I. Introduçãoi
O ensino superior (ES) é visto desde há muito como um meio de acesso a melhores oportunidades profissionais. Contudo, apesar da sua crescente democratização, a ritmos muito distintos entre países (Gürüz, 2008), continuam a registar-se grandes desigualdades no acesso, quer entre os vários estratos sociais da população, quer também entre países. Se considerarmos, por exemplo, o caso de Portugal, observa-se que o alargamento da base de recrutamento do ES começou a partir de 1974 (Guerreiro & Abrantes, 2005), evolução consideravelmente tardia comparando com outros países ocidentais, cujo processo começou após a II Guerra Mundial (Goastellec & Välimaa, 2019).
No entanto, globalmente, o número de indivíduos com ES tem aumentado (Roser & Ortiz-Ospina, n.d.), trazendo populações anteriormente excluídas para o grupo dos “altamente qualificados”. Se, por um lado, esta inclusão contribui para diminuir as desigualdades, por outro, ameaça o status quo dos grupos mais privilegiados. Neste contexto, a mobilidade estudantil internacional (MEI), um fenómeno durante muito tempo alimentado pelas deficiências dos sistemas educativos de vários países (Lee & Tan, 1984) e pela circulação das elites (Wagner, 2020), tem vindo a assumir-se como uma nova estratégia de distinção socioprofissional. O objetivo é adquirir não apenas novos conhecimentos e competências, como também novas redes, proporcionando, assim, um distinto acréscimo de capital social e cultural, amplamente valorizado no mercado de trabalho (King et al., 2016).
Diversos estudos apontam a procura de um currículo e/ou carreira internacional, o desejo de aprender/melhorar uma língua e a esperança de aceder a profissões melhor remuneradas como importantes motivações para os jovens participarem num projeto de MEI (Findlay & King, 2010; Fonseca et al., 2015). Contudo, para além destes motivos mais instrumentais, para os jovens das classes sociais mais altas, a MEI é, sobretudo, uma oportunidade para ganhar novas experiências juvenis e alcançar uma certa emancipação familiar (King & Raghuram, 2013). A classe social surge, assim, como uma variável preponderante na compreensão deste fluxo.
Se a questão das motivações tem sido tema de diversos estudos, a sua relação com a classe social e com o projeto de reprodução/mobilidade social ascendente dos estudantes parece menos desenvolvida (Leung, 2017). Sabe-se, contudo, que o ES e a MEI são mais acessíveis às classes médias e altas (Bourdieu & Passeron, 1964, 1970; Findlay et al., 2012; Martins et al., 2005), o que pode levar a uma reprodução social (Waters, 2012), ou mesmo à produção de novas desigualdades (Bilecen & Van Mol, 2017), em detrimento de uma maior igualdade.
Neste artigo, de caráter exploratório, procuramos analisar a MEI dos três maiores grupos de estudantes internacionais em Portugal: angolanos, cabo-verdianos e brasileiros. Atendendo ao seu passado colonial, Portugal regista uma mobilidade estudantil histórica com origem nas antigas colónias a qual continua a ter um grande peso. Diante desta situação, observa um número considerável de estudos sobre as motivações destes estudantes para o projeto migratório, assinalando a importância das redes, da língua comum, das bolsas e do prestígio do ES português nos países de origem (Alves, 2015; Costa & Faria, 2012; Iorio, 2018b; Iorio & Fonseca, 2018; Liberato, 2013). Apesar disto, parece haver uma menor dedicação à compreensão da relação entre a MEI, a origem social e a possibilidade de mobilidade social (Iorio & Pereira, 2018; Pedreira, 2013).
Por conseguinte, colocamos as seguintes questões de investigação: Quais as motivações para se estudar no estrangeiro e escolher Portugal? Qual a origem social dos estudantes estrangeiros? E de que forma tais motivações podem dar-nos elementos adicionais sobre essa origem e sobre um possível projeto de reprodução ou mobilidade social ascendente favorecido pela MEI?
Para tal, apresentamos primeiramente o quadro histórico em que se processa esta mobilidade, destacando o papel das condições de ES nos países de origem, da disponibilidade (ou não) de bolsas e da língua na formação deste fluxo, pondo em evidência origens sociais diferentes entre os três casos. Em seguida, apresentamos a metodologia (mista), tendo por base dois questionários online e um amplo conjunto de entrevistas semiestruturadas. Em terceiro lugar, mobilizamos os dados para mostrar a heterogeneidade social da amostra, considerando o nível educacional e a situação profissional dos pais. Finalmente, analisamos as motivações destes estudantes, procurando relacioná-las com a origem social e com a possibilidade de mobilidade social.
