I. Introdução
Na última década, tem aumentado a atenção tanto da academia quanto do público geral sobre a influência do ambiente em diversos aspectos da saúde humana. Segundo Lytle e Sokol (2017), muitos estudos tentaram esclarecer a relação entre o ambiente alimentar e a obesidade, padrões alimentares, doenças crônicas e outros fatores relacionados com a saúde. A partir destes, já é conhecido que bairros de minorias raciais/étnicas são desproporcionalmente afetados por questões negativas para a saúde, que podem desencadear o aumento das taxas de morbidade, mortalidade, entre outras. Acredita-se que essa desigualdade esteja relacionada a fatores como segregação residencial, pobreza e privação de bairro, o que pode levar a resultados adversos para a saúde (Walker et al., 2010).
Com base nestas condições, estabeleceu-se o termo “Desertos Alimentares”. Segundo Walker et al. (2010), este é um termo relativamente novo e foi discutido pela primeira vez na década de 1990 na Escócia. Desde então, vem sendo utilizado com diferentes definições por diversos pesquisadores.
De acordo com Ramirez et al. (2017), desertos alimentares são definidos como áreas que estão a pelo menos 16km da fonte de aquisição de alimentos varejistas, como supermercados ou rede de supermercados mais próxima. Já o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA), define um deserto alimentar como uma área urbana ou área rural sem acesso imediato a alimentos frescos, saudáveis e acessíveis. Estipulam ainda o cumprimento de pelo menos um de dois critérios: 1) comunidades em que pelo menos 500 pessoas e/ou pelo menos 33% da população do setor censitário vive a mais de 1,6km de um supermercado ou grande mercearia em áreas urbanas, ou 16km em áreas rurais; e 2) comunidades de baixa renda com uma taxa de pobreza de 20% ou mais, ou uma renda familiar mediana igual ou inferior a 80% da renda familiar mediana da área (Miller et al., 2016). No entanto, Ghosh-Dastidar et al. (2014) apontam que a disponibilidade de estabelecimentos que oferece alimentos saudáveis não garante que os moradores façam compras ali.
O termo “oásis alimentar” inverte a ideia de “desertos alimentares”. O Departamento de Saúde do Estado de Washington (EUA) define um oásis alimentar como: “qualquer lugar onde as pessoas tenham o melhor acesso possível a opções saudáveis e ambientes alimentares”. Já os “pântanos alimentares” são definidos como áreas onde os moradores têm acesso a grandes quantidades de alimentos com alto teor de energia, embora tenham opções limitadas de alimentos saudáveis (Yang et al., 2020).
No Brasil, o direito à alimentação adequada que promova a saúde humana está previsto no Art. 6° da Constituição Federal (República Brasileira, 1988). No entanto, as problemáticas associadas à alimentação se fazem presentes no cotidiano de grande parte dos brasileiros. Tanto no Brasil quanto no mundo, a Segurança Alimentar é um elemento faltante no dia-a-dia de inúmeros grupos sociais. O conceito de Segurança Alimentar e Nutricional está estabelecido no Art. 3° da Lei 11 346/2006 (Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional - LOSAN) e
consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis. (República Brasileira, 2006)
O Brasil possui amplo reconhecimento internacional por suas medidas para a erradicação da fome e diminuição da pobreza e desigualdades sociais. Dentre as políticas públicas de segurança alimentar se destacam o Programa Fome Zero, o Programa Bolsa Família e o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), políticas que em conjunto com outras iniciativas fizeram com que o país saísse do mapa da fome em 2014. Apesar da prerrogativa legal, ainda assim, segundo dados de 2018 da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), 5,2 milhões de brasileiros passam fome no país (Damásio, 2020).
