da Estremadura apresentava-se constituída por seis comarcas: Setúbal, Lisboa, Alenquer, Leiria, Santarém e Tomar. Na segunda metade do setecentos formaram-se as comarcas de Alcobaça e do Ribatejo, esta última com sede em Castanheira do Ribatejo (Santos, 1985).
A Revolução Liberal constituiu um marco referencial na estrutura administrativa do país. As províncias permanecem como unidade tradicional e surgem estruturas autárquicas supramunicipais, providas de órgãos autónomos e jurisdição circunscrita à população desse espaço geográfico, embrião dos atuais distritos. Em 1832, sob a égide de Mouzinho da Silveira, é instituída uma organização administrativa assente em províncias, comarcas e concelhos. A Estremadura foi dividida, em 1835, em três grandes distritos: alta Estremadura, Lisboa e Estremadura transtagana. Desde meados do século XIX até à implementação da República verificou-se uma grande instabilidade nas delimitações administrativas, tendo-se implementado vários códigos administrativos, mantendo, no entanto, a divisão em vigor, desde 1835, em províncias, distritos, municípios e paróquias. A figura 1a apresenta a divisão das províncias no início do séc. XX (1901)i.
Na reforma do Estado Novo, através do Código Administrativo de 1936, é criada uma nova estrutura constituída por províncias, distritos, concelhos e freguesias, baseada na delimitação de regiões naturais proposta por Amorim Girão, em 1930 (fig. 1b). Foram instituídas 11 províncias, uma das quais a do Ribatejo, anexando 22 concelhos da província da Estremadura (fig. 1c). Com efeito, desde as primeiras décadas do século XX, a emergência de anseios regionalistas apontava para a individualização do território ribatejano, com sede no distrito de Santarém (Moreira, 2013). O Estado Novo enquadrou e estimulou a expressão desses regionalismos, através da criação da província do Ribatejo.
A delimitação do território ribatejano levantou então várias controvérsias, dada a sua diversidade, levando Silva Teles (1924), na descrição geográfica do Ribatejo incluída no Guia de Portugal organizado por Raul Proença, a referir ser o Ribatejo mais uma designação histórica do que geográfica. De facto, a região ribatejana é dominada por fortes contrastes, resultantes de condicionalismos históricos, geográficos e económicos. É possivelmente aquela região em que a transição entre o país Atlântico e o país Mediterrâneo mais se faz sentir, “seguramente a província mais polimórfica de Portugal” (Ribeiro, 1936, p. 67). No caso do Ribatejo, Orlando Ribeiro destaca o rio Tejo como elemento essencial da caracterização da região e, entre outros aspetos, distingue a matriz geológica e a vegetação natural como principais fatores diferenciadores da paisagem. A sua descrição, em 1936, demonstra bem o carácter diversificado desta paisagem:
em parte alguma como no Ribatejo o aspeto de transição é nítido: tem dilutadas planícies, montados de sobreiros, searas de trigo, povoações aglomeradas e casais isolados por extensos espaços sem habitações, charnecas percorridas por rebanhos de gado miúdo, largas terras em pousio ou sem cultura, como no Sul, com cujas planuras confina; tem pinhais, terras de milho de que se faz a broa, alimento do camponês, terras retalhadas e bem aproveitadas por uma população que se dispersa em numerosas povoações e casais disseminados, como no Norte, a cujas montanhas se encosta. Além disto, tem olivais e vinhedos, criações de gado bovino e cavalar, extensos arrozais, árvores de fruto e o rio, o seu grande flagelo e a sua maior fonte de riqueza. Daqui o duplo aspeto do Ribatejo: região de feição mixta que possui, ao mesmo tempo, bem marcada individualidade. (Ribeiro, 1936, p. 74)
Por seu lado, Correia da Cunha (1970), de acordo com o caráter geomorfológico, individualiza no Ribatejo três sub-regiões: a “lezíria/campo” ou as “terras da Borda d’Água”, o Ribatejo norte, o “bairro” e o Ribatejo sul, a “charneca”, cujas principais características se apresentam seguidamente: a “lezíria/campo” ou “terras da Borda d’Água” corresponde à planície aluvionar do Tejo e do curso inferior dos seus afluentes, marcada por cheias periódicas. Corresponde a materiais aluvionares transportados pelas águas fluviais, de grande riqueza e fertilidade. De morfologia plana, nela se desenvolvem pastagens e criação de gado, predominando atualmente as culturas intensivas de regadio; o “bairro” é constituído pelas formações terciárias da margem direita do Tejo, de topografia ondulada, com aptidão para culturas permanentes (ex. olival, vinha, pomar); a “charneca” corresponde às formações miocénicas e pliocénicas, de solos arenosos ou areno-argilosos, pobres em matéria orgânica, com ocupação de montado e matos em regime silvo-pastoril, e a presença de pinhais e eucaliptais. Constitui uma extensa área pouco povoada e explorada, cortada pelos vales de afluentes dos rios Tejo e Sorraia.