II. Das antigas colónias para a antiga metrópole
A relação histórico-política entre diferentes países é um fator fundamental para compreender os espaços dentro dos quais a MEI ocorre, e a sua relação com a mobilidade social (Börjesson, 2017; Perkins & Neumayer, 2014). Em Portugal, a maioria dos estudantes internacionais vem, tradicionalmente, de países de língua portuguesa, como Angola, Cabo Verde e Brasil, este último que é, desde 2008, o principal país de origem de estudantes estrangeiros (Iorio, 2018b). Sendo os três países ex-colónias portuguesas, que obtiveram as suas independências em 1822 (Brasil) e 1975 (Angola e Cabo Verde), este facto histórico continua a marcar profundamente as relações entre os mesmos e Portugal, com efeitos no desenvolvimento dos seus sistemas de ES e na MEI dos seus estudantes (França et al., 2018). Historicamente, a mobilidade de estudantes angolanos, cabo-verdianos e brasileiros para Portugal tem sido principalmente das suas elites (Almeida et al., 2004; Santos & Almeida Filho, 2012), facto associado ao passado colonial e à estratificação do acesso ao ES de então. No entanto, algumas mudanças político-institucionais nos países de origem têm contribuído para modificar este padrão.
No caso de Angola, durante o período colonial, o sistema de ES era relativamente débil, com apenas uma instituição de ensino superior (IES) pública e com a mobilidade das elites coloniais para Portugal, o que excluía os angolanos. Após a independência, o longo período de guerra civil (1975-2002) atrasou ainda mais o desenvolvimento do sistema nacional de ES. Frequentar o ES significava ir para outro lugar, primeiramente para países de influência socialista (especialmente Cuba e ex-União das Repúblicas Socialistas Soviéticas) e outros próximos, e, só numa fase posterior, novamente para Portugal (Faria, 2009). Embora os destinos fossem considerados diferentes em termos de prestígio, acediam ao ES, no período pós-independência, quer as classes mais privilegiadas (os “herdeiros”), quer outros oriundos de famílias pouco escolarizadas, através de bolsas de estudo (Faria & Liberato, 2012). Com o restabelecimento da paz e crescente abertura económica, o país começou a investir no seu sistema de ES, surgindo dezenas de IES públicas e privadas (Katúmua, 2017).
O caso de Cabo Verde é relativamente semelhante, embora durante o período colonial o ES fosse inexistente, com mobilidade de uma pequena elite em direção a Portugal (Seibert, 2012). No pós-independência, e até 2002, existiam apenas três IES públicas, de pequena dimensão, ano em que surgiu a primeira universidade privada no país (Banco Mundial, 2012). Em 2010, havia já um total de nove IES, com uma pública.
Nestes dois países africanos, o desenvolvimento do ES nacional coincide com a diminuição do número de estudantes destas nacionalidades em Portugal. No entanto, desde 1996, a MEI vinda de Angola e Cabo Verde tem sido encorajada por um regime especial de acesso ao ES português para bolseiros de países africanos de língua oficial portuguesa (PALOP). Este regime facilita o acesso a vagas em IES portuguesas, favorecendo principalmente jovens de classes sociais menos privilegiadas, os quais podem ainda beneficiar de isenção de propinas e de uma bolsa pecuniária mensal (pagas e atribuídas pelos respetivos países de origem ou por Portugal), em função dos rendimentos do seu agregado, entre outros critérios. Apesar de, em 2014, o Ministério da Educação e da Ciência ter criado o Estatuto do Estudante Internacional (Ministério da Educação e Ciência, 2014), que deu origem a um concurso especial para estudantes internacionais e estabeleceu propinas diferenciadas para este grupo, muitas IES optaram por equiparar os estudantes PALOP aos estudantes nacionais, pagando estes propinas de valor inferior aos demais estudantes internacionais, aos quais cabem, habitualmente, propinas mais onerosas. Entre 2000 e 2010, cerca de 700 angolanos e 6600 cabo-verdianos entraram no ES português por esta via (9,4% do total de matrículas destas nacionalidades; Direção-Geral do Ensino Superior-Direção de Serviços de Acesso ao Ensino Superior, 2009, 2011). Contudo, ao longo dos anos, o número tem diminuído. Estima-se que, entre 2011 e 2019, menos de 130 angolanos e de 2000 cabo-verdianos tenham entrado através daquele regime (Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência [DGEEC], 2016).
