I. Introdução
Na noite de 25 para 26 de novembro de 1967, chuvas intensas abateram-se sobre a área da Grande Lisboa, com as inundações a causarem um elevado número de mortos, milhares de desalojados e inúmeras habitações destruídas. Trata-se do caso mais dramático deste tipo de inundações conhecido em Portugal. Fernando Rebelo define-a como uma das três grandes catástrofes verificadas em Portugal nos últimos séculos, juntamente com o terremoto de 1755 em Lisboa e da aluvião de 1803 no Funchal (Rebelo, 2010).
A forma como o fenómeno foi tratado à época reflete as condições políticas de ditadura em que o país se encontrava. Apesar da participação ativa dos estudantes da área da saúde nos trabalhos para desenterrar cadáveres de pessoas e animais, fazer limpezas, distribuir bens e, a partir de certa altura, colaborar nas campanhas de vacinação, estas iniciativas foram pouco divulgadas e publicitadas. Com este trabalho procuramos analisar os impactos socioambientais das inundações e contextualizar o papel dos estudantes, em particular os da área da saúde, no quadro do voluntariado e das ações de auxílio prestadas para a redução dos riscos nos dias que se seguiram às inundações.
II. Materiais e métodos
Para este trabalho recorremos a um conjunto diversificado e numeroso de fontes documentais, quer primárias, quer secundárias. A investigação baseou-se sobretudo na consulta e análise de jornais nacionais e internacionais a partir de arquivos físicos e virtuais, artigos científicos nas bases PubMed, Scopus, Web of Science e Disasters e partindo de palavras-chave predefinidas, revistas, relatórios e correspondência, bem como fotografias, vídeos da época e reportagens televisivas. As fontes históricas nacionais e internacionais, em diferentes formatos, permitiram a visualização de registos fotográficos, áudio e vídeo, facilitando a análise de entrevistas e testemunhos. Para esta tarefa foram fundamentais os trabalhos e reportagens emitidos pelos 50 anos sobre as inundações de 1967. A consulta baseou-se nas seguintes fontes principais: a) arquivos: RTP (online) e do Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra (consulta presencial), arquivo Casa Comum da Fundação Mário Soares (online), com consulta de centenas de jornais e fotografias; b) televisões: programas emitidos nos canais generalistas RTP1 e SIC, reportagens da Expresso TV e SIC Notícias; c) imprensa escrita: jornal Diário de Notícias e revista Sábado; d) áudio: Rádio Renascença. Realçamos também o Projeto “DISASTER - GIS database on hydro-geomorphological disasters in Portugal: a tool for environmental management and emergency planning” com uma vasta bibliografia que inclui o tema das inundações de 1967. As restantes fontes estão mencionadas ao longo do artigo.
III. Resultados e discussão
Do ponto de vista meteorológico, as inundações de Lisboa estão associadas às elevadas quedas pluviométricas que se fizeram sentir na noite do 25 de novembro de 1967: 1/5 do total anual, sendo que foram registados valores de 88,6mm na estação de Lisboa/Geofísico e 112,5mm na estação de Lisboa/Tapada (Amaral, 1968; Oliveira & Ramos, 2002; Rebelo, 2008).
A precipitação intensa levou a uma rápida subida nas linhas de água, afetando bairros e barracas das áreas periféricas de Lisboa e vale do Tejo, onde viviam populações mais vulneráveis.
Apesar de se terem verificado várias ocorrências de inundações e alagamentos (Costa et al., 2016) em quase toda a Península de Lisboa, foi nas pequenas bacias em torno da capital que se observaram a maior perda de vidas e prejuízos materiais, refletindo a maior suscetibilidade das condições socioambientais das populações afetadas. A falta de um Serviço Nacional de Proteção Civil e, portanto, de capacidade de resposta na emergência e socorro por parte das autoridades públicas foi um fator importante para a mobilização dos estudantes.