Na sequência da criação da província do Ribatejo, em 1936, diversas iniciativas foram sendo promovidas no sentido de afirmar e distinguir a identidade ribatejana, através da criação da Junta da Província do Ribatejo, da publicação periódica de boletins, e da realização de conferências e exposições agrícolas e etnográficas, entre outras. O papel do etnólogo Celestino Graça (1914-1975) é incontornável neste processo, na promoção do folclore ribatejano, na organização das Feiras do Ribatejo e na dinamização da tauromaquia, elementos-chave na construção da identidade ribatejana (Moreira, 2013). A imagem forte desta identidade assenta sobretudo na Lezíria, suas comunidades e atividades. É nesse quadro que emerge a representação do campino como homem valente do Ribatejo, com seus trajes coloridos, que reproduzem as cores da bandeira nacional, a sua faina com o gado bravo na lezíria e dançando o fandango, dança eminentemente masculina, sobrepondo-se a outros grupos e comunidades do território, menos visíveis e emblemáticos, “onde chegam os campinos, treme a terra, bate o chão” (Câncio, in Moreira, 2013, p. 18). A fertilidade e riqueza da Lezíria é exacerbada, potenciada pelo ciclo de cheias e sedimentação de nateiros, propícia à criação de toiros e cavalos e à produção agrícola, remetendo a um plano secundário outras zonas mais periféricas ou menos produtivas.
À expressão regionalista então fomentada com a recriação das Províncias juntou-se o reforço de imagens etnográficas e folcloristas associadas aos trajes típicos regionais, patentes na Carta de Imagens Regionais, em que o Ribatejo surge representado pelo campino com o seu pampilho, guardando toiros na lezíria (fig. 2).
Com a Constituição da República Portuguesa de 1976 foram extintas as Províncias, mantendo-se o Distrito de Santarém, que atualmente integra 21 concelhos. Com a integração europeia, o Distrito de Santarém, no que toca às NUTS II ficou, inicialmente, integrado na maior parte na região de Lisboa e Vale do Tejo, à exceção dos concelhos de Mação e Tomar, integrados na região Centro. Atualmente, o distrito de Santarém encontra-se repartido nas NUTS II do Alentejo (NUTS III da Lezíria do Tejo) e do Centro (NUTS III do Médio Tejo; fig. 3), sendo que os limites destas duas últimas unidades não são correspondentes aos limites do distrito.
2. A Charneca do Ribatejo, uma área de transição
A segunda escala de análise considerada neste estudo é a da Charneca Ribatejana, 86ª unidade de paisagem identificada em Abreu et al. (2004), ocupando uma área de cerca de 5070km2 (fig. 4). É descrita como uma paisagem tranquila, por vezes monótona, com relevo ondulado muito suave, cortado pelos vales das ribeiras afluentes do Tejo e do Sorraia, coberto predominantemente pelo montado de sobro, com baixa densidade populacional e povoamento concentrado. Esta unidade de paisagem caracteriza-se, em termos geológicos e pedológicos, por formações sedimentares detríticas do Pliocénico e Miocénico, de relevos ondulados cortados por vales de rios e ribeiras afluentes dos rios Tejo e Sorraia.
A charneca, de acordo com o Dicionário Verbo, é, em sentido lato, uma extensão de solo inculto e árido, coberto por vegetação arbustiva rasteira. Corresponde a formações florestais mediterrânicas com representação arbórea e arbustiva, ocorrendo em extensas áreas no Ribatejo e Alentejo, em solos pobres e ácidos, devido a ocorrências periódicas e frequentes do fogo, pastoreio excessivo, erosão e desbravamento para culturas cerealíferas (Fabião, 1998, p. 908). A estes solos associam-se comunidades vegetais dominadas por sobreirais (Neto et al., 2007). Tem sido explorada através da instalação e condução de montados de sobro, pinhais e eucaliptais, em sistemas extensivos de agro-silvo-pastorícia (porco de montanheira, ovinos, caprinos e bovinos) e também através da caça e produção de mel. Brum Ferreira (2001, p. 181) refere-a também como “brenha mediterrânica”.