As ações promovidas para garantia da Segurança Alimentar nas últimas décadas acarretaram um processo intenso de globalização, fortificado pelo livre mercado alimentício entre as nações. Tais ações implicaram em mudanças na estrutura produtiva e de mercado, ocasionando transformações na alimentação das pessoas, como, por exemplo, o aumento do consumo de alimentos processados e ultraprocessados em detrimento da ingesta de produtos agrícolas tradicionais. A consequência disso é o aumento do desenvolvimento de doenças crônicas relacionadas com a nutrição, como diabetes, hipertensão e obesidade.
O Painel Global sobre Agricultura e Sistemas Alimentares para a Nutrição (2016), intitulado Sistemas Alimentares e Dietas: como enfrentar os desafios do século XXI, destaca a importância de erradicar a desnutrição no cenário mundial, mas também de adotar medidas de controle do sobrepeso, obesidade e doenças relacionadas com a dieta, a fim de evitar o aumento da mortalidade, diminuição da saúde física e mental, perdas econômicas e degradação do meio ambiente.
De acordo com o Guia Alimentar Para a População Brasileira (República Brasileira, 2014), as principais doenças que acometem aos brasileiros deixaram de ser agudas e passaram a ser crônicas. Apesar da redução da desnutrição em crianças, as deficiências de micronutrientes e a desnutrição crônica ainda são prevalentes em grupos vulneráveis, como indígenas, quilombolas, crianças e mulheres que vivem em áreas vulneráveis (República Brasileira, 2014). Ocorreu ainda o aumento expressivo do sobrepeso e da obesidade em todas as faixas etárias, e as doenças crônicas são a principal causa de morte entre adultos. De acordo com a pesquisa da Vigitel (Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico), 7,4% dos brasileiros tem diabetes, 24,5% tem hipertensão e 20,3% estão obesos (República Brasileira, 2019a).
O Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidori ([IDEC], 2020) destaca que a dificuldade geográfica no acesso a alimentos nutritivos é um obstáculo significativo para que uma parcela considerável da população tenha uma alimentação adequada e saudável. Bairros periféricos ou com baixos indicadores sociais são, em geral, locais onde o acesso a alimentos adequados é mais difícil (Duran, 2013). De acordo com o Mapeamento de Desertos Alimentares no Brasil (República Brasileira, 2019b), em 12 das 21 capitais brasileiras, o grupo de subdistritos em que existe uma quantidade menor de estabelecimentos que oferecem alimentos saudáveis, é também o grupo de menor renda (IDEC, 2020).
A partir do exposto, este artigo tem como objetivo identificar a relação entre a presença de desertos alimentares com a vulnerabilidade socioeconômica em municípios da microrregião Ilhéus-Itabuna no estado da Bahia, Brasil.
II. Metodologia
1. Caracterização da área de estudo
A Microrregião Ilhéus-Itabuna (fig. 1), estabelecida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística ([IBGE], 1990), também conhecida como “Zona do Cacau” ou “Região Cacaueira da Bahia”, é composta por 41 municípios (Meliani, 2014). Os municípios que a compõem são: Almadina, Arataca, Aurelino Leal, Barra do Rocha, Barro Preto, Belmonte, Buerarema, Camacan, Canavieiras, Coaraci, Firmino Alves, Floresta Azul, Gandu, Gongogi, Ibicaraí, Ibirapitanga, Ibirataia, Ilhéus, Ipiaú, Itabuna, Itacaré, Itagibá, Itajú do Colônia, Itajuípe, Itamari, Itapé, Itapebi, Itapitanga, Jussari, Mascote, Nova Ibiá, Pau Brasil, Santa Cruz da Vitória, Santa Luzia, São José da Vitória, Teolândia, Ubaitaba, Ubatã, Una, Uruçuca e Wenceslau Guimarães.
Possui uma população total de 1 020 642 habitantes (de acordo com o censo do IBGE do ano de 2010), o clima predominante é tropical úmido Am, segundo a classificação de Köppen, estando inserida no Bioma da Mata Atlântica, com uma área total de 21 308,9km² (Aguiar, 2018).