No que respeita ao Brasil, durante o período colonial, houve também uma mobilidade da elite para a metrópole (Santos & Almeida Filho, 2012). No entanto, esta situação, que se manteve durante muito tempo após a independência, devido à inexistência de IES no país, começou a mudar no século XX, quando as elites começaram a olhar para os Estados Unidos da América (EUA), entre outros, como tendo sistemas educacionais e científicos mais avançados do que Portugal e IES mais bem posicionadas nos rankings internacionais. A mobilidade para países de língua não portuguesa permitia ainda aperfeiçoar o conhecimento de uma segunda língua, traduzindo-se num acréscimo de capital cultural (Brandi, 2006; Mazza, 2008). Os anos 1990 e 2000 caracterizaram-se por uma expansão do sistema de ES no Brasil, com grandes investimentos públicos e privados, e a oferta de um maior número de bolsas de estudo (Leite, 2010). Em 2011, foi criado o Programa Ciência sem Fronteiras (CsF), que objetivava “promover a consolidação, expansão e internacionalização da ciência e tecnologia, da inovação e da competitividade brasileira por meio do intercâmbio e da mobilidade internacional” (Ministérios da Ciência, Tecnologia e Inovação, & Ministério da Educação, n.d.). Assim, Portugal começou a recuperar o seu protagonismo, tendo sido o principal destino dos estudantes CsF, pois uma grande parte dos beneficiários falava apenas português.
No entanto, para incentivar a aprendizagem de uma segunda língua, em 2013, o governo brasileiro suspendeu a possibilidade de se escolher Portugal como destino. De forma a continuar a atrair estudantes brasileiros, algumas IES portuguesas começaram, a partir de então, a reconhecer o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) no Brasil, para o ingresso desses estudantes em Portugal. Uma vez que o Estatuto do Estudante Internacional, de 2014, também impactou na atração de estudantes brasileiros, várias IES nacionais decidiram aplicar uma redução de propinas aos mesmos (Fonseca et al., 2016; França et al., 2018). Por último, houve ainda estudantes brasileiros que optaram por utilizar o Estatuto de Igualdade de Direitos e Deveres (Ministério da Administração Interna, 2003), existente desde 2003 em Portugal, para continuarem a disputar uma vaga através do concurso nacional de acesso e, assim, obterem o mesmo valor da propina paga pelos estudantes nacionais.
III. Metodologia e amostra
O artigo tem origem em duas teses de doutoramento sobre MEI em Portugal: uma sobre estudantes angolanos e cabo-verdianos, cujos dados foram recolhidos entre 2017 e 2019 pela primeira autora (em fase de submissão); e a outra sobre estudantes brasileiros, com dados recolhidos entre 2014 e 2016 pela segunda autora (concluída em 2018). Ambas as teses desenvolveram uma metodologia mista, com questionários online e entrevistas semiestruturadas, recolhendo informações que permitiram uma comparação robusta dos casos. A análise, exploratória, procurou ter uma perspetiva comum sobre os dados, apesar destes não responderem exatamente às mesmas questões de investigação. Assim, nem sempre a informação recolhida por cada estudo foi passível de comparação direta, limitações decorrentes do uso de diferentes corpos teórico-conceptuais em cada uma das teses.ii De forma a ultrapassar estas diferenças, optou-se por partir da análise de dados quantitativos sociodemográficos e motivacionais em comum para, posteriormente, se aprofundar o seu significado à luz dos dados qualitativos.
Entre as principais questões (em comum) abordadas nos questionários e nas entrevistas, estavam as motivações para a escolha de Portugal, as expectativas em relação ao projeto de MEI, as dificuldades e facilidades encontradas, social e academicamente, para além dos aspetos sociodemográficos. Sublinha-se que os dados recolhidos não permitem indicar, com rigor, uma classe social de pertença. Por um lado, por limitações inerentes à sua recolha, conforme mencionado; e, por outro, por se tratar de países de origem com realidades muito distintas. Apesar disto, e ainda que de forma simplista, ao contrário do proposto por Börjesson et al. (2020), entendeu-se haver três grandes classes: “classe baixa”, onde se encontram os estudantes com pais pouco ou nada escolarizados e de baixos rendimentos, fortemente dependentes de bolsas de estudo e/ou de um trabalho para pagar as suas despesas; “classe média”, cujos pais completaram o ensino secundário ou, por vezes, superior, podendo ou não ser capazes de contribuir financeiramente para os estudos do filho; e, finalmente, “classe alta”, onde predominam pais com ES e rendimentos mais elevados, sustentando plenamente os filhos. Entendemos que esta última se aproximará do conceito de “elite”, muito mais subjacente aos contextos de partida do que aos de chegada (Wagner, 2020). Mas, como em qualquer categorização, as definições não são rígidas e alguns casos desafiaram o estabelecido, sugerindo classes intermédias (ex. “classe média-alta” ou “classe média-baixa”).
Os questionários online foram amplamente distribuídos através de contactos pessoais e institucionais, e redes sociais, como o Facebook. Para tratamento e análise dos mesmos recorreu-se ao SPSS. Os entrevistados foram identificados, também, através de contactos pessoais e, subsequentemente, através do método “bola de neve”. Todas as entrevistas foram transcritas, anonimizadas e o conteúdo analisado através de MAXQDA e NVIVO.