Do ponto de vista histórico, desde os tempos mais remotos que são referidas as vastas extensões a sul do Tejo como matagais imensos, despovoados, de terrenos maninhos e ermos. Já em finais do século XVI, Luís Mendes de Vasconcelos refere
a imensa charneca, deserta, insalubre, da margem sul do Tejo, representando duas vantagens fundamentais que a recomendavam para a função defensiva: fornecia lenha e madeiras e protegia contra invasões (…) a charneca, incapaz de muitas nem grandes povoações, por ser a maior parte dela estéril para sementeiras, mas de lenha fecundíssima para o provimento da cidade, além de ser apta a produzir madeiras variadas.” (Mattoso et al., 1977, p. 23)
na qual a população é tradicionalmente “rarefeita e com grandes espaços despovoados” (Ribeiro, 1936). De acordo com Silbert (1978), a charneca, de terrenos pobres, constituía um mundo à parte, isolado e selvagem, pelo que não era de espantar que fosse tão pouco referida.
Estas áreas de charneca, eram, em geral, propriedade da Coroa no Antigo Regime, integrando a Coutada Real, organizada em montarias. Devy-Vareta (1985, p. 60) refere a montaria do Ribatejo integrada na Coutada Velha do Rei, nos séculos XVI-XV, à base de charnecas e/ou matos. Fragoso de Siqueira (1790, in Silbert, 1978) destaca a diferença entre montado, sistema mais ordenado, e charneca, mais arborizada e menos intervencionada, chamando a atenção para o carácter da charneca como semi-montado muito extensivo, não estando abandonado, mas pastoreado por rebanhos pela bolota. À época, são aconselhadas práticas de “alimpação de mattos” e condução da vegetação no sentido da evolução para um povoamento mais produtivo, com características a que chamamos hoje de silvo-pastoris (Silbert, 1978).
As charnecas são descritas pelo Superintendente de Agricultura, em 1814, como “grandes e enfadonhos espaços de ermos e maninhos de matto rasteiro e brenhas silvestres” (Silbert, 1978, p. 107), que se estendem do Chouto e Montargil até Vendas Novas. Estavam cobertas por uma vegetação arbustiva e de matagais referida como “viveiros de chaparrais” e de oliveiras, constituindo recursos que potencialmente poderiam vir a ser ordenados.
No Liberalismo, com a desamortização dos direitos de propriedade, as terras da charneca passaram para a posse de proprietários privados e, na segunda metade do século XIX, iniciaram-se as grandes arroteias que deram origem à paisagem agro-silvo-pastoril da maior parte dos montados na atualidade. De acordo com Belo et al. (2014), a formação do montado nas regiões do Sul ocorre com a conjugação, no espaço e no tempo, de um conjunto de condições: (i) instituição da propriedade privada; (ii) propriedade de grande dimensão; (iii) disponibilidade de mão-de-obra abundante e barata; (iv) procura crescente nos mercados nacional e/ou internacional dos produtos do montado, como a cortiça e o porco de montanheira.
Estas condições conjugam-se para o desencadeamento das arroteias na charneca ribatejana, para abertura e condução do montado e cultivo do trigo. Estas arroteias intensificam-se nas primeiras décadas do século XX, nomeadamente no âmbito da Campanha do Trigo (1929-1938). Dado o despovoamento destas áreas, a mão de obra desloca-se de outras regiões (Beiras, Algarve) em busca de trabalho, de foros ou arrendamentos em regime temporário, fixando-se nos “casais” que se inscrevem na paisagem rarefeita da charneca.