1. Impactes ambientais e saúde pública
Como consequência da intensidade das chuvas e dos vários desmoronamentos ocorridos, formaram-se enxurradas que provocaram danos significativos no sistema abastecedor das áreas mais afetadas. Várias condutas foram destruídas, interrompendo o fornecimento de água em várias localidades. No Diário de Lisboa de 25 de novembro de 1968, um ano após a catástrofe, é feito um balanço que aponta quatrocentos quilómetros de estrada afetadas e mais mil casas destruídas e outras tantas danificadas (Diário de Lisboa, 1968). A 26 de novembro, a Companhia das Águas de Lisboa informa, em comunicado, que “o Aqueduto das Águas Livres foi invadido por considerável quantidade de água que não houve possibilidade de evitar que chegasse ao depósito de Campo de Ourique” e por este motivo a turbidez da água aumentou (Diário de Lisboa, 1967b). Dada a impossibilidade de dar uma resposta urgente para o respetivo tratamento, foi confirmada a possibilidade de contaminação dos depósitos e outras fontes abastecedoras de água. Como consequência da rotura de esgotos, surgem as primeiras notícias da probabilidade de ocorrência de epidemia associada à ingestão de micróbios da febre tifoide e paratifoide (Diário de Lisboa, 1967b).
Neste contexto, os serviços municipalizados de água e saneamento foram forçados a recorrer ao corte geral do abastecimento, por razões sanitárias (Diário de Lisboa, 1967a). Como o sistema abastecedor seriamente danificado, a falta de água nos primeiros dias após a catástrofe foi sentida de forma intensa, levando a vários avisos para a sua utilização de forma racional (Diário de Lisboa, 1967f). As atividades económicas foram também fortemente condicionadas na sua produção (Diário de Lisboa, 1967b).
Com o ciclo urbano da água profundamente alterado nas áreas afetadas, a resposta das autoridades foi lenta e desorganizada. A população viu-se forçada a abastecer-se em fontes e bicas (Diário de Lisboa, 1967b). Coube aos bombeiros e forças armadas colaborar com os seus autotanques no abastecimento de água à população (Diário de Lisboa, 1967a).
Devido às falhas do sistema de água, a Direção Geral de Saúde (DGS) aconselhou algumas medidas preventivas, divulgando instruções para a utilização da água para consumo e fins alimentares (Diário de Lisboa, 1967b; Torres, 2018; USAID, 1967). A companhia das águas lançou novo comunicado onde informou que os primeiros resultados das análises “não acusam a existência de inquinação na água distribuída (…)” e efetuou a lavagem de alguns reservatórios, numa operação que fez reduzir a turvação da água distribuída. Perante este quadro, a DGS continuou a divulgar recomendações para o uso doméstico da água (Diário de Lisboa, 1967c, 1967e), que eram refletidas em avisos emitidos pelas Câmaras Municipais da Grande Lisboa (Diário de Lisboa, 1967f). Esta situação levou a uma grande procura de água engarrafada provocando, em alguns locais, a sua falta (Diário de Lisboa, 1967c).
Outros impactes ambientais foram sentidos após as inundações:
a deposição de toneladas de lama nas vias de comunicação e habitações (Diário da Manhã, 1967a);
o mau funcionamento dos esgotos (Diário de Lisboa, 1967c);
as cabeças de gado em decomposição espalharam-se pelos campos (Diário de Lisboa, 1967b);
as dificuldades na recolha dos resíduos sólidos, com lixo a acumular-se nas ruas (Diário da Manhã, 1967);
os problemas de assoreamento prejudicando o escoamento das águas (Diário de Lisboa, 1967a).
Verificou-se ainda uma tomada de consciência do número crescente de mortos: mais de 200 vítimas na primeira edição do Diário de Lisboa (1967a) a 26 de novembro e 427 a 29 de novembro (Diário de Lisboa, 1967d). Os números oficiais falariam de 462 vítimas mortais (Costa et al., 2014); Rebelo (2008) refere um número superior a 500; Ramos e Reis (2001) apontam para 700 vítimas mortais, Oliveira (2019) para mais de 700. Após esta perceção, as autoridades tomaram medidas de urgência sanitária, com o enterro de pessoas e animais, a maior parte das vezes sem as formalidades habituais (Torres, 2018). A DGS avisou as populações do distrito de Lisboa para realizar a remoção de carcaças de animais mortos e enterros longe dos cursos de água, poços ou fontes e com recurso à cal ou uso de petróleo, para evitar a propagação de doenças contagiosas (Diário de Lisboa, 1967b, 1967c). No caso dos animais mortos, pensou-se na possibilidade de serem levados para Santarém, para serem transformados em adubo, mas tal não chegou a acontecer por não haver condições naquela cidade para o fazer (Torres, 2018).