No caso dos estudantes africanos, a análise reporta 152 questionários e 49 entrevistas (26 angolanos e 23 cabo-verdianos). No caso dos estudantes brasileiros, os dados referem-se a 449 questionários e 52 entrevistas. Os participantes frequentavam estudos de graduação e pós-graduação, em IES públicas e privadas do ensino universitário e politécnico, dispersos por todo o país. Registou-se maior concentração de inquiridos na região de Lisboa, onde efetivamente há um maior número de estudantes no ES.
O quadro I evidencia uma amostra ligeiramente sobre-representada pelas mulheres (à exceção do caso angolano), na sua maioria composta por indivíduos jovens e solteiros/as. A maioria dos angolanos frequenta mestrados, havendo poucos bolseiros (32%). Os cabo-verdianos estão concentrados nas licenciaturas, com uma percentagem mais elevada de bolseiros (68%). Quanto aos brasileiros, estão uniformemente distribuídos pelos três ciclos e 43% são bolseiros. Embora se trate de amostras não representativas, seguem o perfil dos inscritos/as destas nacionalidades no ES português (Pedreira, 2013).
Apesar das sobre-representações de género, localização ou outras, poderem ter um efeito importante na explicação das motivações e da origem social dos estudantes (Sondhi & King, 2017), tal não se sentiu em ambas as investigações. No entanto, observou-se uma relação entre ser cabo-verdiano, ter entrado por via do regime especial para PALOP, ser bolseiro e frequentar IES fora de Lisboa, sugerindo estarmos na presença de um grupo menos privilegiado, que por via de um concurso com características particulares os coloca a frequentar o ES em Portugal, em cursos e IES que não correspondem necessariamente às suas preferências. Isto foi apontado várias vezes nas entrevistas e justificado pela ausência de recursos para estudar noutros países, como EUA e Inglaterra. Um menor número de participantes angolanos e brasileiros referiu igual dependência das bolsas.
IV. Origem social
Antes de analisarmos as motivações, focamos a origem social dos participantes a partir da escolaridade e da situação profissional dos pais. Deste ponto de vista, e tendo em conta a análise das entrevistas, os participantes angolanos têm pais, na sua maioria, com ensino secundário ou ES, empregados por conta de outrem, reformados e trabalhadores domésticos. Muitos frequentam, eles próprios, uma IES em Angola, ao mesmo tempo que os seus filhos o fazem em Portugal.
Os pais dos participantes cabo-verdianos, por sua vez, têm principalmente formação primária ou ES. Maioritariamente são empregados por conta de outrem, empresários/trabalhadores por conta própria e trabalhadores domésticos. Entre os cabo-verdianos identificaram-se dois perfis: um primeiro, de menor dimensão, com pais cultural e economicamente mais capitalizados, e, portanto, ocupando as classes médias e altas; e um segundo, maior, relativamente mais desfavorecido, pertencente a uma classe baixa.
Quanto aos participantes brasileiros, a maioria descende de famílias onde pelo menos um dos pais tem ES. Embora a maioria não tenha um habitus internacional (Brito, 2004), alguns já migraram dentro do país por causa da carreira profissional dos seus pais ou para completar os seus próprios estudos, conferindo-lhes um acréscimo de capital de mobilidade (Murphy-Lejeune, 2002). Uma grande parte (38%) era proveniente da Região Sudeste, região com o maior índice de desenvolvimento no ensino fundamental brasileiro, o que traduz maiores possibilidades de acesso ao ES. No entanto, outra grande parte (26%) veio da Região Nordeste, a qual tem um dos índices mais baixos (Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro, 2015).
Sobre os participantes brasileiros, importa referir que entre os que já frequentavam o ES no Brasil, 74% estavam matriculados numa IES pública, antes de virem para Portugal. Este é um dado relevante no contexto brasileiro, onde a frequência de IES públicas está associada às classes mais privilegiadas. Tal relação decorre de um baixo número de vagas no ES público, ocupado por aqueles que tiveram acesso a um ensino fundamental de qualidade, tendencialmente adquirido, no contexto do Brasil, em escolas privadas. Uma vez que são as classes médias e altas as que têm maior capacidade para financiar o ensino fundamental privado, são também estas as que, maioritariamente, acedem ao ES público. Neste sentido, ainda que a maior parte dos participantes brasileiros seja oriunda da região Sudeste e que muitos tenham frequentado uma IES pública no Brasil, o facto da Região Nordeste se posicionar em segundo lugar, dá-nos indícios de que, apesar da manutenção de um processo de elitização (Brito, 2004), houve um alargamento no envio/recrutamento desses estudantes para Portugal. Nesse sentido, importa referir que a chamada “Lei de Cotas” de 2012 (Presidência da República Brasileira, 2012), pode ter tido alguma influência nesse alargamento, uma vez que passou a assegurar que 50% das vagas por curso e turno, nas 59 universidades federais e 38 institutos de educação, ciências e tecnologias reconhecidas pelo Ministério da Educação no Brasil, fossem destinadas aos candidatos que tivessem estudado todo o ensino médio em escolas públicas, com renda familiar bruta per capita igual ou inferior a um salário mínimo e meio, para além daqueles autodeclarados pretos, pardos ou indígenas que gozavam destas mesmas condições. Portanto, houve um reconhecimento de que o acesso às IES públicas no Brasil, pelas camadas menos favorecidas, era desigual, e de que havia a necessidade de se reduzir essa disparidade, dando mais possibilidades àqueles que cursaram o ensino fundamental e médio público, de acederem às universidades públicas. Tal facto, posteriormente, também pode ter contribuído para que esses estudantes tivessem um maior acesso aos programas de MEI.