Um entusiasmo sem limites sacudiu a rotina da vida rural. Rompeu-se terra, deixaram-se desenvolver os pés de azinheira e de sobreiro que viviam afogados no mato e confundidos com ele, substituindo-se seara e montado à charneca que até aí só dava pasto, lenha e carvão. O movimento foi especialmente intenso no ocidente e no sul do Alentejo e dele participaram não apenas as populações locais, mas Alentejanos de outros lugares, Algarvios e, aqui ou ali, mas provavelmente em menor escala do que geralmente se tem dito, populações do Norte. (Ribeiro, 1995, p. 236)
Até meados do século XX, o sistema de produção nas explorações da charneca baseou-se na consolidação do montado de sobro e num aproveitamento agro-pastoril extensivo, com recurso predominante à tração animal, assente em rotações de cereais e pousios de duração variável. Os restolhos eram pastoreados por ruminantes, nos vales com disponibilidade hídrica semeava-se arroz e outras culturas. Os assentos rurais - casais - eram habitados pelos trabalhadores e integravam edificações rurais para os diversos fins agrícolas, constituindo núcleos isolados e autossuficientes. Os modelos de exploração variam naturalmente com a localização geográfica e condições locais específicas, existindo alguns estudos e monografias que descrevem as condições produtivas e económicas deste tipo de exploração (Coelho, 1996; Dias, 2007).
Freire (2013, p. 256) reflete sobre as diferenças entre campo e charneca, zonas contíguas, mas distintas em termos sociais, identitários e de uso do solo:
Em meados do século XX, a distinção entre campo e charneca não tinha apenas uma acepção agrícola e ecológica, tinha também implicações identitárias, socioeconómicas e ideológicas. Entendo que os distintos significados locais assumidos pelo campo e pela charneca estão intimamente vinculados não só aos ritmos de povoamento, como ainda ao prestígio e aos rendimentos proporcionados pela terra.
A charneca ribatejana estende-se para sul na margem esquerda do Tejo, com limites imprecisos a poente, na transição para o Alentejo, pelo que a sua delimitação tem sofrido flutuações, segundo diversos autores, tendo em conta a homogeneidade do seu território, sem fronteiras bem definidas.
Na Carta Orográfica e Regional de Portugal de Barros Gomes (1875; fig. 5), a charneca corresponde às ‘Baixas do Sorraia’, de relevo subplano e altitude que não excede os 200m. De natureza geológica essencialmente cenozóica, os seus solos constituem arenitos e areias mais ou menos podzolizados e a vegetação é dominada pelo sobro, pinheiro manso e bravo e azinho (Portas, 1967).
Na Carta Ecológica Fito-edafo-climática de Portugal (Confederação Nacional da Agricultura [CNA] & Pina Manique e Albuquerque, 1984) a charneca insere-se na zona basal submediterrânea (fig. 6). Em documento anterior, Pina Manique e Albuquerque (1965) distingue a Charneca Miocénica do Ribatejo, a norte do vale do rio Sorraia e a Charneca Pliocénica do Ribatejo, a sul desse vale.
Nas últimas décadas têm-se verificado alterações na ocupação dos solos, com extensas plantações de eucalipto, declínio dos arrozais e culturas cerealíferas e introdução crescente de novos sistemas de regadio (pivots). A análise na atualidade, recorrendo à Carta de Ocupação do Solo (COS 2015) para a área dessa unidade de paisagem, revela o predomínio do montado (49,9٪), seguido de áreas agrícolas (18,7٪), do eucalipto (17,2٪) e, com menor expressão, a floresta de resinosas, sobretudo pinheiro (7,4٪), sendo os restantes usos residuais (fig. 7).
Outras leituras da charneca, como a do geógrafo Jorge Gaspar (1993, p. 123), trazem a visão de um território despovoado e distante, embora próximo da capital:
Este “sertão” solitário, é ainda o principal deserto humano do País, o que se deve à conjugação de vários factores, desde a pobreza dos solos areníticos e cascalhentos da Bacia Sedimentar do Tejo, (...) à fraca acessibilidade que perdurou até aos nossos dias (...) e a grande propriedade que serviu também para manter uma grande reserva de energia, transformável em carvão, que a navegação fluvial transportava para Lisboa.
Nesta charneca, que se prolonga para os concelhos de Ponte de Sôr, Coruche, Almeirim e Salvaterra de Magos, muitas povoações ou dispersão de foros “não vêm no mapa, descobrem-se nas expedições a este Portugal profundo e perdido, e tão próximo de Lisboa (...)” (Gaspar, 1993, p. 123).
A mesma ideia de extensão, isolamento e pobreza dos solos é referida por Mattoso et al. (1977, p. 30):
A antiga Charneca da margem sul do Tejo, a que Barros Gomes chamou as Baixas do Sorraia, e que vai desde a península de Setúbal até além de Ponte de Sor, e desde o rebordo do campo ribatejano até perto de Avis e de Vendas Novas. Esta região cobriu-se recentemente de sobreiros e de eucaliptos, mas continua deserta, com a excepção dos estreitos vales regados do sistema do Sorraia. Aqui não foi o relevo que dificultou a implantação humana, mas a excepcional aridez de um solo constituído por areias muito permeáveis e quimicamente pobres.