Do ponto de vista da saúde pública, destaca-se o aparecimento da leptospirosis, entre alguns focos infeciosos. A leptospirose é uma doença zoonótica causada pelo patógeno bacteriano Leptospira interrogans e é transmitida diretamente pelo contato da urina de animais com a pele dos seres humanos (Few et al., 2004; Zavitsanou & Babatsikou, 2008) ou indiretamente transmitida pela água e solo contaminados (Bharti et al., 2003; Ingraham & Ingraham, 1995; Koutis, 2007).
As doenças transmitidas especialmente por roedores também podem aumentar durante fortes chuvas e inundações, devido a padrões alterados de contato. A leptospirose, uma doença associada a inundações, foi uma grande preocupação em algumas partes da Europa. As inundações podem causar perturbações nos sistemas de abastecimento de água e saneamento básico e assim contribuir para o aumento da exposição a agentes biológicos e químicos (French & Holt, 1989). As epidemias de leptospirose causadas pelo contato mais frequente com água contaminada aquando de inundações, foram descritas em vários locais (de Ville de Goyet, 1979). Vários relatos de casos destacaram o potencial vínculo entre inundações e leptospirose (Few et al., 2004; Githeko & Woodward, 2003).
Alguns destes surtos de enfermidades foram notificados após desastres naturais (Seaman et al., 1989) associados a catástrofes climáticas (Baranton & Postic, 2006), como as inundações de 1967 em Lisboa (Ahern et al., 2005; Beinin, 1985; de Ville de Goyet, 1979; Few et al., 2004; Githeko & Woodward, 2003; Seaman et al., 1989; Goeijenbier et al., 2012; Kovats et al., 2000; Manning, 1976).
Segundo Simões et al. (1969), no passado não foram relatados casos de leptospirose em fenómenos meteorológicos semelhantes aos que ocorreram em Lisboa e isso pode ser devido à menor densidade demográfica da população nas áreas atingidas (Few et al., 2004). Em anteriores inundações não foram detetados casos de tal enfermidade e até mesmo quando se indicou que as águas da inundação estavam muito contaminadas, não se registaram outros casos de enfermidades hídricas (Seaman et al., 1989).
Ainda que não seja assinalado o número de infetados (Seaman et al., 1989), foram estimados 32 casos com a suposição de que apenas um terço dos casos foi relatado. Oito pacientes (todos homens com idades entre 14 e 59 anos), que sofriam da doença de Weil, foram admitidos no hospital entre 17 e 26 dias após as inundações de Lisboa (Few et al., 2004; Simões et al., 1969). Os resultados clínicos e bioquímicos foram apresentados em grande detalhe e mostram o quadro típico da doença de Weil: os pacientes estavam profundamente icterizados e apresentaram leve proteinúria e alterações do sedimento urinário; três apresentaram insuficiência renal. No seu estudo, Simões et al. (1969) não relataram qualquer óbito.
Além dos casos registados de leptospirose, foram identificados outros possíveis focos de infeção (Diário de Lisboa, 1967b). Algumas localidades foram avisadas do perigo de uma epidemia de tifo. Em Algés e Carnaxide, a população foi avisada para que procurasse um posto de vacinação contra aquela doença (Diário de Lisboa, 1967e). O Jornal “Solidariedade Estudantil” divulgou o relato do Presidente da Junta de Freguesia da Castanheira, em que afirmou que “Além da febre tifoide, deve [haver] muitos casos de pneumonia aí pela rua” (Solidariedade Estudantil, 1967).
A DGS assumiu o papel principal na prestação das diferentes formas de assistência, de cuidados médicos e na adoção das medidas preventivas (Diário da Manhã, 1967; USAID, 1967). Uma vasta campanha de vacinação contra a febre tifoide foi realizada junto das populações, especialmente dirigida para as pessoas que trabalharam na desobstrução e recuperação dos locais mais atingidos. Foram os casos da vacinação dos 700 operários da Fábrica da Abelheira (Diário de Lisboa, 1967d) e da população de Alenquer, acompanhada pelo ministro das Corporações (Diário de Lisboa, 1967e).
Dada a extensão desta operação e da necessidade de neutralização do perigo de focos infeciosos capazes de alastrar, a Cruz Vermelha Portuguesa assumiu um papel importante na mobilização de voluntários com formação nas áreas sanitárias (USAID, 1967). O papel dos estudantes de medicina foi fundamental, nomeadamente na “intensa campanha de vacinação” contra a febre tifoide (Raposo et al., 2017, Diário de Lisboa, 1967d). A DGS, em colaboração com outras instituições de assistência médica e social, continuou a exercer ativa vigilância sanitária junto das populações e a prestar-lhes assistência médico-sanitária, especialmente no campo profilático. As vacinações antitíficas prosseguiram em postos de brigadas móveis para as populações disseminadas e por forma a fazer a verificação de carências médico-sanitárias (Diário de Lisboa, 1967e).