Embora se tenha identificado uma pequena percentagem de estudantes brasileiros oriundos de classes mais baixas, os mesmos tiveram uma experiência diferente da reportada pelos cabo-verdianos. Os brasileiros não foram forçados a trabalhar em Portugal para pagarem os estudos, pois haviam sido financiados pelo governo brasileiro (o que é outro indício do alargamento na saída desses estudantes para o estrangeiro), ao contrário de muitos cabo-verdianos, sem igual ou pouco apoio por detrás. Estes perfis sociais, fortemente assentes nos atributos dos pais e na trajetória escolar, sugerem que os participantes angolanos e brasileiros acabam por ter antecedentes socioeconómicos mais privilegiados, comparativamente com os cabo-verdianos. Partindo destes perfis, analisamos, de seguida, os motivos que levaram os participantes a estudar no ES português.
V. Motivações e relação com classe social
De forma a compreendermos a relação entre as motivações para o estudo em Portugal e a classe social, analisámos primeiramente um conjunto de dados quantitativos para, a partir destes, aprofundarmos a análise qualitativa. Assim, os quadros II e III resumem as principais motivações pelas quais os inquiridos escolheram Portugal e fornecem a base para a análise das entrevistas.
Os dados salientam como principais motivações a importância de ter melhores oportunidades profissionais/progressão profissional, o prestígio que algumas IES gozam nos países de origem, o papel da língua e das bolsas de estudo, e os benefícios sociais em Portugal, como um custo de vida mais baixo, para além de mais segurança e melhores acessibilidades. No que se refere à qualidade e ao prestígio do ES português, os oriundos dos PALOP atribuíram uma maior importância a este fator motivacional do que os brasileiros.
1. Prestígio do ensino superior português e melhores perspetivas de carreira no futuro
De acordo com Perkins e Neumayer (2014), a importância de escolher uma IES com ensino de qualidade e prestígio reside no facto de os estudantes imaginarem que serão capazes de aumentar o seu capital social e cultural. Esta capitalização não garante a ascensão social e profissional, mas, como os estudos no estrangeiro continuam a ser altamente valorizados pelas sociedades de origem (Brito, 2004; Costa & Faria, 2012), os participantes acreditam que a sua experiência de MEI pode trazer-lhes benefícios no futuro.
A escolha de Portugal deve-se, em grande parte ao prestígio e credibilidade atribuídos às IES portuguesas nos países de origem e, portanto, à expectativa de que o diploma português lhes traga melhores oportunidades profissionais e salariais no futuro, quando regressarem:
Há uma sensação em Cabo Verde de que os que vêm estudar fora, sobretudo em Portugal, sabem mais, têm uma visão mais alargada, fazem um concurso e são os que são escolhidos, não sei como nem porquê, mas é a sensação que temos. Não há como provar, mas chegam mesmo com notas de 10, 11 e ficam na primeira posição. (Sónia, CV)
Cá, [em Portugal] a qualidade do ensino é diferente. Estudar no estrangeiro, ou em Portugal, concretamente, quando se regressa tem-se maior credibilidade. (Alexandre, ANG)
Esta tendência para valorizar as IES portuguesas, em detrimento das do país de origem, pode ser parcialmente rastreada até ao passado colonial:
dentro do império ultramarino, até ao século XIX, a única “coisa” que existia para estudar, para quem falava português, era Coimbra. A Universidade de Coimbra tem um grande prestígio! Quem estudou aqui? José Bonifácio de Andrade e Silva, nosso patriarca da independência, e uma série de pessoas que, de facto, tiveram relevo lá no Brasil. (G. U., BR)
Apesar disso, vale a pena notar como alguns destinos são considerados mais prestigiados do que Portugal, porém, apenas acessível a estudantes com mais recursos económicos:
Gostava de ir para o Canadá, mas lá a vida também é muito cara. Se fosse para lá, em princípio era só para fazer o mestrado. (…). Ou Londres. EUA também já pensei. (Francisca, ANG)
A minha primeira opção eram os EUA, mas como era um bocado mais complicado, não consegui ir (…). O problema é que eu acho que não havia bolsas para os EUA (…). (Marta, CV)
Portugal parece constituir, assim, uma escolha intermédia, que permite uma distinção face aos que permanecem no país de origem, embora sem as mesmas vantagens competitivas, quando comparado com outros destinos mais caros.