Ribeiro Telles (2016, pp. 52-53) analisa assim o enquadramento sócio ecológico da charneca:
A “Charneca” ocupava primitivamente vastas áreas vindo a ficar reduzida apenas àquelas áreas de solos delgados, arenosos e declives onde, sem grave risco de erosão e degradação dos solos, não é possível outro aproveitamento. Na charneca pastava o gado miúdo e, de sete em sete anos, desbravava-se o matagal a fim de realizar uma seara sem alqueive prévio. Nalgumas zonas através de queimadas ligeiras conseguiam-se no Outono parcas pastagens destinadas aos bois de trabalho e às éguas de gradar.
A caça, o mel, a cortiça (para colmeias e forros de casa), a lenha e a esteva, o entrecasco de sobro que se exportava para Espanha, eram os produtos que se obtinham, e ainda se obtêm, da charneca dos vales do Tejo, Sado e Sorraia.
Os utentes da charneca criaram uma maneira de ser especial e uma cultura própria. O monteiro, o seareiro das “herdades de mato”, o caçador e o pastor mantinham, ao lado dum sistema de recoleção, uma exploração itinerante agrícola e dos produtos da floresta. Apenas nos vales secundários se sedentarizava a cultura agrícola.
3. A charneca no concelho da Chamusca
A terceira escala de análise visa o município da Chamusca (superfície com 746km²), que se integra no distrito de Santarém e na NUTS III, Lezíria do Tejo, da região Alentejo. O concelho comporta cinco freguesias, desde a reforma administrativa de 2013: Chamusca e Pinheiro Grande, Carregueira, Ulme, Vale de Cavalos e União de Freguesias de Parreira e Chouto, na última das quais se situa o Observatório da Paisagem da Charneca, localizado num dos casais tradicionais dessa freguesia (fig. 8).
Relativamente às unidades de paisagem propostas por Abreu et al. (2004), o concelho da Chamusca distribui-se pelo campo ou lezíria (7% do território concelhio), Médio Tejo (1%) e, maioritariamente, pela charneca (92%). A linha divisória entre as duas unidades mais representativas (campo e charneca) corresponde sensivelmente ao traçado da Estrada Nacional 118, que separa os férteis solos de utilização agrícola intensiva, das “ademas” ou encostas que limitam, para sul e sueste, as extensas áreas florestais e agro-silvo-pastoris da charneca.
A charneca ribatejana, na região da Chamusca, foi, desde o início da nacionalidade, propriedade da Coroa. Devy-Vareta (1985) refere a existência das seguintes matas do Rei, nos séculos XIV-XV, no território do concelho: Chamusca, Foz do Chouto, Ribeira de Muge, Ribeira de Ulme e Vila de Rei. D. Afonso V terá usado essas terras para caçadas e montarias para seu “desenfado” (Lázaro, 2009), com especial privilégio sobre o reguengo do Chouto, tendo D. João VI feito mercê deste reguengo aos Condes de Castanheira, em 1536 (Lázaro, 2009). Após a morte da última geração desta família, D. Pedro II integrou, em 1705, estes bens na Casa do Infantado, na qual permaneceram até à sua extinção, desamortização dos bens nacionais e posterior venda em hasta pública, na primeira metade do séc. XIX, dando origem à grande propriedade que caracteriza a estrutura fundiária da zona, com exceção da envolvente dos aglomerados, onde predominam as courelas e a pequena e média propriedade.
Os terrenos apresentam uma morfologia ondulada, dominando a ocupação florestal (sobreiro, pinhal e eucalipto; fig. 9), cortada pelos vales das ribeiras de Ulme, Chouto e Muge, onde se localizam os terrenos mais férteis, tradicionalmente ocupados por arrozais. Produtos locais como a cortiça, lenhas e carvão eram escoados através dos portos fluviais na Chamusca, com destino a Lisboa e, no retorno, desembarcados alimentos e mercadorias. Este comércio contribuiu para o intenso tráfego fluvial do Tejo, ao longo dos séculos, que teve grande preponderância até às primeiras décadas do séc. XX (Gaspar, 1970; Neto, 1940).