Historicamente, foi a partir de suas vilas coloniais litorâneas que se interiorizou a produção do cacau. As cidades de Ilhéus e Itabuna tornaram-se as principais cidades em tamanho e economia, e juntas dão nome à mesorregião (Meliani, 2014). A cacauicultura foi desenvolvida inicialmente como uma monocultura voltada para a exportação, estando diretamente refém de diferentes fatores internos e externos. A primeira grande crise do cacau regional, se deu por conta da quebra da bolsa de valores de Nova Iorque em 1929, em que os Estados Unidos da América era o principal comprador do cacau da região. Em 1987, ocorreu a segunda grande crise do cacau, agravada pela praga do fungo conhecido como “vassoura-de-bruxa” (Moniliopthora perniciosa), contribuindo para que o cacau perdesse a primeira posição no ranking de exportações do estado para os produtos químicos e petroquímicos (Aguiar & Pires, 2019). Hoje, a economia da região ainda se baseia na monocultura cacaueira como produto primário de exportação e é a base de sua economia (Aguiar, 2018).
De acordo com Santos e Santos (2012), na década de 1990 houve um expressivo aumento da pobreza nos municípios que compõem a microrregião, tendo como consequência um grande número de pessoas sem emprego e a intensificação dos fluxos migratórios de moradores de zonas rurais e de pequenas cidades para as cidades de Ilhéus e Itabuna. Segundo Costa (2012), as taxas de crescimento populacional dos municípios da microrregião variaram de acordo com o desempenho da economia regional.
Este aumento da pobreza se expressou nas taxas de desemprego da microrregião. De acordo com o IBGE, a taxa de desemprego (percentual da população de 16 anos e mais, economicamente ativa, desocupada) da microrregião aumentou de 8,35% no ano de 1991, para 21,59% no ano 2000, reduzindo passado uma década para 12,48% no ano de 2010 (República Brasileira, 2021). Dados mais recentes apontam que os municípios da microrregião apresentaram em média 9,68% de população ocupada (IBGE, 2018). Segundo dados da Relação Anual de Informações Sociais ([RAIS], 2016), a microrregião registrou uma renda média domiciliar de R$932,64 em 2015, enquanto o salário mínimo brasileiro correspondia a R$880,00, de acordo com o Decreto nº8618, de 2015 (República Brasileira, 2015).
Apesar do predomínio do cacau em sua região litorânea, para o interior dessa microrregião se desenvolveu aos poucos a pecuária bovina, ocupando grandes áreas destinadas a pastagem. Outras atividades econômicas também se incorporaram na microrregião, ainda que com menor expressão, como por exemplo a atividade turística (Aguiar, 2018).
Os pequenos municípios têm buscado alternativas para estimular o crescimento econômico, como a produção de banana em Wenceslau Guimarães e Teolândia, a extração mineral em Ipiaú e Itagibá, além de outros pequenos segmentos na área da pesca e artesanato (Santos, 2018).
De acordo com Aguiar (2018), a partir dos anos 2000, nos municípios de Itapebi, Belmonte e Canavieiras, foram implantadas extensas áreas com plantios de eucalipto, fomentado por empresas situadas no Extremo Sul do Estado, direcionadas à produção de papel e celulose. Além da eucaliptocultura, no município de Canavieiras se instalaram empreendimentos de carcinicultura, criando o camarão do Pacífico (Litopennaeus vannamei) em cativeiro, com incentivos do governo estadual.
No entanto, apesar da diversificação econômica regional, a atividade cacaueira ainda é a principal fonte econômica da microrregião, entre as demais atividades, apenas a pecuária bovina vem obtendo expressão no cenário econômico (Sena, 2013).
2. Fonte de dados
A aplicação da metodologia para caracterização de desertos alimentares ainda é muito ampla, pois não há um consenso quanto aos critérios de identificação. Desta forma, não estão claramente predeterminados os grupos alimentícios que comporiam uma dieta completamente saudável, nem os estabelecimentos que os fornecem. Os limites referidos à distância destes estabelecimentos para determinar o acesso como difícil ou facilitado também não estão padronizados (Gonzalez-Alejo et al., 2019).