2. O papel central da língua
Estritamente ligada à escolha do país de destino, a questão da língua parece fundamental. Se, por um lado, a aprendizagem de uma nova língua é considerada um investimento importante para o futuro, por outro, estudar numa língua que não é a materna pode constituir um custo que nem todos podem suportar. Para um grande número de inquiridos, falar a mesma língua foi uma das principais motivações para escolher Portugal. Embora muitos tivessem competência num segundo idioma, não consideraram suficiente para estudar num país cuja língua oficial não fosse o português (Iorio, 2018a):
Eu tenho “um “trânsito” com o inglês, mas não o domino. Eu poderia ter exercitado, ter “forçado uma barra” para ir para algum lugar de língua inglesa, mas eu não queria esse desconforto, principalmente diante de um curso. (L., BR)
Eu falo inglês, mas não acho que o meu inglês fosse suficientemente robusto para fazer um mestrado ou um doutoramento. (…) eu queria chegar e estudar já os conteúdos, não queria chegar e ter que estudar a língua. (Carlos, ANG)
No caso do Brasil, a relação entre a classe social e o ensino de línguas estrangeiras é bem conhecida (Almeida et al., 2004). Neste país, o ensino de línguas estrangeiras no setor público costuma ter uma qualidade bastante inferior àquele que é praticado pelo sector privado, resultando em diferentes aprendizagens por parte das crianças oriundas das classes sociais mais baixas e mais altas, com prejuízo para as primeiras. Embora a maioria dos estudantes brasileiros entrevistados pertencesse às classes sociais média e média-alta e, portanto, tivessem o chamado “itinerário de herdeiro”, semelhante ao descrito em 1964 por Bourdieu e Passeron (ou seja, tinham um elevado nível de capital económico e cultural herdado da família), é de notar que este itinerário não estava associado a um habitus internacional, ou seja, não descendiam de famílias com experiência de mobilidade internacional, o cosmopolitismo não era parte integrante das suas histórias familiares e não tinham um capital social internacional. Neste sentido, tanto para estes como para os que pertenciam às classes sociais mais baixas (com menos capital económico, cultural e, portanto, também linguístico), a escolha de Portugal aparecia como a “mais óbvia”.
No caso angolano, se, por um lado, as pessoas das classes menos privilegiadas tinham uma maior necessidade de estudar em português, e isto aconteceu porque não dominavam uma segunda língua, por outro lado, os mais privilegiados disseram ter escolhido Portugal para melhorar o seu domínio do próprio português. Embora a língua oficial em Angola também seja o português, o português falado nesse país possui algumas diferenças e estes estudantes acreditam que o domínio do português-europeu lhes permitirá destacarem-se e obterem melhores oportunidades no futuro, especialmente quando regressarem.
A relação entre a importância da língua e a classe social pareceu estar relativamente menos presente no caso de Cabo Verde, sendo um fator motivacional valorizado pelos vários estratos sociais. Apesar disto, registou-se uma ligeira tendência de maior valorização pelas classes médias e altas, possivelmente associada à manutenção do seu status quo.