O povoamento de baixa densidade, ocorre em pequenos aglomerados (Chouto, Parreira, Semideiro, Ulme, Gaviãozinho), associados às vias de comunicação e em “casais” agrícolas ou assentos de lavoura, isolados e dispersos, muitos deles abandonados ou em ruína. Segundo Coelho (2012, p. 150), historiador com diversos trabalhos sobre o concelho,
este é um território polvilhado de casais. Sendo pouca a gente e muita a distância, os casais tenderam a concentrar em si a vida e tudo ou quase tudo o que era necessário para que ela pudesse existir. (...) desde o século XIX, o casal se assumiu como um organismo autossuficiente, antes da motorização encurtar as distâncias e os meios de comunicação tornarem tudo mais igual.
A partir das últimas décadas do século XX, o abandono rural contribuiu para reduzir ainda mais a densidade populacional nas zonas da charneca. Essa perda demográfica tem-se acentuado no início do séc. XXI, em particular nas áreas mais afastadas do rio Tejo, de que é exemplo a União de Freguesias Parreira e Chouto, com uma densidade populacional de 4,4hab./km2, face à do concelho, que é de 13,6hab./km2 (Instituto Nacional de Estatística [INE], 2011).
Comparativamente à NUTS III Lezíria do Tejo e ao país, os valores da densidade populacional são muito baixos (quadro I), contribuindo esse fator para a integração do concelho da Chamusca nos territórios de baixa densidade, juntamente com o concelho de Coruche, na NUTS III Lezíria do Tejo (Comissão Interministerial de Coordenação 2020). De acordo com o Programa Nacional de Coesão Territorial (PNCT), ambos os concelhos estão também integrados nos territórios do interior (Portaria nº 208/201, República Portuguesa, 2017), condições para que contribui a elevada percentagem da área de charneca no seu território.
Nas últimas décadas alteraram-se substancialmente os usos do solo e os sistemas produtivos, com a redução das áreas agrícolas e a plantação de eucalipto, que ganhou grande expressão a partir da década de 80, substituindo outras ocupações, nomeadamente o pinhal. Atendendo à Carta de Ocupação do Solo (COS 2015) para o concelho da Chamusca (fig. 10) verifica-se que, à semelhança do que ocorre na unidade Charneca Ribatejana, predomina o montado de sobro (43,7%), seguido do eucalipto com 30%, em menor extensão as resinosas, sobretudo pinhal, com somente 6% da área total e 14,7% de áreas agrícolas.
IV. Identidade da paisagem da charneca na atualidade. Estudo exploratório
No âmbito das atividades do OPC, realizou-se um workshop, na primavera de 2018, em que se conduziram entrevistas a atores-chave locais, tendo por objetivo a identificação dos conteúdos identitários do concelho da Chamusca, com ênfase na área da charneca.
Partindo da imagem identitária oficial do concelho, baseada no Tejo, Toiro, Fado e Religião (fig. 11a) e que se sintetiza no slogan “Chamusca - O coração do Ribatejo” (fig. 11b), procurou-se indagar “Qual a identidade da Chamusca?”. Tendo em conta que a Charneca representa 90% da área do concelho, foi desenvolvido um inquérito sobre a sua contribuição para a distintividade do concelho Chamusca, ou na acepção de Stobbelaar & Pedroli (2011), qual a “unicidade percecionada”.
Foram realizadas dez entrevistas exploratórias, tendo sido inquiridos três funcionários da administração local, três gestores de empresas agrícolas e florestais, dois empresários na área da restauração e turismo e dois residentes no concelho (Baelen et al., 2018). Da análise das respostas obtidas, destaca-se a menção aos “touros” e touradas e também à criação de gado bravo. Quase que como complementar à centralidade do “touro”, associam-se as caraterísticas do espaço onde se insere - o montado, e assim também a “produção de cortiça” e o “silêncio”.
Confrontando as respostas das entrevistas com a imagem oficial, constata-se em comum a referência aos “touros” com maior ênfase nas ganadarias. É notória a ausência de referência às touradas na imagem oficial, e também a ausência de referência à floresta de produção, nomeadamente o eucaliptal que ocupa cerca de 30% do território. Tendo em conta que na construção da identidade os indivíduos procuram associar-se a conteúdos que lhe confiram um maior satisfação e estatuto social, eventualmente a mais recente contestação social às touradas e aos eucaliptos, sobretudo depois dos eventos de 2017, pode explicar tal ausência.