A 9 de dezembro, o Ministério de Interior elaborou uma nota oficiosa, a propósito da situação sanitária das zonas atingidas, elencando as medidas de auxílio tomadas: “fornecimento de água potável e controle dessa mesma potabilidade, vigilância médico-sanitária da população atingida, instalação de postos médico-sanitários, constituição de brigadas móveis de inspeção, vacinação e enfermagem, distribuição de medicamentos, material hospitalar, de primeiros socorros e de colheita, enfim a instrução das populações acerca de medidas profiláticas a adotar” (Diário de Lisboa, 1967g). Nesta sequência, a DGS informou não haver suspeitas de iminência de epidemias (Diário de Lisboa, 1967h). A DGS continuou a exercer nos dias seguintes uma forte vigilância, fomentando uma campanha de alerta com vista à deteção de casos de doenças infeciosas e infetocontagiosas. A propósito dos cuidados a ter para evitar a contaminação pelas doenças infetocontagiosas transmitidas pela ingestão de alimentos ou água contaminada, a população foi informada oficialmente da necessidade de ingerir água previamente fervida.
Entre os dias 13 e 15 de dezembro, a DGS apelou a nova campanha de vacinação e lançou apelos à tomada da segunda dose das vacinas contra o tifo (O Século, 1967; Torres, 2018). Toda esta operação de grande envergadura só foi possível com a solidariedade de várias instituições nacionais e internacionais, bem como laboratórios farmacêuticos (Catholic Herald, 1967; UK Parliament, 1967; USAID, 1967). Perante a necessidade de vacinação maciça, a DGS de Espanha enviou por avião 100 mil vacinas contra o tifo (Diário de Lisboa, 1967d). A assistência medicamentosa também foi um facto. Denúncias da falta de medicamentos, em especial de antibióticos e soro, foram relatadas (Diário de Lisboa, 1967c). Vários aviões foram chegando ao aeroporto de Lisboa, com toneladas de medicamentos e assistência sanitária (Diário da Manhã, 1967; Diário de Lisboa, 1967c, 1967d). A partir da cidade de Lisboa, os medicamentos foram distribuídos pelos municípios mais necessitados (Diário da Manhã, 1967), essencialmente através dos Bombeiros Voluntários (Raposo et al., 2017) e da Federação das Caixas de Previdência e Abono de Família (Federação das Caixas de Previdência e Abono de Família, 1967) para fazer chegar os carregamentos.
2. A intervenção socio-sanitária dos estudantes no apoio às populações afetadas pelas inundações
A catástrofe de 1967 tem de ser entendida no quadro do Portugal de então, um país profundamente desigual, com significativas bolsas de pobreza e com um regime político de natureza ditatorial, o que condicionaria a informação disponível e o debate público sobre o evento e sobre os seus impactos.
A significativa ação dos estudantes no auxílio às inundações foi também alvo de tentativas de silenciamento por parte do regime. A juventude universitária, e também a liceal, encontrava-se numa crescente rota de politização e de crítica ao regime do Estado Novo. Um conjunto de aspetos vai explicando e pontuando a desafetação estudantil destes anos relativamente ao regime: os ataques continuados por parte do poder à intervenção e à autonomia estudantil; o fantasma presente de uma guerra colonial que, desde 1961, absorvia continuados contingentes de jovens; a diversificação das oposições à ditadura; o embate da juventude com o caráter conservador e autoritário de um regime - e de uma sociedade - que surgia a contraciclo daquelas que eram as mudanças que a mobilização estudantil ia produzindo nesses “longos anos 60”; e, por fim, o próprio aumento paulatino da frequência escolar por esses anos, gerando uma maior socialização política desta juventude (Accornero, 2009; Bebiano, 2003; Cardina, 2008a, 2008b; Oliveira, 2004, 2019). Diante deste quadro, é com profunda desconfiança, e até com algum temor, que o regime observa a mobilização que os estudantes procuram fazer, desde cedo, para auxiliar as vítimas das inundações.