Entretanto, a utilização de dados relacionados com a variedade e tipologia comercial, em uma determinada área, e relacionar a distribuição desses estabelecimentos com aspectos socioeconômicos é usual nos trabalhos de caracterização dos desertos alimentares. No Brasil, a Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (CAISAN) realizou o mapeamento de desertos alimentares a partir do estudo técnico Mapeamento dos Desertos Alimentares no Brasil (República Brasileira, 2019b). Para isso foi utilizada a base de dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS, 2016), que é um instrumento de gestão governamental do setor do trabalho, instituída pelo Decreto nº 76 900/75 (República Brasileira, 1975).
A RAIS 2016 oferece informações sobre o mercado de trabalho formal de todos os municípios brasileiros. Nessa base, os estabelecimentos são organizados pela Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE), estruturada de forma hierarquizada em cinco níveis, com 21 seções, 87 divisões, 285 grupos, 673 classes e 1301 subclasses.
Para o mapeamento de desertos alimentares da CAISAN (República Brasileira, 2019b) também foram incorporadas à base de dados do estudo as feiras livres do Mapa de Feiras Orgânicas produzido pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC), as feiras do Mapa SAN produzido pela pesquisa eletrônica da CAISAN, e as feiras de alimentos constantes dos sítios eletrônicos das prefeituras das capitais brasileiras. Ao todo foram mapeadas 5083 feiras.
A classificação de cada estabelecimento foi realizada de acordo com o perfil de alimentos que a população adquire em cada categoria. Para isso, foi utilizada a base de dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF 2008-2009; IBGE, 2011), dessa forma foi possível saber os alimentos adquiridos pela população e os respectivos locais de aquisição (quadro I).
Para identificar as limitações econômicas dos habitantes da microrregião Ilhéus-Itabuna em relação ao acesso de alimentos saudáveis, foi necessário utilizar indicadores socioeconômicos para a área de estudo. Neste trabalho, foram utilizados o Índice de Vulnerabilidade Social (IVS) e o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM), elaborados a partir dos indicadores obtidos nos censos demográficos do IBGE, para os anos de 1991, 2000 e 2010.
O IVS é construído a partir de indicadores do Atlas do Desenvolvimento Humano (ADH) no Brasil, e procura dar destaque a diferentes situações indicativas de exclusão e vulnerabilidade social no território brasileiro. Este índice é o resultado da média aritmética dos subíndices: IVS Infraestrutura Urbana, IVS Capital Humano e IVS Renda e Trabalho, cada um deles entrando no cálculo do IVS final com o mesmo peso (Costa & Marguti, 2015). O IDHM brasileiro segue as três dimensões do IDH global - saúde, educação e renda, e adequa a metodologia global ao contexto brasileiro e à disponibilidade de indicadores nacionais. Os indicadores levados em conta no IDHM são os mais adequados para avaliar o desenvolvimento dos municípios brasileiros. Este é o resultado da média geométrica dos IDHMs longevidade, educação e renda (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento [PNUD], 2013). Os índices variam de zero a um. Para o IDHM quanto mais próximo de um, maior o desenvolvimento humano no município. Já para o IVS, quanto mais próximo de um, maior vulnerabilidade social é apresentada no município.
3. Procedimento metodológico
A utilização de parâmetros e indicadores para conhecer a realidade de determinada região é essencial para tomadas de decisões dos gestores públicos, pois são capazes de traduzir fenômenos complexos e multivariados de forma mais objetiva e funcional. A metodologia de Auxilio Multicritério à Decisão (AMD), aplicada através do Processo Analítico Hierárquico (AHP - em inglês Analytical Hierarchical Process), é uma das formas para se obter resultados técnicos que respaldam as tomadas de decisões (Morimoto & Oliveira, 2019).