No entanto, nas entrevistas são referidos como fatores identitários do concelho (com ênfase especial na charneca) a ausência da atividade turística e o despovoamento. Dos resultados obtidos, uma resposta frequente que nos merece reflexão é que, em paralelo surgem referências, por um lado, a um valor especial (hidden treasure), e por outro, que “Não há nada aqui que não haja nos concelhos vizinhos” - ou seja, a uma perceção de falta de distintividade e unicidade, mas com potencial de descoberta. De facto, o ‘slogan’ municipal enfatizando o “coração” apela à centralidade geográfica do concelho na região e ao facto de ter tudo o que está associado à identidade do Ribatejo, mas sem evocar conteúdos identitários específicos do concelho.
V. Conclusões
Esta investigação foi desenvolvida no âmbito do Observatório da Paisagem da Charneca (OPC), que se constituiu como centro de partilha de conhecimentos, local de pesquisa e de descoberta da região, visando a divulgação das potencialidades desta paisagem, bem como da sua singularidade e identidade.
Nas pesquisas efetuadas, constatou-se que a “região do Ribatejo” está bem retratada na documentação bibliográfica e cartográfica disponível, sendo mais restrita no caso da “charneca ribatejana”,
A metodologia utilizada permitiu concluir que o Ribatejo é um território com fronteiras móveis ao longo da história, no passado associadas às flutuações do poder político e administrativo e, mais recentemente, às ligadas ao quadro de financiamento e regras de elegibilidade dos fundos europeus. Da complexa estrutura administrativa, histórica e vigente, o Ribatejo parece estar “perdido” na sua delimitação territorial. Apesar desta variabilidade de limites e dos fortes contrastes territoriais e de paisagem, constata-se que existe uma forte identidade regional cunhada pela imagem oficial centrada na lezíria, a planície fértil e verde, os touros, o campino com os seus trajes coloridos e postura garbosa e as touradas. Outras paisagens são menorizadas, nomeadamente a charneca.
Para a charneca constata-se um certo ‘vazio identitário’, existindo uma menor disponibilidade de informação, relativamente a outras áreas ribatejanas. A ‘charneca ribatejana’ emerge como uma paisagem de despovoamento, resultante da baixa produtividade dos seus solos e fracas acessibilidades. É consensual, quer pelos decisores, quer pela população local, que o rio Tejo é a “chave” de entrada para a ‘charneca ribatejana’. Os principais valores económicos são o montado, a cortiça, a criação de gado bravo, a exploração florestal e as culturas de regadio; estas, embora menos representadas, estão em expansão e diversificação. A imagem da charneca tem sido associada a uma “ilha” misteriosa, silenciosa e desconhecida, um “território invisível”, numa região apenas a uma centena de quilómetros da capital.
A sua vastidão agroflorestal assegura um conjunto significativo de serviços de ecossistema, ameaçada, no entanto, pela expansão do eucalipto, descaracterização da paisagem e pressão sobre aquíferos e cursos de água, às quais acresce o despovoamento e o envelhecimento da população. Estas vulnerabilidades afetam as atividades económicas, a conservação de vilas, casais e caminhos, bem como o risco de incêndios rurais e a capacidade de exploração das potencialidades turísticas. Os imensos espaços verdes que contribuem para a sensação de paz, de silêncio, de mistério, a experimentação de produtos locais, são oportunidades para a visitação e o desenvolvimento de turismo de natureza. A identificação dos valores identitários e económicos da charneca são fundamentais na promoção de estratégias de marketing territorial e de dinamização de roteiros diferenciados, com capacidade de atração de visitantes, o que terá repercussões no desenvolvimento local e regional. O OPC pretende apoiar a dinamização desses novos desafios, divulgando o conhecimento adquirido e criando redes e parcerias com atores locais.
Contributo dos/as autores/as
Maria da Graça Saraiva: Conceptualização; Metodologia; Análise formal; Investigação; Recursos; Escrita - preparação do esboço original; Redação - revisão e edição; Visualização; Supervisão; Administração do projeto. Ana Lavrador-Silva: Conceptualização; Metodologia; Análise formal; Investigação; Recursos; Escrita - preparação do esboço original; Redação - revisão e edição; Supervisão; Administração do projeto. Isabel Loupa Ramos: Conceptualização; Metodologia; Análise formal; Investigação; Recursos; Escrita - preparação do esboço original; Visualização; Administração do projeto.