O movimento estudantil encontrou rapidamente formas de organização, sobretudo nas três cidades então com ensino universitário. Em Coimbra e no Porto, grupos organizam uma recolha de donativos a favor dos atingidos e são mobilizados grupos de voluntários para acorrer aos sinistrados. As ações estudantis encontram o seu espaço de coordenação na Associação dos Estudantes do Instituto Superior Técnico, onde se montou todo o sistema organizativo que esteve operacional durante duas semanas. Foi organizado um posto de comando e sua logística, definindo-se igualmente um plano de Socorro que, rapidamente, foi colocado no terreno (Oliveira, 2013, 2019). A mobilização estudantil contou também com a participação de vários estudantes liceais, organizados em brigadas de jovens para prestar auxílio às populações. Setores do catolicismo estudantil, desafetos do regime, e então num processo que António Araújo chama de “transição do social para o político”, tiveram igualmente um papel destacado no desencadear das ações de auxílio (Araújo, 2017).
Os estudantes são então confrontados com populações que vivem em “barracas, casebres, bairros da lata”, em locais onde não existem “sistemas de segurança e socorros, prevenção de epidemias, redes de escoamentos das águas”. São denunciadas as condições de subdesenvolvimento em que viviam as populações atingidas, sem os mais elementares requisitos de sanidade e segurança (Costa et al., 2014; Solidariedade Estudantil, 1967). Para muitos dos estudantes, era a primeira vez que tinham contacto direto com as condições de vida das populações pobres do país, mas também com uma certa indiferença das forças de segurança e a passividade das autoridades perante a tragédia.
A organização estudantil criou então três tipos de serviços que permitiram dar maior eficácia e rapidez à ajuda às populações: o Serviço de Planificação, que recebia os relatórios das várias Brigadas de Campo e, com base nos seus dados, preparava as tarefas para o dia seguinte; o Serviço de Transporte, que contactava com empresas de transporte e com os municípios para que pudessem levar os estudantes aos bairros; o Serviço de Expedição, que organizava o envio do material pedido pelas Brigadas. Também foi montado um Banco de Medicamentos que contou sobretudo com o apoio dos estudantes de Medicina e de Veterinária. Nos primeiros dias, os estudantes estiveram principalmente envolvidos na desobstrução de caminhos e na remoção das lamas e destroços que se depositaram nas casas e barracas atingidas, para a passagem das brigadas de salvamento. Estes trabalhos facilitaram na localização dos sobreviventes e dos cadáveres enterrados e posterior elaboração de listas de desaparecidos (Comércio do Funchal, 1967; Diário de Lisboa, 1967d).
Muitos estudantes acompanharam as famílias desamparadas naquelas circunstâncias, distribuindo géneros alimentares, roupas e agasalhos, ajudando nos funerais e prestando assistência a crianças e idosos durante a noite. Durante esse período, realizaram-se também vários trabalhos de proximidade, procurando promover mais higiene e imunização às populações e cobertura sanitária (Oliveira, 2013, 2019; Torres, 2018). O enterro dos cadáveres de animais e o pedido de exames bacteriológicos à água das nascentes são alguns exemplos de tarefas mais específicas também desenvolvidas (Solidariedade Estudantil, 1967). Os estudantes atuaram igualmente no campo da sensibilização junto das populações locais mais isoladas, com a divulgação de informações acerca do que havia sucedido e dos cuidados a tomar com a água e os vegetais, face a possíveis focos de epidemia (Barata, 2019).
Dadas as suas competências específicas, os estudantes de medicina foram envolvidos nas campanhas de vacinação e monitorização sanitária de urgência da população atingida. Montaram postos de vacinação e formaram brigadas para realizar o rastreio do tifo. Prestaram um importante apoio médico, especialmente na vacinação em massa, na instalação de postos clínicos para consultas e tratamentos de urgência, e no inquérito profilático às populações, sempre com o apoio técnico e logístico da DGS (Comércio do Funchal, 1967; Raposo et al., 2017; Solidariedade Estudantil, 1967).
Vários estudantes procederam à recolha, tratamento e publicação de informação, por forma a dar a conhecer a dimensão e as razões da catástrofe. O movimento estudantil criou uma imprensa própria que permitiu a difusão rápida da informação, acompanhada de análises interpretativas que levariam à censura por parte do regime. O caso mais evidente está associado ao boletim “Solidariedade Estudantil” que teve dois números publicados, atingindo uma tiragem de 10 mil exemplares (Oliveira, 2013, 2019).