Para aplicar a metodologia AHP no presente estudo foram utilizados recursos disponíveis no Sistema de Informação Geográfica (SIG), mais especificamente os softwares QGis 3.10 e 2.8.9 com a extensão Easy AHP plugin, tendo em vista que o resultado final foi o mapeamento dos desertos alimentares da microrregião Ilhéus-Itabuna, levando em consideração as características de distribuição dos estabelecimentos alimentícios de cada município desse local.
A aplicação do Processo Analítico Hierárquico é baseada na determinação do grau de importância de cada parâmetro, criando, consequentemente, uma hierarquia que determinará como ocorrerá a espacialização, neste caso, mapeamento dos estabelecimentos alimentícios. No ambiente do SIG, a ferramenta AHP tem como objetivo a atribuição de pesos aos critérios a serem interagidos, ponderando os subcritérios existentes em cada critério.
A metodologia AHP é realizada através da construção e normalização de uma matriz que reproduz as prioridades entre os parâmetros estabelecidos e fundamentados pelo pesquisador, utilizando para isso a Escala Numérica de Saaty (quadro II).
Os critérios e subcritérios utilizados foram classificados a partir da metodologia usada pela CAISAN (República Brasileira, 2019b) no mapeamento de desertos alimentares no Brasil. Os pesos de cada critério foram atribuídos de acordo com as características de distribuição dos estabelecimentos da área estudada. Notou-se que há maior distribuição de estabelecimentos mistos, tornando este critério neutro para a determinação dos desertos alimentares. Entretanto, os estabelecimentos In Natura apresentaram disparidade em relação à distribuição, concentrando-se em poucos municípios, sendo o critério mais representativo para a determinação dos desertos alimentares na área estudada. Já os estabelecimentos classificados como Ultraprocessados, apesar de também estarem mais concentrados em poucos municípios, apresentaram maior distribuição em relação aos estabelecimentos In Natura, o que determinou a seguinte atribuição de pesos expressa no quadro III.
Na atribuição de pesos dos subcritérios, foi levado em consideração que estabelecimentos In Natura fornecem alimentos mais saudáveis e os Ultraprocessados fornecem alimentos pouco nutritivos. Para os estabelecimentos mistos optou-se por levar em consideração que apesar de não haver predominância no fornecimento de alimentos In natura, estes estabelecimentos apresentaram grande relevância para a área de estudo, já que se observou uma distribuição mais uniforme em todo o território, tendo em vista que alguns estabelecimentos desse critério também fornecem alimentos In Natura/minimamente processados.
Após a obtenção de todas a informações estatísticas, esses dados foram atribuídos para seus respectivos municípios da base cartográfica de Divisão Político-Administrativa do Estado da Bahia (Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais [SEI], 2019) no software QGis 3.10. Apenas a utilização da extensão Easy AHP plugin foi realizada no QGis 2.8.9. Na figura 2 é apresentado o fluxograma metodológico.
III. Resultados e discussão
Os dados do Índice de Vulnerabilidade Social (IVS; Costa & Marguti, 2015) analisados apontaram um IVS de 0,310 no município de Itabuna, o menor da microrregião Ilhéus-Itabuna (fig. 3), seguido pelos municípios de Ipiaú, com 0,367 e Ilhéus, com 0,387. De acordo com o Atlas da Vulnerabilidade Social nos Municípios Brasileiros, apesar de apresentarem os menores índices da região, estes municípios são classificados como regiões de “média” vulnerabilidade social, pois estão na faixa de IVS de 0,300 a 0,400. Em contrapartida, os municípios com o maior IVS são: Una, com 0,709; Mascote, com 0,569; e Santa Cruz da Vitória, com 0,561. Localidades que apresentem IVS acima de 0,500 são classificadas como sendo de “muito alta” vulnerabilidade social.
Para a microrregião como um todo, observou-se que 92,68% (12) dos municípios apresentaram alta (26) ou muito alta (12) vulnerabilidade social, enquanto apenas 7,32% (3) apresentaram média vulnerabilidade social, considerando-se a região com alta vulnerabilidade social.