3. Ser bolseiro, trabalhador ou simplesmente estudante
As bolsas de estudo desempenharam também um papel decisivo na MEI de vários inquiridos. Este foi o caso de muitos cabo-verdianos que referiram repetidamente a importância vital deste apoio:
Em Cabo Verde não tinha como estudar. Estou cá a estudar porque tenho essa bolsa, sem ela não tinha condições para estudar. Se eu tivesse ficado lá não ia conseguir, porque a minha mãe não tem condições. (Bruno, CV)
Como vimos, os estudantes cabo-verdianos são aqueles que vêm, na sua maioria, de um meio socioeconómico menos privilegiado, o que explica a sua maior dependência de ajuda externa. São também os que mais beneficiam do regime especial de acesso ao ES português e de bolsas de estudo. Apesar disso, a sua situação financeira permanece frágil, uma vez que o valor das bolsas é baixo (cerca de 270€) e insuficiente para cobrir todas as despesas. Esta inadequação é agravada pela desvalorização do escudo cabo-verdiano face ao euro e pelo aumento do custo de vida em Portugal. Mesmo com bolsas de estudo e não podendo contar com o apoio financeiro da família, muitos são obrigados a combinar os estudos com trabalho, levando, muitas vezes, a repetidas interrupções dos estudos:
Houve alturas que não tinha condições financeiras, então tive de trabalhar para arranjar dinheiro para pagar o curso (…). Parei alguns anos para trabalhar. Parei uma vez e fui para Lisboa, no 2º ano. Depois voltei para Évora e para a residência, para o 2º ano do curso. Parei outra vez e fui trabalhar para a Suíça. (Fernando, CV)
Os estudantes angolanos entrevistados, embora em menor número, também beneficiam de bolsas de estudo concedidas por empresas públicas ou IES angolanas. Apesar disso, no caso de Angola, dois perfis podem ser distinguidos. Um primeiro, de estudantes de uma classe socioeconómica mais elevada, que dependem unicamente do apoio financeiro das suas famílias sem terem de trabalhar, nem depender de bolsas:
Eu não trabalho cá, vim por conta própria, porque conseguir bolsa não é fácil. Então, não estavam a dar muitas bolsas e o meu pai sugeriu vir por conta própria. Eu sei que há muitos bolseiros, que estão com falta de mantimentos, porque não recebem a bolsa, e o meu pai conseguiu que eu viesse por conta própria. São os meus pais que me ajudam. (João, ANG)
Num segundo grupo, constituído por estudantes menos favorecidos, as viagens para Portugal são financiadas através de poupanças acumuladas antes da partida e/ou com a ajuda de membros da família alargada. A estadia em Portugal de todos os participantes angolanos foi muito perturbada pela crise financeiro-económica do país, com início em 2014, devido à queda acentuada das exportações de petróleo e ao acesso difícil a moeda estrangeira, levando a atrasos significativos na receção das bolsas e das transferências financeiras. Por isso, muitos passaram a ter de trabalhar enquanto estudavam, tal como os estudantes cabo-verdianos acima mencionados.
Normalmente, durante as aulas estava em part-time. Mas quando as aulas terminavam era obrigada a procurar fazer mais horas durante todo o Verão, para ver se me conseguia aguentar no ano letivo seguinte todo enquanto estudante. (Alice, ANG)
Encontram-se frequentemente a trabalhar em campos pouco qualificados, com salários baixos e irregulares (construção civil, restauração e limpeza doméstica), situação comum a outros estudantes internacionais (Maury, 2019; Wilken & Dahlberg, 2017). Para alguns inquiridos, estas condições de emprego constituem uma verdadeira desqualificação social e profissional. Alguns deles tinham experiências profissionais anteriores e ocupavam posições qualificadas na origem (ex. professores, contabilista, etc.). Para aqueles vindos de classes mais privilegiadas, cujos rendimentos familiares lhes permitiam ter empregados domésticos no país de origem, é difícil aceitarem serem eles, agora, este tipo de trabalhadores.
Como referido anteriormente, aquando da recolha dos dados, a maioria dos participantes brasileiros tinha um perfil de classe média no Brasil. Por isso mesmo, a maior parte viajou sem bolsas de estudo (57%), financiou o seu projeto de migração através de poupanças próprias e não trabalhava enquanto estudava. No entanto, os poucos casos de estudantes pertencentes a classes sociais mais baixas tinham, na sua maioria, bolsas de estudo e, como no caso dos bolseiros cabo-verdianos e angolanos, sem este financiamento dificilmente teriam conseguido realizar o projeto de MEI. Contudo, já nessa época, para muitos estudantes brasileiros, as poupanças e as bolsas de estudo não eram suficientes para financiar todo o projeto migratório, contando, nestes casos, com a ajuda dos pais e/ou de outros familiares.
4. Viver e estudar em Portugal: mais barato e com rede de apoio
Para os inquiridos angolanos e brasileiros, o baixo custo de vida e de estudo em Portugal, uma maior sensação de segurança e uma melhor acessibilidade parecem ser cruciais para compreender a escolha (Mazzarol & Soutar, 2002; Perkins & Neumayer, 2014; Sjaastad, 1962).
a gente veio pra cá, principalmente por causa da segurança… Porque Belém é a sétima capital mais violenta do Brasil. (M. C., BR)
Para além das questões relacionais, tem a componente financeira. Os mestrados são muito caros em Angola. (José, ANG)
Muitos estudantes dos três países também mencionaram a vantagem de ter redes sociais (familiares ou amigos) em Portugal que poderiam oferecer apoio, pelo menos no momento de chegada. Quer pela partilha de alojamento e introdução ao funcionamento da sociedade portuguesa¸ quer pelo apoio emocional, as redes contribuíram para a escolha do destino.
Entrei em contacto com os meus parentes, eles disseram que podia vir, podia estar em casa deles, então preferi vir para cá. (Sara, ANG)
Foi a minha tia, que já estava a viver em Lisboa, que realmente facilitou a minha vinda para cá. (D., BR)
Esta necessidade de escolher um país de estudo com custos mais baixos, por vezes até comparado com a origem, bem como a possibilidade de partilhar despesas com familiares, sublinha a forma como muitos participantes, ainda que provenientes de classes sociais heterogéneas, apresentam perfis socioeconómicos distantes da elite. Isto dá-nos indícios de que tem havido um alargamento da base de recrutamento desses estudantes em Portugal, bem como uma descontinuação do processo de elitização nos seus países de origem.