As autoridades procuraram, sistematicamente, censurar as notícias relativas à campanha de solidariedade. No dia 27 de novembro um telegrama da Direcção da Censura enviou a seguinte informação às delegações locais: “Gravuras da tragédia: é conveniente ir atenuando a história. Urnas e coisas semelhantes não adianta nada e é chocante. É altura de acabar com isso. É altura de pôr os títulos mais pequenos”. Dois dias depois, a 29 de novembro, determinava-se: “Inundações: os títulos não podem exceder a largura de 1/2 página e vão à censura. Não falar no mau cheiro dos cadáveres. Atividades beneméritas de estudantes - Cortar” (Príncipe, 1979). A Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE) também interveio quando interrogou o correspondente da United Press International, Edouard Khavessian, acerca de uma informação dada por essa agência, sobre protestos estudantis contra a atuação do governo português em relação aos socorros prestados à população (Madeira et al., 2007).
A ação de voluntariado estudantil neste episódio assume características relevantes. Ela tem um papel significativo na mitigação dos dramáticos efeitos sociais que as inundações tinham provocado, envolvendo milhares de estudantes em diferentes tarefas de auxílio, das quais se poderia destacar, para o que aqui nos interessa, sobretudo o papel dos estudantes de medicina na contenção dos impactos das inundações na saúde pública das populações. Por outro lado, estas ações de emergência social auto-organizada são desencadeadas à margem, e até em confronto, com a própria narrativa do regime, ao procurarem salientar as condições sociais - de habitação, de salubridade, de saúde, etc. - que potenciaram a catástrofe e que, de algum modo, estiveram até na sua origem. O jornal Comércio do Funchal, particularmente lido pela juventude politizada da época, afinava pelo mesmo diapasão, chamando abertamente a atenção para as causas sociais que haviam estado na base da catástrofe:
nós não diríamos: foram as inundações, foi a chuva. Talvez seja mais justo afirmar: foi a miséria, miséria que a nossa sociedade não neutralizou, quem provocou a maioria das mortes. Até na morte é triste ser-se miserável. Sobretudo quando se morre por o ser. (Comércio do Funchal, 1967, p. 8)
IV. Conclusões
As inundações de 1967 foram um marco na história política do movimento estudantil português. Para muitos estudantes, foi a tomada de consciência das desigualdades e da injustiça social com a denúncia das iniquidades do regime.
O balanço face à inexistência de um sistema de proteção civil de apoio aos sobreviventes e as condições de pobreza em que viviam as populações da periferia de Lisboa levam o governo a tentar impedir que a opinião pública se apercebesse da dimensão real da tragédia. O trabalho dos estudantes no campo proporcionou o conhecimento dos problemas ambientais de saúde pública e deficiências da assistência sanitária de grande parte da população portuguesa. A campanha de vacinação é disso exemplo máximo.
Num tempo em que Portugal vivia sob uma ditadura, as inundações inscreveram-se ainda assim no debate político, motivando posicionamentos distintos. O regime e órgãos em sintonia procuraram enquadrar o ocorrido na categoria de desastre natural, vincando a inevitabilidade e a cadeia de solidariedade estabelecida; estruturas oposicionistas colocaram a tónica nas condições sociais que fizeram com que as fortes chuvadas se transformassem num desastre humano. É nesta segunda via que os estudantes se manifestaram, numa atitude de responsabilidade social e política (Cardina, 2008b; Costa et al., 2014; Oliveira, 2013, 2019).
Embora a participação de estudantes nas situações de catástrofes aconteça de maneira organizada, como verificamos nas inundações de 1967, o assunto da atuação e da preparação ainda não estão presentes nos currículos de formação académica da área da saúde (Wunderlich et al., 2017). Acreditamos que a formação na área da saúde em contexto de catástrofe deva fazer parte do currículo académico, por forma aos estudantes estarem mais preparados para colaborarem em situações extremas como aquela que ocorreu em novembro de 1967 na Grande Lisboa.
Contributos dos/as autores/as
Francisco da Silva Costa: Conceptualização; Metodologia; Validação; Análise formal; Investigação; Recursos; Curadoria dos dados; Escrita - preparação do esboço original; Redação - revisão e edição; Visualização; Supervisão. Miguel Cardina: Conceptualização; Metodologia; Validação; Análise formal; Investigação; Recursos; Curadoria dos dados; Escrita - preparação do esboço original; Redação - revisão e edição; Visualização. António Vieira: Metodologia; Validação; Investigação; Recursos; Curadoria dos dados; Visualização. Gisele Cristina Manfrini: Validação; Investigação; Visualização.