Em relação ao Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM; PNUD, 2013), os municípios que apresentaram melhores índices foram Itabuna, com 0,712, seguido por Ilhéus, com 0,690 e Ipiaú, com 0,670. De acordo com o Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil, o município de Itabuna é classificado como sendo de elevado desenvolvimento humano, pois possui um IDHM na faixa de 0,700 a 0,799. Já os municípios de Ilhéus e Ipiaú, são classificados como de médio desenvolvimento humano, estando na faixa de 0,600 a 0,699.
Em oposição aos municípios mencionados, as localidades da microrregião com menor IDHM são Una, com 0,366, Wenceslau Guimarães, com 0,544, e São José da Vitória, com 0,546. O município de Una é classificado como sendo de muito baixo desenvolvimento humano (0 a 0,499), já Wenceslau Guimarães e São José da Vitória apresentam baixo desenvolvimento humano (0,500 a 0,599).
Na microrregião, 73,17% dos municípios corresponde a um desenvolvimento humano baixo (29) ou muito baixo (1), e 26,83% correspondem a um médio (10) ou alto (1) desenvolvimento humano. Na figura 4 é apresentado o mapa de IDHM para a microrregião.
Os resultados apontados pelos indicadores socioeconômicos são análogos à realidade observada na microrregião. Os municípios de Ilhéus e Itabuna se destacam dos demais municípios por serem as principais cidades da região desde a época dos coronéis do cacau. Ambos os municípios são responsáveis pelos maiores Produtos Internos Brutos (PIB) per capita da região, sendo o de Itabuna R$3 984 075, o 9° maior do estado, e de Ilhéus R$ 3 842 397, 12° maior do estado (em valores correntes, R$x1000), de acordo com dados do IBGE para o ano de 2017 (IBGE, 2017).
De acordo com Costa (2018), os dados revelam e destacam a significativa participação e supremacia de Ilhéus e Itabuna na formação do PIB regional, enquanto os demais municípios da região não conseguem produzir riquezas superiores.
Além dos municípios de Ilhéus e Itabuna, destaca-se também o município de Ipiaú. Este destaque pode estar associado ao fato de que, entre os anos de 1999 a 2012, o principal setor produtor de capital no município de Ipiaú ter sido o setor terciário, apresentando o maior percentual na produção de receita no município. Apesar do cacau ainda ser o principal produto agrícola do município de Ipiaú, dados relacionados com a evolução da população no município indicam que já durante a década de 1990 a agropecuária não era o principal setor produtor de capital no município (Bruno et al., 2016).
Com base nos dados da CAISAN (República Brasileira, 2019b) elaborou-se o mapa de desertos, oásis e pântanos alimentares para a microrregião Ilhéus-Itabuna (fig. 5).
Cerca de 21,96% (9) dos municípios da microrregião apresentam uma situação de oásis alimentar. Entre eles estão as cidades de Itabuna, Ilhéus e Ipiaú, indicando uma boa oferta de alimentos saudáveis. Para o estado de pântano alimentar, foram identificados 16 municípios (39,02%), entre eles os já mencionados Una e Wenceslau Guimarães, indicando a alta presença de alimentos ultraprocessados e com grande teor energético. Os desertos alimentares foram identificados em 39,02% dos municípios (16), entre eles estão Santa Cruz da Vitória e São José da Vitória, caracterizados como regiões de baixo acesso a alimentos saudáveis.
As localidades identificadas como desertos ou pântanos alimentares corresponderam diretamente a locais que apresentaram um alto índice de vulnerabilidade social e baixo desenvolvimento humano, enquanto as regiões de oásis alimentar corresponderam a cidades com menores índices de vulnerabilidade e maior desenvolvimento humano. A partir dos resultados pôde-se identificar uma relação positiva entre municípios de baixa renda e o surgimento de desertos alimentares, semelhante ao encontrado nos trabalhos de Gordon et al. (2011) e Jiao et al. (2012).