VI. Conclusão
Falar de mobilidade estudantil e mobilidade social implica reconhecer que existe um conjunto de desigualdades sociais e económicas que diferenciam os indivíduos e os posicionam numa certa hierarquia. Neste sentido, apesar da vontade individual, o projeto de mobilidade é desenvolvido dentro de um campo limitado de possibilidades, que inclui as particularidades inerentes aos países de origem (Velho, 1997).
A análise do perfil e das motivações dos participantes dá-nos indícios sobre a sua pertença social. Os inquiridos angolanos e brasileiros têm geralmente antecedentes socioeconómicos mais vantajosos do que os cabo-verdianos. No caso dos dois países africanos, do ponto de vista do capital cultural e económico dos pais, destacam-se dois perfis, um mais privilegiado do que o outro. Em particular, os mais desfavorecidos precisam de trabalhar, por vezes em condições muito precárias, para pagarem a sua educação. Embora também tenha sido identificado um subgrupo de estudantes brasileiros das classes mais baixas, ao contrário dos estudantes africanos, não eram obrigados a trabalhar para custearem os seus estudos, graças a uma maior oferta de financiamentos proporcionada pelo governo brasileiro.
A análise mostra também como, na área da MEI de Angola, Cabo Verde e Brasil para Portugal, os contextos socioeconómicos de origem, bem como o passado colonial, são fatores importantes para explicar a escolha de Portugal, bem como os possíveis projetos de mobilidade social subjacentes a esta escolha. Se a importância que os estudantes inquiridos dão à língua comum revela fraquezas em termos de capital cultural, a dependência das bolsas de estudo indica menos capital económico. Mesmo os inquiridos das classes mais privilegiadas citaram preocupações com a língua e com os custos de vida em Portugal, o que pode ser entendido como não pertencentes a uma elite nos países de origem. Pelo contrário, a escolha de Portugal parece ser uma opção aceitável para aqueles que não têm recursos (financeiros e/ou linguísticos) para migrar para outros destinos considerados mais prestigiados e de elite, como os EUA, Canadá, França ou Reino Unido (Brito, 2004). Estas considerações parecem indicar como, de uma perspetiva global, Portugal ocupa uma posição intermédia na MEI: embora pareça estar menos bem posicionado à escala global e, especialmente, em comparação com outros países ocidentais, continua a ser uma referência no mundo lusófono (Baganha, 2009). Neste sentido, o potencial de mobilidade social dos estudantes que escolheram Portugal é tanto maior quanto este destino goza de maior prestígio nos países de origem, particularmente entre os potenciais empregadores.
Dado este desejo de reforçar o capital cultural e social, e os perfis sociais identificados, parece-nos que, para a maioria dos estudantes angolanos, cabo-verdianos e brasileiros em Portugal, a MEI fará parte de um processo de mobilidade social ascendente, muito mais do que de reprodução social. Não obstante, chamamos a atenção para a altura em que os dados foram recolhidos e para os contextos socioeconómicos dos países de origem. Note-se, por exemplo, o caso do Brasil, que tem vindo a sofrer fortes alterações políticas desde meados de 2016, as quais levaram, entre outras ações, ao corte de bolsas de estudo internacionais. Para além destes contextos particulares, a crise sanitária que assolou o mundo, provocada pela descoberta do novo Coronavírus em finais de 2019, e que despoletou uma crise económica mundial, terá também impactos nesta relação entre MEI e mobilidade social (Iorio et al., 2021). Por isso, consideramos importante continuar a desenvolver este tema, seguindo o caminho socioprofissional destes estudantes no futuro e observando de que forma os acontecimentos mais recentes, ao nível macrossocial, podem estar a afetar as trajetórias socio-espaciais dos novos estudantes provenientes de Angola, Cabo Verde e Brasil, que continuam a escolher Portugal para realizarem os seus projetos de MEI.
Contributos dos/as autores/as
Elisa Alves: Conceptualização; Metodologia; Software; Validação; Análise formal; Investigação; Recursos; Curadoria dos dados; Escrita - preparação do esboço original; Redação - revisão e edição; Visualização; Supervisão; Administração do projeto; Aquisição de financiamento. Juliana Chatti Iorio: Conceptualização; Metodologia; Software; Validação; Análise formal; Investigação; Recursos; Curadoria dos dados; Escrita - preparação do esboço original; Redação - revisão e edição; Visualização; Supervisão; Administração do projeto; Aquisição de financiamento.