Além das questões sociais, segundo Carnaúba (2018), no Brasil, o surgimento dos desertos alimentares está ligado às mudanças na produção e abastecimento de alimentos. A expressiva agropecuária brasileira e o desperdício de alimentos afastam um suposto cenário de escassez, enquanto, a publicidade, mudanças na cultura alimentar, o ritmo de vida e a “indústria do saudável” (quando alimentos falsamente naturais, como barras dietéticas, são promovidos como alternativas saudáveis), são fatores que estão ligados ao abandono de hábitos alimentares saudáveis.
Cabe ao Estado reduzir os desertos e pântanos alimentares existentes e inibir o aparecimento de novas áreas deste tipo, aos quais estão diretamente relacionados às questões sociais e culturais, que só serão sanadas por meio da promoção de políticas públicas que busquem reduzir estas desigualdades, e que impulsionem a justiça social e ações afirmativas neste sentido.
IV. Conclusões
As análises espaciais e socioeconômicas são ferramentas importantes para o reconhecimento de dificuldades sociais ao acesso a alimentação saudável. A utilização da metodologia AHP para identificação de prioridades na classificação dos Desertos Alimentares, em conjunto com o processamento dos dados no ambiente do SIG, demonstraram ser ferramentas úteis e importantes na espacialização de dados e construção de mapas, que podem auxiliar gestores em tomadas de decisões a respeito da problemática abordada, facilitando também a construção de medidas de intervenção.
Considerando que a Segurança Alimentar e Nutricional é um direito estabelecido pela Constituição Federal Brasileira (República Brasileira, 1988) e também pelo Pacto Internacional de Direitos Humanos, Econômicos, Sociais e Culturais, tanto do ponto de vista da quantidade como da qualidade, os estudos relacionados com a identificação de Desertos Alimentares e dos fatores que os provocam, são essenciais para o desenvolvimento de políticas públicas mais assertivas para a garantia desse direito.
Os conceitos de desertos, pântanos e oásis alimentares podem ser utilizados como ferramentas em estudos de mapeamento de doenças crônicas, como diabetes e obesidade, na população mais vulnerável socialmente. A partir disso é possível implementar projetos de saúde e educação pública, como também incentivo ao desenvolvimento de projetos urbanos e alimentares, como, por exemplo, hortas comunitárias, agricultura familiar, feiras livres, entre outros.
Os resultados apresentados neste trabalho demonstram que a falta de estabelecimentos que comercializam alimentos frescos e saudáveis nos municípios da microrregião Ilhéus-Itabuna está diretamente relacionado com o nível de desenvolvimento social. Desta forma, é importante destacar que a desigualdade social é o fator determinante em relação à falta de acesso aos alimentos saudáveis. Além da falta de estabelecimentos que comercializem In Natura ou produtos minimamente processados, a população de baixa renda não possui poder aquisitivo necessário para ter acesso aos alimentos naturais, daí que a implementação de programas governamentais que promovam este poder aquisitivo sejam de extrema importância para a garantia da alimentação de qualidade como determina a Constituição (República Brasileira, 1988).
Os dados utilizados neste estudo são anteriores à crise mundial de saúde ocasionada pela Covid-19 em 2020. Desta forma, estudos subsequentes podem explorar a relação das regiões de Desertos e Pântanos Alimentares e os efeitos sobre a saúde da população, como doenças crônicas relacionadas à dieta que podem acarretar maior índice de mortalidade pelo vírus. A aplicação de pesquisas qualitativas será também ser útil para desenvolver estratégias contra desertos e pântanos alimentares.
Contributos dos/as autores/as
Elizabeth Santos de Oliveira: Conceptualização; Metodologia; Software; Análise formal; Investigação; Curadoria dos dados; Escrita - preparação do esboço original; Redação - revisão e edição; Visualização. Andrêssa Pereira de Jesus: Conceptualização; Metodologia; Investigação; Escrita - preparação do esboço original; Redação - revisão e edição. Romari Alejandra Martinez Montaño: Redação - revisão e edição; Supervisão.